A CJLP e os Novos Sistemas de Justiça

 

A gestão do Sistema de Justiça é hoje um dos principais desafios dos Estados de Direito. O custo e a morosidade são os problemas que marcam a Justiça de muitos países.

As causas estão diagnosticadas: o aumento do número de litígios não é compensado com as dotações financeiras para a contratação de Magistrados, funcionários e técnicos, para a formação, para os meios, para as instalações, para as peritagens, para as traduções, para as investigações, para as novas tecnologias.

A Justiça é o parente pobre das prioridades, porque os políticos entendem que investir na Justiça não dá tantos votos como investir em obras públicas, na saúde ou na educação.

A Justiça vê-se envolvida por um fosso que aumenta desmesuradamente e que a vai afastando das exigências do Século XXI. Os cidadãos e as empresas têm muita dificuldade em perceber e em aceitar a capacidade de resposta oferecida pelo sistema de Justiça.

Nas últimas duas décadas o mundo mudou, mudou muito. As pessoas, as organizações, as relações ou os negócios decorrem num outro “tempo”, num “espaço” global, num maior grau de exigência. O acesso, a circulação e a gestão da informação, das noticias, do saber e também dos direitos, liberdades e garantias transformaram-nos numa casa única, em que sentimos e vivemos os problemas de qualquer pessoa, de qualquer povo, como se os acontecimentos estivessem a ocorrer na nossa rua, no nosso bairro.

Ora, este novo mundo é um mundo mais litigante, em que se recorre aos Tribunais com maior intensidade, para defesa dos direitos, tanto dos direitos que os cidadãos e as empresas sempre quiseram ver garantidos como dos direitos que, neste novo mundo, ganharam uma relevância que não tinham.

Por outro lado, muitos dos Estados de Direito Democrático deixaram-se cair numa ferocidade de produção legislativa, em muitos casos de más leis, que transforma em letra morta um princípio que domina muitos dos sistemas jurídicos: A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento.

A inoperância, os bloqueios e os atrasos da Justiça são hoje uma realidade constatada em muitos Estados de Direito Democrático, com efeitos nefastos nos cidadãos e nas empresas.

Esta incapacidade do sistema de Justiça afecta e reflecte-se, em primeira linha, nas pessoas, na economia, no tecido social e no desenvolvimento. Mas também atinge, e de que maneira, os operadores judiciários: no exercício, na realização e na insatisfação profissional, na evolução na carreira, na formação, na exiguidade de meios ou nas respostas aos permanentes pedidos de explicação a quem pretende ver reconhecido um direito, a quem aguarda pela protecção de um bem, a quem quer cobrar uma dívida ou a quem se vê confrontado com uma acusação.

É neste enquadramento que a informação e o aconselhamento jurídico assumem uma particular relevância. O desenvolvimento de uma cidadania juridicamente informada e esclarecida constituiu-se, nos tempos de hoje, como a adequada resposta a muitos dos novos problemas da Justiça.

Por isso mesmo a Carta dos Advogados da UALP (União dos Advogados de Língua Portuguesa), aprovada em Junho de 2007, estabelece que “a realização concreta e a protecção adequada dos direitos, liberdades e garantias, quer sejam económicos, sociais, culturais, civis ou políticos, exige que todos os cidadãos tenham acesso efectivo a um Advogado, para a consulta jurídica” (Ponto 1.1.).

O acesso à informação jurídica, através da consulta ao Advogado, tem que deixar de ser conotado como um serviço dispensável ou como um custo injustificado.

Desenvolver uma cidadania juridicamente esclarecida é dizer que, em termos económicos, a consulta ao Advogado é um acto imprescindível, bem menos dispendioso do que o potencial litígio que possa resvalar para Tribunal e que poderia ter sido evitado com aquela prévia consulta.

Depois é necessário salientar que a consulta ao Advogado é o exercício de um direito legítimo para a formação da vontade de contratar, de decidir, de adoptar um certo comportamento, de beneficiar de um direito ou de se vincular a um dever.

Também por isto, “os Advogados constituem o pilar de uma cidadania informada, o eixo fundamental da promoção da igualdade e do desenvolvimento e a garantia da afirmação dos direitos, liberdades e garantias, assegurando, através da advocacia independente, a defesa activa e a realização equitativa dos princípios do Estado de Direito Democrático” (Ponto 1.2. da carta da UALP).

Os Estados têm que assumir o acesso ao Advogado como uma obrigação. Por isso mesmo “os Governos devem assegurar o estabelecimento de processos eficazes e mecanismos adequados para tornar possível o acesso efectivo, em condições de igualdade, aos serviços de um Advogado por parte de todas as pessoas que se encontrem no seu território e que estejam sujeitas à sua jurisdição, sem qualquer tipo de distinção, como discriminação fundada na raça, cor, origem étnica, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de outra índole, origem nacional ou social, posição económica, nascimento, situação económica ou outra condição” (Princípios Básicos Relativos à Função dos Advogados, 8º Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, Havana, Setembro 1990).

Neste novo mundo não é só necessário uma maior e melhor capacidade de resposta dos sistemas de Justiça. Também se exige que sejam removidas todas as interferências externas - ou as simples suspeitas - que afectem a isenção e a imparcialidade. A Justiça tem que continuar a ser cega e terá que se saber blindar de tudo e de todos que possam colocar em crise a independência, a isenção, a liberdade e a inamovibilidade dos Magistrados.

Mas isto não chega. Também é essencial que seja defendida a independência dos Advogados. “Os Governos devem assegurar que os Advogados (a) possam desempenhar todas as suas funções profissionais sem intimidações, obstáculos, coacção ou interferência indevida; (b) possam viajar e comunicar com os seus clientes livremente, tanto dentro do seu país como no estrangeiro; e (c) não sofram, nem sejam ameaçados com processos ou sanções administrativas, económicas ou de outra índole por qualquer medida que tenham tomado em conformidade com as obrigações, as normas e regras deontológicas reconhecidas da sua profissão” (8º Congresso das Nações Unidas, Setembro 1990).

A advocacia independente é um requisito essencial de qualquer sistema de Justiça, de qualquer Estado de Direito. Só os Advogados independentes podem assegurar uma cidadania juridicamente informada. “Os Advogados de todo o mundo devem defender a independência da sua profissão, afirmar as garantias individuais, de harmonia com a soberania do Direito” (Acto de Atenas, aprovado em 1955 pela Comissão Internacional de Juristas).

São estas algumas das vias para a resolução de muitos dos constrangimentos que se registam no sistema de Justiça português mas também nos sistemas de Justiça dos países de língua portuguesa.

São problemas, ambições e caminhos comuns. São vias que devem ser percorridas com o precioso intercâmbio que os operadores judiciários saibam desenvolver entre si, tal como sucede no âmbito da CJLP, a Comunidade dos Juristas de Língua Portuguesa.

 

 

Luís Filipe Carvalho

Advogado