A CONSTITUIÇÃO DE ANGOLA DE 2010

JORGE MIRANDA,
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa - Portugal

I

1. As primeiras Constituições dos países africanos de língua portuguesa
I – O acesso à independência dos cinco países africanos de língua portuguesa não se fez ao mesmo tempo e nos mesmos termos em que decorreu o acesso à independência dos demais países da África. Naturalmente tal como por toda a parte, esse tempo e esse modo haviam de determinar os seus sistemas políticos e constitucionais originários.

Com efeito, depois de ter sido longamente retardado por causa do regime político autoritário em Portugal, deu se a ritmo acelerado logo que este regime foi substituído, e em cerca de 15 meses. Os “movimentos de libertação” que tinham conduzido a luta (política militar ou só política) receberam o poder, praticamente sem transição gradual, por meio de acordos então celebrados com o Estado Português. Nuns casos (Guiné, Moçambique e Angola) os próprios movimentos viriam a proclamar a independência e a outorgar Constituições; noutros casos (Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe), ela seria declarada formalmente por assembleias eleitas, mas todas dominadas pelos respectivos movimentos, transformados também logo em partidos únicos.

II – As primeiras Constituições foram: a de 1973 (depois substituída pela de 1984), quanto à Guiné Bissau; as de 1975, quanto a Moçambique, S. Tomé e Príncipe e Angola; e a provisória, de 1975 (depois substituída pela de 1980), quanto a Cabo Verde.
E tiveram de comum:

a) Concepção monista do poder e institucionalização de partido único (correspondente ao movimento de libertação do país, ou, relativamente a Angola, ao movimento vencedor na capital);

b) Abundância de fórmulas ideológico proclamatórias e de apelo às massas populares;

c) Empenhamento na construção do Estado – de um Estado director de toda a sociedade;

d) Compressão acentuada das liberdades públicas, em moldes autoritários e até, em alguns casos, totalitários;

e) Organização económica do tipo colectivizante;

f) Recusa da separação de poderes a nível da organização política e primado formal da assembleia popular nacional.

Em Cabo Verde e na Guiné Bissau, os regimes eram definidos como de “democracia nacional revolucionários” (art. 3º em cada uma das Constituições, respectivamente de 1980 e 1984), sendo o Partido Africano de Independência de Cabo Verde ou da Guiné e Cabo Verde a força política dirigente da sociedade e de Estado (art. 4º).

Moçambique era um Estado de democracia popular, pertencendo o poder aos operários e camponeses, unidos e dirigidos pela FRELIMO (art. 2º da sua Constituição).
Em Angola, o MPLA Partido do Trabalho constituía “a vanguarda organizada da classe operária” e cabia lhe “como partido marxista leninista, a direcção política, económica e social do Estado nos esforços para a construção da sociedade socialista” (art. 2º da Constituição).

Em S. Tomé e Príncipe, era o Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe, como vanguarda revolucionária, a força política dirigente da Nação, cabendo lhe determinar a orientação política do Estado (art. 3º da respectiva Constituição).

III – O poder fora conquistado por movimentos de libertação vindos de duras lutas, que exigiam um comando centralizado e, por vezes, personalizado. Por outro lado, a despeito da diferença de condições, na África dos anos 70 e 80 também era o modelo de partido único que prevalecia por toda a parte. Finalmente, Portugal não deixara nos seus antigos territórios nem instituições, nem tradições democráticas, liberais e pluralistas – até porque desde 1926 tão pouco houvera aqui instituições dessa natureza e foi só a seguir a 1974 (já depois de consumada a separação) que em Portugal se ergueu, de novo e com mais aprofundamento, o Estado de Direito.


Tudo isto e a influência ou a aproximação à União Soviética (então no máximo do seu aparente apogeu) poderão explicar o carácter não democrático e o afastamento dos modelos ocidentais nos cinco países de língua oficial portuguesa .

2. As transições constitucionais democráticas


I – A partir da segunda metade dos anos 80, os regimes instaurados começaram a revelar nítidos sinais de esvaziamento, de incapacidade para resolver os problemas, de falta de consenso ou de legitimidade – sobretudo em Angola e Moçambique com dramáticas guerras civis alimentadas do exterior.

De 1990 para cá abrir se iam em todos os cinco países, embora em termos e com resultados diversos, processos constituintes em resposta a essa situação:

– Em Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e Guiné Bissau, processos de transição verdadeira e própria, por iniciativa dos próprios regimes no poder – processo de revisão constitucional no primeiro e no terceiro casos e culminando na aprovação de uma nova Constituição formal no segundo;

– Em Moçambique e Angola, processos de transição ligados aos processos de paz e conduzindo também a novas Constituições.
Em todos os países viriam a efectuar se eleições gerais, inclusive com vitória da Oposição em Cabo Verde e em S. Tomé e Príncipe; a seguir, em Cabo Verde far se ia uma nova Constituição .

II – As Constituições saídas dessa mudança viriam a ser as de 1990, quanto a S. Tomé e Príncipe; de 1984, quanto à Guiné Bissau (com revisões de 1993, 1995 e 1996); de 1992, quanto a Cabo Verde e Angola; e de 2004, quanto a Moçambique.

E, tal como nas Leis Fundamentais da primeira era constitucional, não custa reconhecer fortes pontos de semelhança:

a) O reforço dos direitos e liberdades fundamentais, com enumerações largas e relativamente precisas, regras gerais sobre a sua garantia e proibição da pena de morte (como já acontecia em Cabo Verde);

b) A previsão de mecanismos de economia de mercado, bem como do pluralismo de sectores de propriedade, e, em geral, a desideologização da Constituição económica;

c) A inserção de regras básicas de democracia representativa e o reconhecimento do papel dos partidos políticos;

d) A superação do princípio da unidade do poder e uma distribuição mais clara das competências;

e) Sistemas de governo com três órgãos políticos significativos – Presidente, Assembleia e Governo – com acentuação parlamentarizante em Cabo Verde, presidencialista em Moçambique, Angola e Guiné Bissau e semipresidencial em S. Tomé e Príncipe;

f) Um primeiro passo no sentido da criação de autarquias locais;

g) A preocupação com a garantia da constitucionalidade e da legalidade (com a instauração, a prazo, em Moçambique de um Conselho Constitucional e em Angola de um Tribunal Constitucional) .

Em muitas das fórmulas e das soluções divisam se directas influências da Constituição portuguesa de 1976 .

3. A lei constitucional angolana de 1992

I – Em Angola, com a lei constitucional de 16 de Setembro de 1992, pretendia se apenas uma pré Constituição, destinada a ser substituída pela “Constituição da República” a aprovar pela Assembleia Nacional, por dois terços dos Deputados em efectividade de funções [arts. 88º, alínea a), e 158º].

Todavia, para além dos princípios de um Estado democrático e de Direito, nela encontravam se, com um tratamento semelhante ao de qualquer Constituição, todo um catálogo de direitos fundamentais, todo um sistema de organização de poder político e os mecanismos básicos de controlo da constitucionalidade.

Assim, declaravam se fundamentos do Estado a dignidade da pessoa humana, o pluralismo de expressão e de organização política e o respeito e a garantia dos direitos e liberdades fundamentais (art. 2º); estabelecia se o sufrágio universal (art. 3º); assegurava se a livre formação de partidos políticos em concorrência (art. 4º); o título sobre direitos e deveres fundamentais vinha imediatamente após o dos princípios fundamentais (arts. 18º e segs.); proibia se a pena de morte (art. 23º); previam se as principais liberdades públicas (arts. 32º e segs.); havia uma norma sobre limitação e supressão dos direitos (art. 52º); criava se um Provedor de Justiça (arts. 142º e 144º).

Eram órgãos de soberania o Presidente da República, a Assembleia Nacional, o Governo e os tribunais (art. 53º); o Presidente da República era eleito por sufrágio universal directo (art. 57º); era eleito por cinco anos e podia ser reeleito por mais dois mandatos consecutivos ou interpolados (art. 59º); os Deputados à Assembleia Nacional eram eleitos por representação proporcional (art. 79º); ela só não tinha o exclusivo do poder legislativo, porque podia conferir ao Governo autorizações legislativas [arts. 88º e segs. e 111º, nº 1, alínea b)]; a sua dissolução pelo Presidente da República estava sujeita a limites (art. 95º).

Garantia se a independência dos juízes (art. 127º); instituía se um Tribunal Constitucional (arts. 134º e 135º) para fiscalização de inconstitucionalidade por acção e por omissão (arts. 153º a 157º); e prescrevia se que as alterações à lei constitucional e a aprovação da Constituição teriam de respeitar, entre outros princípios, os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos, o Estado de Direito e a democracia pluripartidária, o sufrágio universal, directo, secreto e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania e do poder local, a separação e a interdependência dos órgãos de soberania e a independência dos tribunais (art. 159º).

4. Da lei constitucional de 1992 à Constituição de 2010

I – A guerra civil renascida imediatamente após as eleições de 1992, o seu prolongamento por dez anos, as suas sequelas, as dificuldades de preparação de novos actos eleitorais e as opções políticas assumidas pelos detentores do poder levariam a que a lei constitucional de 1992 se fosse mantendo, como Constituição provisória – tal como provisórias deveriam entender se todas as instituições políticas e todos os titulares de cargos políticos do País.

Só em 2010, a Assembleia Nacional, eleita em 2008, concluiria a feitura da Constituição definitiva, representando “o culminar (como se lê no preâmbulo desta), do processo de transição constitucional iniciado em 1991 com a aprovação pela Assembleia do Povo da Lei nº 12/91, que consagrou a democracia multipartidária, as garantias dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e o sistema económico de mercado, mudanças aprofundadas, mais tarde, pela Lei de Revisão Constitucional nº 23/92.

II – Verifica se, pois, um encadeamento dos dois corpos normativos, comprovado ainda pela subsistência do Presidente da República e dos Deputados à Assembleia Nacional em funções à data da entrada em vigor da Constituição (arts. 241º e 240º).

Em vez de se estatuir (como se fez em Portugal, em 1976, nos arts. 295º e 298º da Constituição então aprovada) um prazo para a eleição de novos titulares, os actuais vão manter se até à tomada de posse dos que venham a ser eleitos nos termos da Constituição. E, como nada se diz quando tal irá acontecer, poderia até presumir se que eles agora como que iniciariam novos mandatos, mas o contrário deve entender se, à luz do princípio democrático que exige eleições no mais curto prazo.

III – Significa isto que em 2010 não terá sido aprovada senão uma verdadeira nova lei de revisão constitucional?

Poder se ia tender a responder afirmativamente, sabido como o Tribunal Constitucional, em obediência ao estatuído em 1992, foi chamado a pronunciar se sobre o seu projecto para o avaliar em face dos limites materiais do art. 159º da lei constitucional de 1992, concluindo, salvo em dois pontos não primaciais, pela não desconformidade. Mas, se se recordar o que aconteceu na França, em 1958, no Brasil entre 1985 e 1988 e na África do Sul entre 1993 e 1996, deverá concluir se que, em rigor, estamos diante de uma Constituição – a há muito almejada Constituição da República de Angola.

De todo o modo, para se compreender devidamente o problema, importa ter presente a distinção entre poder constituinte material e poder constituinte formal.

IV – Assim:

a) O factor determinante da abertura de cada era constitucional é, não a aprovação de uma Constituição formal, mas o corte ou a contraposição frente à situação ou ao regime até então vigente, em nome de uma nova ideia de Direito ou de um novo princípio de legitimidade, seja por meio de revolução, seja por outro meio;

b) A entidade determinante do conteúdo fundamental de uma Constituição é a entidade – força política ou social, movimento militar ou popular, monarca, outro órgão ou grupo – que assim vai inflectir a ordem preexistente e assumir a inerente responsabilidade histórica;

c) Tal entidade, ora pode convocar ou estabelecer uma assembleia, um colégio, outro órgão com vista à elaboração da Constituição formal ora, porventura, ser ela logo a decretá la

d) O órgão que elabora e decreta a Constituição formal é solidário da ideia de Direito, do desígnio, do projecto correspondente à ruptura ou à inflexão e não poderia contradizer ou alterar essa ideia, esse desígnio, esse projecto sem nova ruptura ou inflexão, sem se transformar em entidade originária de uma diferente Constituição material;

e) Aliás, mesmo se a ideia de Direito é de democracia pluralista, o órgão encarregado de fazer a Constituição formal não goza de uma margem de liberdade plena; não adstrito, decerto, a um determinado e único sistema de direitos fundamentais, de organização económica, de organização política ou de garantia da constitucionalidade, está sujeito a um limite – o da coerência com o princípio democrático e da sua preservação (não pode estabelecer uma Constituição não democrática).
Não significa isto, contudo, que a elaboração da Constituição formal redunde em algo despiciendo ou acessório, porquanto:

a) Não basta, com a civilização da lei escrita e com o constitucionalismo, uma qualquer ideia ou um qualquer conjunto de princípios para ficar definido o quadro da vida colectiva; o estatuto do Estado carece de uma Constituição formal; traçar este estatuto comporta opções jurídico políticas de maior ou menor relevância;

b) Quer a ideia de Direito (ou o desígnio, o projecto, o carácter do regime) se desenhe com muito vigor e nitidez, quer se ofereça mais ou menos vaga ou fluida, não pode deixar de ser interpretada, concretizada, convertida em regras de comportamento e de relação (relação entre o Estado e os cidadãos, relação entre os futuros órgãos de poder), em regras que compõem a Constituição formal;

c) Até à Constituição formal os órgãos de poder aparecem como órgãos provisórios ou transitórios e os seus actos de decisão política como tendo validade ou eficácia condicionada a futura confirmação ou convalidação; e, quando se trate de um novo regime democrático, quaisquer “grandes reformas de fundo” deverão situar se no âmbito de futuro órgão democraticamente constituído;

d) O poder constituinte não se manifesta só no momento inicial ou no primeiro acto do processo, nem só no momento final de decretação da Constituição formal; manifesta se no enlace de todos os actos e no conjunto de todos os órgãos que neles intervêm.

IV – São duas faces da mesma realidade. Ou dois momentos que se sucedem e completam, o primeiro em que o poder constituinte é só material, o segundo em que é, simultaneamente, material e formal.


O poder constituinte material precede o poder constituinte formal. Precede o logicamente, porque a ideia de Direito precede a regra de Direito, o valor comanda a norma, a opção política fundamental a forma que elege para agir sobre os factos, a legitimidade a legalidade. E precede o historicamente, porque há quase sempre dois tempos no processo constituinte, o do triunfo de certa ideia de Direito ou do nascimento de certo regime e o da formalização dessa ideia ou desse regime; e o que se diz da construção de um regime político vale também para a formação e a transformação de um Estado.

Em segundo lugar, o poder constituinte material envolve o poder constituinte formal, porque (assim como a Constituição formal contém uma referência material) este é, por seu turno, não menos um poder criador de conteúdo valorável a essa luz. Não somente o poder constituinte formal complementa e especifica a ideia de Direito como é, sobretudo, através dele que se declara e firma a legitimidade em que agora assenta a ordem constitucional.

Confere, pois, o poder constituinte formal estabilidade e garantia de permanência e de supremacia hierárquica ou sistemática ao princípio normativo inerente à Constituição material. Confere estabilidade, visto que a certeza do Direito exige o estatuto da regra. Confere garantia, visto que só a Constituição formal coloca o poder constituinte material (ou o resultado da sua acção) ao abrigo das vicissitudes da legislação e da prática quotidiana do Estado e das forças políticas .

V – Na revolução há uma necessária sucessão de Constituições – materiais e formais. A ruptura com o regime precedente determina logo o nascimento de uma nova Constituição material, a que se segue, a curto, a médio ou a longo prazo, a adequada formalização.

Na transição ocorre sempre um dualismo. Pelo menos, enquanto se prepara a nova Constituição formal, subsiste a anterior, a termo resolutivo; e nada impede que o mesmo órgão funcione simultaneamente como órgão de poder constituído à sombra da Constituição prestes a desaparecer e como órgão de poder constituinte com vista à Constituição que a vai substituir.

O processo de transição é, na maior parte das vezes, insusceptível de configuração a priori, dependente das circunstâncias históricas. Outras vezes adopta se o processo de revisão constitucional; e pode até suceder que a Constituição admita expressamente formas agravadas de revisão para se alterarem princípios fundamentais da Constituição e, portanto, para se transitar para uma nova Constituição .

Na França, a passagem da IV para a V república ocorreu em Junho de 1958, quando a Assembleia Nacional concedeu ao Governo o poder de elaborar uma nova Constituição, respeitando certos princípios. Foi aí que se manifestou o poder constituinte material, e não aquando do referendo de aprovação da Constituição, em Setembro desse ano .

No Brasil, a passagem da ditadura militar para o regime democrático deu se no início de 1985 quando os governantes de então aceitaram a eleição do candidato da Oposição para Presidente da República, a que se seguiram emendas na Constituição de 1967 1969 de eliminação dos resquícios autoritários e o conferir ao Congresso a eleger em 1986 do poder de fazer uma nova Constituição. Mas, aprovada esta em Outubro de 1988, o Presidente empossado continuaria em exercício até ao termo do mandato que havia iniciado .

Na África do Sul, a passagem do apartheid para a democracia dar se ia aquando das conversações no seio da Conferência para uma África do Sul democrática (CODESA), donde sairia em 1993 uma Constituição provisória. Por sinal, esta Constituição continha Princípios com os quais a nova Constituição devia ser “certificada” ou confrontada, tarefa a cargo do Tribunal Constitucional então instituído; e, com efeito, isso viria a suceder, por duas vezes, em 1996, quando a Constituição foi aprovada .

VI – No caso de Angola, a mudança de regime deu se em 1991 com os chamados acordos de Bicese, que desembocariam nas eleições de 1992. Manifestou se, nesse momento, em paralelo com o que viria a suceder na África do Sul, o poder constituinte material. E apesar dos trágicos eventos ulteriores e dos sobressaltos, contradições e hesitações subsequentes a 2002, nem por isso deixou de permanecer a ideia de Direito de uma democracia pluralista e representativa, traduzida na lei constitucional de 1992. E é isso que explica a intervenção do Tribunal Constitucional, em completo paralelo com a do Tribunal sul africano.


O contraste com a França, o Brasil e a África do Sul está apenas (e não é pouco, historicamente), no longo, longuíssimo e dolorosíssimo caminho que houve de percorrer. Em 1991 1992, poder constituinte material; em 2010, poder constituinte formal. Resta saber se agora foi um último passo ou se mais algum terá de ser tentado até se alcançar um Estado Democrático de Direito à medida de Angola.

II

5. O preâmbulo, a sistematização do articulado e os anexos


I – A Constituição (ao invés da lei constitucional de 1992, o que não deixa de ter algum significado), abre com um preâmbulo, longo e um tanto repetitivo, em que se torna possível distinguir:

– Referências históricas à independência e à transição constitucional;
– Referências às tradições africanas;
– Declaração dos princípios e desígnios da Constituição;
– Afirmação dos grandes anseios do povo angolano.

II – Os 244 artigos desenvolvem se em oito títulos, alguns subdivididos em capítulos e secções, e na sistematização avultam:

1º) Para lá dos princípios fundamentais (título I), a antecedência dos direitos fundamentais (título II) em relação à organização económica, financeira e fiscal (título III);

2º) A dicotomia direitos, liberdades e garantias direitos económicos, sociais e culturais, aqueles com uma secção de direitos e liberdades fundamentais e outra de garantias;

3º) A distribuição da organização política (título IV) seguindo a tripartição de poder executivo, poder legislativo e poder judicial;

4º) O primado aí do poder executivo, atribuído ao Presidente da República, sobre o poder legislativo, atribuído à Assembleia Nacional;
5º) A inserção das Forças Armadas e de defesa nacional no âmbito da administração pública;

6º) A inserção aí também de um capítulo sobre segurança nacional e de outro, manifestamente deslocado, sobre preservação da segurança do Estado (em que se versam os estados de guerra, de sítio e de emergência);

7º) A existência de um título autónomo (VI) sobre poder local;

8º) A colocação da revisão constitucional no título (VII) de garantia da Constituição.


III – A técnica de elaboração do articulado afigura se, na maior parte dos preceitos, satisfatória.

IV – Completam a Constituição três anexos dedicados aos símbolos do Estado.

6. Os princípios fundamentais


Vale a pena transcrever as formulações mais importantes e mais emblemáticas do título I, muitas correspondentes, no essencial, às de 1992:
– “Angola é uma república soberana e independente, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade do povo angolano …” (art. 1º);

– “A República de Angola é um Estado Democrático de Direito que tem como fundamentos a soberania popular, o primado da Constituição e da lei, a separação de poderes e a interdependência de funções, a unidade nacional, o pluralismo de expressão e de organização políticas e a democracia representativa e participativa” (art. 2º, nº 1);

– “A República de Angola promove e defende os direitos e liberdades fundamentais do Homem, quer como indivíduo, quer como membro de grupos sociais organizados, e assegura o respeito e a garantia da sua efectivação pelos poderes legislativo, executivo e judicial, seus órgãos e instituições, bem como por todas as pessoas singulares e colectivas” (art. 2º, nº 2);

– “O poder político é exercido por quem obtenha legitimidade por processo eleitoral livre e democraticamente exercido, nos termos da Constituição e da lei” (art. 4º, nº 1);
– “São ilegítimos e criminalmente puníveis a tomada e o exercício do poder político com base em meios violentos ou por outras formas não previstas, nem conformes com a Constituição” (art. 4º, nº 2);

– “O território angolano é indivisível e inalienável, sendo energicamente combatida qualquer acção de desmembramento ou de separação de suas parcelas, não podendo nenhuma parte do território nacional ou dos direitos de soberania que sobre ele o Estado exerce ser alienado” (art. 5º, nº 6);

– “Angola é um Estado unitário, que respeita na sua organização os princípios da autonomia dos órgãos de poder local e de desconcentração e descentralização administrativa, nos termos da Constituição e da lei” (art. 8º);

– “A segurança nacional é baseada no primado do Direito e da lei, na valorização do sistema integrado de segurança e no fortalecimento da vontade nacional, visando a garantia de salvaguarda do Estado e o asseguramento da estabilidade e do desenvolvimento contra quaisquer ameaças e riscos” (art. 11º, nº 3 e cfr. arts. 211º e 212º);

– “A República de Angola é um Estado laico, havendo separação entre o Estado e as igrejas, nos termos da lei” (art. 10º, nº 1);

– “O Estado respeita e protege a propriedade privada das pessoas singulares ou colectivas e a livre iniciativa empresarial exercida nos termos da Constituição e da lei” (art. 14º);

– “A terra constitui propriedade originária do Estado que a gere e administra em nome do povo angolano” e “pode ser transmitida às pessoas singulares ou colectivas, tendo em vista o seu racional e efectivo aproveitamento, nos termos da Constituição e da lei” (art. 15º, nºs 1 e 2, completado pelo art. 98º);

– “Os partidos políticos, no quadro da presente Constituição e da lei, concorrem, em torno de um projecto de sociedade e de programa político, para a organização e a expressão da vontade dos cidadãos, participando na vida política e na expressão do sufrágio universal, com respeito pelos princípios da independência nacional, da unidade nacional e da democracia política” (art. 17º, nº 1).
Anotem se ainda normas sobre:

– A extensão do território (art. 3º, nºs 2 e 3);
– O reconhecimento do costume não contrário à Constituição, nem atentatório da dignidade da pessoa humana (art. 7º);
– A aquisição de cidadania (art. 9º);
– As relações internacionais (art. 12º);
– A recepção (automática) do Direito internacional na ordem interna (art. 13º);
– Os recursos naturais (art. 16º);
– O português como língua oficial, sem prejuízo das demais línguas de Angola (art. 19º);
– As tarefas fundamentais do Estado (art. 21º).

7. Os direitos fundamentais

I – Os princípios gerais sobre direitos fundamentais (arts. 22º a 29º) incluem:
– A prescrição de deveres (art. 22º, nº 3);

– A possibilidade, verificados certos pressupostos, de atribuição de direitos não conferidos a estrangeiros a cidadãos de comunidades regionais ou culturais de que Angola faça parte ou a que adira (art. 25º, nº 3);

– A interpretação e a integração dos preceitos sobre direitos fundamentais de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e os tratados internacionais sobre a matéria ratificados por Angola (art. 26º, nº 2);

– A aplicação dos instrumentos internacionais relativos a direitos do homem pelos tribunais, ainda que não invocados pelas partes (art. 26º, nº 3);
– A aplicação imediata dos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, com vinculatividade de todas as entidades públicas e privadas (art. 28º, nº 1);
– A obrigação do Estado de concretização progressiva e efectiva, de acordo com os recursos disponíveis, dos direitos económicos, sociais e culturais (art. 28º, nº 2).

II – Nos direitos e liberdades individuais e colectivos (arts. 30º a 55º) registem se:
– A constitucionalização do direito do cidadão de não ser submetido a experiências médicas ou científicas sem o seu consentimento prévio, informado e devidamente fundamentado [art. 36º, nº 3, alínea e)];

– A colocação aí quer dos direitos de propriedade e à livre iniciativa económica (arts. 37º e 38º) quer do direito ao ambiente (art. 39º);

– A consagração das liberdades física, de expressão e informações, de consciência religiosa e culto, de criação cultural, científica, de imprensa, de residência, circulação e emigração, de reunião e de manifestação e de associação em termos idênticos ao das Constituições de Estados de Direito (arts. 36º, 40º, 41º, 43º a 48º e 55º);

– A consagração da liberdade sindical (art. 50º), do direito à greve (art. 51º, nº 1) e da proibição do lock out (art. 51º, nº 2).

III – Entre as garantias (arts. 56º a 75º) contam se:

– O carácter restritivo das restrições de direitos, liberdades e garantias (art.

57º);
– O carácter excepcional da suspensão (art. 58º);
– A proibição da pena de morte e de tortura (arts. 59º e 60º);
– A imprescritibilidade do genocídio e dos crimes contra a humanidade, bem como (em moldes demasiado abertos) dos crimes como tal previstos na lei (art. 61º);
– As garantias da liberdade pessoal (art. 64º), incluindo habeas corpus (art. 68º);
– As garantias de Direito penal (arts. 65º e 66º), de Direito processual penal (art.

67º) e de Direito penitenciário (art. 63º);
– O habeas data (art. 69º);
– As garantias relativas a extradição e a expulsão (art. 70º);
– O direito a julgamento justo, célere e conforme com a lei (art. 72º);
– Os direitos de petição e de acção popular (arts. 73º e 74º);
– O princípio da responsabilidade civil do Estado (art. 75º).

IV – Os direitos económicos, sociais e culturais (arts. 76º a 88º) abrangem os direitos sociais e os direitos dos trabalhadores inerentes ao Estado social.
O Estado compromete se a conferir protecção aos antigos combatentes e veteranos da Pátria (art. 84º) e aos angolanos no estrangeiro (art. 86º).

8. A Constituição económica e financeira


A Constituição económica e financeira compreende, designadamente:
– Os princípios fundamentais de um Estado regulador de uma economia de mercado (art.

89º);
– A atenção do desenvolvimento social (art. 90º);
– A coexistência dos sectores público, privado e cooperativo (art. 92º);
– A irreversibilidade das nacionalizações e dos confiscos praticados ao abrigo da lei competente, sem prejuízo de legislação específica sobre reprivatizações (art. 97º);
– A não retroactividade das normas fiscais, salvo as de carácter sancionatório quando mais favoráveis aos contribuintes (art. 102º).

9. Os princípios gerais da Constituição política


I – No capítulo I do título da organização do poder do Estado prevêem se:
– Como órgãos de soberania, o Presidente da República, a Assembleia Nacional e os tribunais (art. 105º, nº 1);
– O princípio de separação e da interdependência de funções (art. 105º, nº 3, que assim reitera o disposto no art. 2º);
– A eleição do Presidente da República e dos Deputados à Assembleia Nacional por sufrágio universal, directo, secreto e periódico (art. 106º);
– A independência da administração eleitoral (art. 107º, nº 1);
– O carácter oficioso, obrigatório e permanente do registo eleitoral (art. 107º, nº 2).

II – Também diz respeito à organização do poder político em geral, embora situado noutro lugar, não poder a declaração de estado de guerra, de sítio ou de emergência afectar as regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e aos direitos e imunidades dos seus membros [arts. 58º, nº 5, alíneas a) e b)].

10. O Presidente da República

I – A centralidade do Presidente da República no sistema político está bem patente na sua definição como Chefe do Estado, Chefe do Executivo e Comandante em Chefe das Forças Armadas (art. 108º, nº 1).

Ele promove e assegura a unidade nacional, a independência e a integridade territorial do País, representa a Nação no plano interno e internacional, respeita e defende a Constituição, assegura o cumprimento das leis e dos acordos e tratados internacionais, promove e garante o regular funcionamento dos órgãos do Estado (art. 108º, nºs 4 e 5).

II – Como Chefe do Estado, o Presidente tem, entre outras competências (art. 119º), as de:

– Promover junto do Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva e sucessiva da constitucionalidade de actos normativos e tratados internacionais, bem como de omissões inconstitucionais;

– Nomear e exonerar os Ministros de Estado, os Ministros, os Secretários de Estado e os Vice-Ministros;

– Nomear o Presidente e três juízes do Tribunal Constitucional [alínea f), conjugada com o art. 180º, nº 3];

– Nomear o Presidente, o Vice presidente e os demais juízes do Tribunal Supremo [alínea g), mas nos termos do art. 181º];

– Nomear o Presidente, o Vice-presidente e os demais juízes do Tribunal de Contas;
– Nomear os juízes do Supremo Tribunal Militar;
– Nomear e exonerar o Procurador-Geral e os Vice Procurador Geral da República;
– Nomear e exonerar o Governador e os Vice-Governadores do Banco Nacional de Angola;
– Nomear e exonerar os Governadores e os Vice-Governadores Provinciais;
– Convocar referendos, mas sob proposta da Assembleia Nacional [arts. 161º, alínea j, e 168º];

– Declarar estado de guerra e fazer a paz, ouvida a Assembleia Nacional;
– Declarar o estado de sítio e o estado de emergência, ouvida a Assembleia Nacional;
– Promulgar e mandar publicar a Constituição, as leis de revisão constitucional e as leis da Assembleia Nacional;

– Presidir ao Conselho da República;

– Nomear os membros do Conselho Superior da Magistratura (mas nos termos do art. 184º);
– Designar membros do Conselho da República;

III – Enquanto Chefe do Executivo, o Presidente da República tem, entre outras competências:


– Definir a orientação política do País;
– Dirigir a política nacional;
– Submeter à Assembleia Nacional a proposta de Orçamento Geral do Estado;
– Dirigir os serviços e a actividade da Administração directa do Estado, civil e militar, superintender na Administração indirecta e exercer a tutela sobre a Administração autónoma;

– Definir a orgânica e estabelecer a composição do Poder Executivo;
– Solicitar à Assembleia Nacional autorizações legislativas;
– Exercer iniciativa legislativa, mediante propostas de lei apresentadas à Assembleia Nacional;

– Convocar e presidir às reuniões do Conselho de Ministros e fixar a sua agenda de trabalhos;

– Dirigir e orientar a acção do Vice-Presidente, dos Ministros de Estado e Ministros e dos Governadores de província;
– Elaborar regulamentos necessários à boa execução das leis.

IV – Como Comandante-em-Chefe das Forças Armadas, são poderes mais relevantes do Presidente:


– Assumir a direcção superior das Forças Armadas em caso de guerra;
– Nomear e exonerar o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas e o Chefe do Estado-Maior General Adjunto das Forças Armadas, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;
– Nomear e exonerar os demais cargos de comando e chefia das Forças Armadas, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;

– Promover e graduar, bem como despromover e desgraduar os oficiais generais das Forças Armadas, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;

– Nomear e exonerar o Comandante Geral da Polícia Nacional e os 2º Comandantes da Polícia Nacional, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;

– Nomear e exonerar os demais cargos de comando e chefia da Polícia Nacional, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;

– Promover e graduar, bem como despromover e desgraduar os oficiais comissários da Polícia Nacional, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;

– Nomear e exonerar os titulares, adjuntos e chefes de direcção dos órgãos de inteligência e de segurança de Estado, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;
E no domínio da segurança nacional:

– Definir a politica de segurança nacional e dirigir a sua execução;

– Determinar, orientar e decidir sobre a estratégia de actuação da segurança nacional;

– Aprovar o planeamento operacional do sistema de segurança nacional e decidir sobre a estratégia de emprego e de utilização das Forças Armadas, da Polícia Nacional e demais organismos de protecção interior, e dos órgãos de inteligência e de segurança de Estado;

V – Além dos decretos legislativos publicados no uso de autorizações da Assembleia Nacional, o Presidente da República pode editar decretos legislativos presidenciais provisórios (semelhantes às “medidas provisórias” dos arts. 85º XXVI e 62º da Constituição brasileira), sempre que, por razões de urgência e relevância, tal medida se mostrar necessária à defesa do interesse público, devendo submetê-los de imediato à Assembleia Nacional e podendo esta convertê las em lei, com ou sem alterações, ou rejeitá las (art. 126º).

Não podem, porém, ser aprovados decretos legislativos presidenciais provisórios sobre as matérias de reserva legislativa absoluta da Assembleia Nacional, sobre o Orçamento Geral do Estado e matérias relativas às quais incidam leis aprovadas pela Assembleia Nacional que aguardem promulgação.

Os decretos legislativos presidenciais provisórios são editados por períodos de sessenta dias, findos os quais perdem a sua eficácia, salvo se forem convertidas em lei pela Assembleia Nacional. Mas podem ser prorrogados por igual período de tempo, caso a Assembleia Nacional não tenha concluído a sua apreciação durante os primeiros sessenta dias.

Não podem ser reeditados, na mesma sessão legislativa, decretos legislativos presidenciais provisórios que tenham sido rejeitados pela Assembleia Nacional ou que tenham perdido a sua eficácia por decurso de tempo.

VI – É eleito Presidente da República o cabeça de lista, identificado nos boletins de voto pelo círculo nacional, do partido político ou coligação de partidos mais votado no quadro das eleições gerais para a Assembleia Nacional (art. 109º). Com ele é eleito o Vice Presidente.

O mandato do Presidente é de cinco anos (art. 113º, nº 1) e cada cidadão pode exercer até dois mandatos [arts. 110º, alínea h), e 113º, nº 2].

Em caso de vacatura do cargo, as funções de Presidente da República são assumidas pelo Vice Presidente, o qual cumpre o mandato até ao fim, com a plenitude de poderes (art. 132º, nº 1) .

VII – O Presidente não é responsável pelos actos praticados no exercício das suas funções, salvo em caso de suborno, traição à Pátria e prática de crimes definidos pela Constituição como imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia (art. 127º, nº 1).

VIII – Nos processos de responsabilização criminal e nos processos de destituição do Presidente da República (art. 129º, nº 5):

– A iniciativa deve ser devidamente fundamentada e compete à Assembleia Nacional;
– A proposta de iniciativa é apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções;
– A deliberação é aprovada por maioria de dois terços dos Deputados em efectividade de funções, devendo após isso ser enviada ao Tribunal Supremo ou ao Tribunal Constitucional, a respectiva comunicação ou petição de procedimento, conforme os casos.

IX – Verificando-se perturbação grave no regular funcionamento da Assembleia Nacional ou crise insanável na relação institucional com a Assembleia Nacional, o Presidente da República pode autodemitir-se, mediante mensagem dirigida à Assembleia Nacional, com conhecimento ao Tribunal Constitucional (art. 128º).

A autodemissão do Presidente da República implica a dissolução da Assembleia Nacional e a convocação de eleições gerais antecipadas, a realizar no prazo de 90 dias. O Presidente da República que tenha apresentado autodemissão mantém se em funções, para a prática de actos de mera gestão corrente, até à tomada de posse do Presidente da República eleito nas eleições subsequentes.

A autodemissão não produz os efeitos da renúncia.

11. A Assembleia Nacional

I – A Assembleia Nacional, unicameral, “exprime a vontade soberana do povo e exerce o poder legislativo (art. 141º, nº 2).

A Constituição distingue, todavia, competências políticas e legislativas, de controlo e fiscalização e quanto a outros órgãos (arts. 161º e segs.).

II – As competências politicas e legislativas são:

– Aprovar alterações à Constituição, nos termos da Constituição;
– Aprovar as leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas ao Presidente da República – que são as concernentes à orgânica do Poder Executivo [cfr. artigo 120º, alínea e)];

– Conferir ao Presidente da República autorizações legislativas e apreciar, para efeitos de cessação de vigência ou modificação, os decretos legislativos presidenciais autorizados, nos termos da lei;

– Apreciar, para efeitos de conversão em lei ou rejeição, os decretos legislativos presidenciais provisórios (cfr. art. 172º);

– Aprovar o Orçamento Geral do Estado;

– Fixar e alterar a divisão político-administrativa;

– Conceder amnistias e perdões genéricos;

– Pronunciar-se sobre a possibilidade de declaração pelo Presidente da República de estado de sítio ou estado de emergência;

– Pronunciar-se sobre a possibilidade de declaração pelo Presidente da República de estado de guerra ou de feitura da paz;

– Propor ao Presidente da República a submissão a referendo de questões de relevante interesse nacional (cfr. art. 168º);

– Aprovar para ratificação e adesão os tratados, convenções, acordos e outros instrumentos internacionais que versem matéria da sua competência legislativa absoluta, bem como os tratados de participação de Angola em organizações internacionais, de rectificação de fronteiras, de amizade, de cooperação, de defesa e respeitantes a assuntos militares;

– Aprovar a desvinculação de tais tratados, convenções, acordos e outros instrumentos internacionais;

– Promover o processo de acusação e destituição do Presidente da República (cfr. art. 129º).

Tendo em conta a faculdade de o Presidente emitir decretos legislativos provisórios e decretos legislativos autorizados, há matérias de reserva absoluta e de reserva relativa da Assembleia (arts. 164º e 165º).

III – As principais funções de controlo e fiscalização vêm a ser:

– Receber e analisar a Conta Geral do Estado e de outras instituições públicas que a lei obrigar;

– Analisar e discutir a aplicação da declaração do estado de sítio ou estado de emergência;

– Analisar, para efeitos de recusa de ratificação ou de alteração, os decretos legislativos presidenciais aprovados no exercício de competência legislativa autorizada (cfr. art. 171º).

IV – As funções em relação a outros órgãos consistem em:

– Eleger juízes para o Tribunal Constitucional;
– Eleger juristas para o Conselho Superior da Magistratura Judicial;
– Eleger o Provedor de Justiça e o Provedor de Justiça Adjunto;
– Eleger membros dos órgãos de administração eleitoral, nos termos da lei.

V – Os Deputados são eleitos segundo o sistema de representação proporcional, por círculos eleitorais, existindo um círculo nacional e círculos correspondentes às províncias e sendo cento e trinta Deputados eleitos por aquele e cinco por cada círculo provincial (arts. 143º e 144º).

As candidaturas são apresentadas pelos partidos políticos, isoladamente ou em coligação, e subscritas por 5000 a 5500 eleitores para o círculo nacional e por 500 a 550 por cada círculo provincial.

O mandato – e, portanto, a duração da legislatura – é de cinco anos.

12. Os tribunais
I – O sistema de tribunais compreende o Tribunal Constitucional, tribunais comuns, tribunais militares e o Tribunal de Contas, podendo existir tribunais administrativos, fiscais e aduaneiros. É proibida a criação de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de determinadas infracções (art. 176º).

Os tribunais garantem e asseguram a observância da Constituição, das leis e demais disposições normativas vigentes, a protecção dos direitos e interesses legítimos das instituições e decidem sobre a legalidade dos actos administrativos (art. 177º, nº 1).
Os tribunais e os juízes são independentes, não podendo estes ser transferidos, promovidos, suspensos, reformados ou demitidos senão nos termos da Constituição e da lei (arts. 175º a 179º).

II – Compete ao Tribunal Constitucional (art. 180º):

– Apreciar a constitucionalidade de quaisquer normas e demais actos do Estado;
– Apreciar preventivamente a constitucionalidade das leis do Parlamento;
– Exercer jurisdição sobre outras questões de natureza jurídico constitucional, eleitoral e político-partidária, nos termos da Constituição e da lei.
O Tribunal Constitucional é composto por onze juízes designados de entre juristas e magistrados, do seguinte modo:

– Quatro juízes indicados pelo Presidente da República, incluindo o Presidente do Tribunal;
– Quatro juízes eleitos pela Assembleia Nacional por maioria de dois terços dos Deputados em efectividade de funções, incluindo o Vice-Presidente do Tribunal;
– Dois juízes eleitos pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial;
– Um juiz seleccionado por concurso público curricular, nos termos da lei.
Os juízes do Tribunal Constitucional são designados para um mandato de sete anos, não renovável, e gozam das garantias de independência, inamovibilidade, imparcialidade e irresponsabilidade dos juízes dos restantes Tribunais.

13. O poder local

As formas organizativas do poder local compreendem as autarquias locais, as instituições de poder tradicional e outras modalidades específicas de participação dos cidadãos nos termos da lei (art. 213º, nº 2).

As autarquias locais organizam se em municípios (art. 218º, nº 1) e a sua institucionalização efectiva obedece a um princípio de gradualismo (art. 242º).

14. A fiscalização da constitucionalidade

I – Consigna se o princípio da constitucionalidade (art. 226º) e são passíveis de fiscalização todos os actos que consubstanciem violações de princípios e normas constitucionais, nomeadamente os actos normativos, os tratados, convenções e acordos internacionais, a revisão constitucional e o referendo (art. 227º).

II – Embora os tribunais garantam e assegurem a observância da Constituição (art. 177º, nº 1), não parece ter se contemplado uma fiscalização difusa, concreta e incidental.

O sistema é, antes, de fiscalização concentrada no Tribunal Constitucional, com três vias: fiscalização preventiva, fiscalização sucessiva abstracta de inconstitucionalidade por acção e fiscalização da inconstitucionalidade por omissão (arts. 228º a 232º).

Tirando a ausência de fiscalização concreta, são nítidas as similitudes com o sistema da Constituição portuguesa (cfr. arts. 278º, 279º, 281, 282º e 283º). Notas de relevo de diferença vêm a ser a atribuição de iniciativa, na fiscalização preventiva e na fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, também a um décimo e a um quinto dos Deputados em efectividade de funções (arts. 228º, nº 2 e 232º, nº 2, e a atribuição de iniciativa na fiscalização sucessiva, tal como sucede no Brasil (art. 103º VII da Constituição de 1988) à Ordem dos Advogados [art. 230º, nº 2, alínea f)].

15. A revisão constitucional

I – A Assembleia Nacional pode rever a Constituição, decorridos cinco anos da sua entrada em vigor ou da última revisão ordinária. E pode assumir, a todo o tempo, poderes de revisão extraordinária por deliberação de dois terços dos deputados em efectividade de funções (art. 235º).

Durante a vigência de estado de guerra, de estado de sítio ou de estado de emergência não pode ser realizada qualquer alteração à Constituição (art. 237º).

A iniciativa de revisão compete ao Presidente da República ou, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, à Assembleia Nacional (art. 233º).

As alterações da Constituição são aprovadas por maioria de dois terços dos Deputados em efectividade de funções (art. 234º, nº 1).

O Presidente da República não pode recusar a promulgação da lei de revisão constitucional, sem prejuízo de poder requerer a sua fiscalização preventiva pelo Tribunal Constitucional (art. 234º, nº 2).

II – São limites materiais de revisão:

– A dignidade da pessoa humana;
– A independência, integridade territorial e unidade nacional;
– A forma republicana de governo;
– A natureza unitária do Estado;
– O núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias;
– O Estado de direito e a democracia pluralista;
– A laicidade do Estado e o princípio da separação entre o Estado e as igrejas;
– O sufrágio universal, directo, secreto e periódico para a eleição dos titulares dos órgãos de soberania e das autarquias locais;
– A independência dos tribunais;
– A separação e interdependência dos órgãos de soberania;
– A autonomia local.

16. O desfasamento entre a Constituição dos direitos e a Constituição política

I – Realizado o conspecto da Constituição, apontados os seus traços identificadores, ressaltam à vista desarmada elementos de contradição entre, de sua parte, os seus grandes princípios, o tratamento dos direitos fundamentais e o dos tribunais e, de outra parte, a organização do poder político.

A República de Angola declara se um Estado Democrático de Direito (arts. 2º e 236º, alínea f)], com supremacia da Constituição e da lei (art. 6º). Mas Estado Democrático de Direito não tem por conteúdo somente a soberania do povo, a democracia representativa, os direitos fundamentais. Exige também limitação do poder através de formas institucionais adequadas.

A experiência de todos os povos e de todas as épocas mostra que somente com limitação recíproca do poder, se salvaguardam os direitos dos cidadãos e se leva até ao fim a garantia da constitucionalidade das leis e de todos os actos jurídico públicos. Há, sempre tem havido, uma conexão ineliminável entre ambas as vertentes de qualquer corpo constitucional.

II – Por um lado, encontram se na Constituição:

– A afirmação da dignidade da pessoa humana como fundamento da República [arts. 1º e 236º, alínea a)] e a obrigação do Estado de respeitar, garantir e efectivar os direitos fundamentais [arts. 2º, nº 2, 21º, alínea b), e 236º, alínea c)], com interpretação e aplicação de harmonia com a Declaração Universal e os instrumentos internacionais de protecção (art. 26º, nºs 2 e 3) e vinculatividade imediata dos direitos, liberdades e garantias (art. 28º, nº 1);

– A consagração das liberdades públicas (arts. 36º, 40º, 41º, 43º a 48º e 58º);

– As garantias de liberdade pessoal e de Direito e de processo criminais (arts. 64º a 67º);

– O carácter restritivo das restrições a direitos, liberdades e garantias e o carácter excepcional da sua suspensão (arts. 57º e 58º);
– A existência de um Provedor de Justiça, eleito pela Assembleia Nacional [arts. 163º, alínea e) e 192º];

– O princípio da responsabilidade civil do Estado (art. 75º).
Assim como:

– A afirmação da independência dos tribunais e dos juízes (arts. 175º e 179º);

– A existência de um Tribunal Constitucional (arts. 180º e 228º a 232º), com juízes em parte designados pelo Presidente da República, em parte pela Assembleia Nacional e em parte pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial [arts. 119º, alínea f), 163º, alínea a), e 180º, nº 3] e com mandato relativamente longo e não renovável (art. 180º, nº 4);

– A composição também plural do Conselho Superior da Magistratura Judicial (art. 184º).
E ainda:

– O princípio da separação de poderes e da interdependência de funções [arts. 2º, nº 1, 105º, nº 3, e 236º, alínea j)];

– O princípio da legitimidade politica exclusivamente com base no sufrágio universal, directo, secreto e periódico [arts. 4º, 106º, 220º, nº 2 e 236º, alínea h)];

– O princípio da independência da administração eleitoral (art. 107º, nº 1);

– O princípio da liberdade e do pluralismo partidário [arts. 17º, 55º e 236º, alínea f), 2ª parte].

Em contrapartida, menos positivos, embora não decisivos, revelam se:
– O relevo conferido à segurança nacional (arts. 11º, nº 3, 202º e 203º), identificada, em certo capítulo, com a segurança do Estado (arts. 211º e 212º);
– O silêncio sobre a fiscalização concreta da constitucionalidade, sempre meio excelente de defesa dos direitos e interesses constitucionalmente protegidos dos cidadãos.

III – Já no domínio da Constituição política, vêm a ser outras as perspectivas.

Ela gira toda em torno do Presidente da República. E não se trata tanto da acumulação das funções de Chefe de Estado e de Chefe do Executivo – que também conhecem os sistemas presidenciais – quanto da vastidão de poderes que lhe são atribuídos, muito para além do que se verifica nestes sistemas:

– Definição e orientação da política do País [art. 120º, alíneas a) e b)];

– Promoção, graduação, despromoção e desgraduação de oficiais generais das Forças Armadas e dos oficiais comissários da Polícia Nacional [art. 122º, alíneas e) a h)];

– Definição, determinação e execução da segurança nacional (art. 123º);

– Declaração de estado de sítio e de emergência, apenas com audição e análise a posteriori da Assembleia Nacional [arts. 119º, alínea p), 161º, alínea h), e 162º, alínea c)];

– Competência para emitir decretos legislativos presidenciais provisórios, ainda que com limites a priori e a posteriori (art. 126º);

– Iniciativa de revisão constitucional (art. 223º).

Ao que acresce a ausência de referenda ministerial, a qual poderia ser um freio a um exercício pessoal do poder . O princípio da reserva de Constituição (art. 117º) ou de que o Presidente

está confinado aos poderes previstos em normas constitucionais, perde todo o alcance prático . Não é que não haja limites ou contrapesos:

– A convocação de referendo apenas sob proposta da Assembleia Nacional [arts. 119º, alínea u), 161º, alínea j), e 168º];

– A sujeição a responsabilização criminal e a destituição por iniciativa da Assembleia [arts. 129º e 161º, alínea n)];

– A impossibilidade de eleição para terceiro mandato [arts. 110º, alínea h), e 113º, nº 2];

– O primado da competência legislativa da Assembleia Nacional (arts. 161º, 164º e 165º);

– A iniciativa de fiscalização preventiva, de fiscalização sucessiva abstracta e de fiscalização de inconstitucionalidade por omissão também atribuída a Deputados em determinado número [arts. 228º, nº 2, 230º, nº 2, alínea b), e 232º, nº 1];

– A impossibilidade de revisão constitucional em estado de guerra, de sítio ou de emergência (art. 237º).
Estes limites ou contrapesos, entretanto, correm o risco de ser apagados pelos factores políticos ligados necessariamente:

– À eleição do Presidente simultânea com a dos Deputados à Assembleia Nacional (art. 109º), o que faz dele, presidente e primeiro candidato do parido vencedor, o chefe da maioria parlamentar e lhe permite domínio total da Assembleia ;

– À autodemissão política, não submetida ao regime de renúncia e que implica a dissolução automática da Assembleia (art. 128º) .

IV – O sistema de governo angolano, não sendo, evidentemente, um sistema parlamentar, tão pouco se ajustaria ao modelo presidencial.

Um sistema de governo presidencial caracteriza se, como se sabe, por:


a) Presença de dois órgãos políticos activos, o Parlamento e o Presidente da República, com idêntica legitimidade representativa;

b) Clara distinção entre poder legislativo e poder executivo;

c) Independência recíproca dos titulares, com incompatibilidade de cargos, e, geralmente, com mandatos não coincidentes;

d) Independência, sobretudo, por nem o Presidente responder politicamente perante o Parlamento, nem o Parlamento perante o Presidente;

e) Donde, quer impossibilidade de demissão do Presidente por força de qualquer votação parlamentar, quer impossibilidade de dissolução do Parlamento pelo Presidente;

f) Interdependência funcional, com mútua colaboração e fiscalização – na prática, tendo o Presidente faculdades de impulsão e o Parlamento faculdades de deliberação .

Salvo a primeira característica, nenhuma das outras se depara na Constituição de 2010.

O sistema aproxima se, sim, do sistema de governo representativo simples , a que, configurações diversas, se reconduziram a monarquia cesarista francesa de Bonaparte, a república corporativa de Salazar segundo a Constituição de 1933, o governo militar brasileiro segundo a Constituição de 1967 1969, vários regimes autoritários africanos .

17. Uma dúvida razoável

A Constituição proclama o princípio da separação de poderes [arts. 2º, nº 1, 105º, nº 3, e 236º, alínea j), de novo]. Ora, as regras sobre os poderes do Presidente e sobre a sua eleição e a sua autodemissão afastam se deste princípio.

Acarretam então este desvio como consequência que deva pensar se que, em vez de ter sido exercido o poder constituinte formal (nos moldes atrás indicados), ao fim e ao resto ter se á ostentado, em 2010, um novo e diferente poder constituinte material?

A dúvida afigura se razoável. Mas, a despeito de tudo, pode supor se – e esperar se – que o enraizamento dos direitos e liberdades fundamentais, a dinâmica que vá desenvolver se no interior do Parlamento e a independência dos tribunais não permitam que a Constituição venha a tornar se uma mera Constituição semântica (na acepção de KARL LOEWENSTEIN), ou seja, uma Constituição, instrumento e não fundamento de poder . É cedo para responder.

Uma alternativa seria reputar aquelas normas inconstitucionais – mas só para quem aceite a tese de inconstitucionalidade de normas constitucionais. E restaria o problema de saber como poderia o Tribunal Constitucional, criado pela Constituição, controlar a constitucionalidade das suas normas.

Fonte: Club-k.net