O DIREITO FUNDAMENTAL AO DISCURSO RELIGIOSO:
divulgação da fé, proselitismo e
evangelização
André Ramos Tavares
SUMÁRIO
I. APRESENTAÇÃO DO TEMA; II. DO
DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE RELIGIOSA; II.1.
Liberdade de crença, evangelização e religiões de
caráter universal; II.2.1. Liberdade de crença e
proselitismo; II.3.Propósitos
evangelizadores/proselitistas e o suporte fático da
liberdade religiosa; III. LIBERDADE RELIGIOSA E
CRIMES CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO; III.1. Dos
crimes contra o sentimento religioso; III.2. Da
interpretação constitucionalmente adequada do art.
20, §2º e §3º da Lei n. 7.716/89, em face da
liberdade religiosa; IV. Conclusões. REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS.
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RESUMO
O presente artigo está relacionado ao escopo
constitucional do direito à liberdade religiosa e qual
exercício religioso incluir-se-ia na área de proteção de
referida liberdade. Especial atenção é dedicada à liberdade
de expressão religiosa, ou liberdade do discurso religioso,
em todas suas diversas dimensões.
Pretendi percorrer, no desenvolvimento do
tema, duas etapas: i) definição do conteúdo constitucional
da liberdade religiosa e do direito ao discurso religioso,
particularmente suas implicações na seara da liberdade de
expressão religiosa, e; ii) delineamento do escopo da Lei n.
7.716/89 , bem como da criminalização de condutas
relacionadas ao exercício da religião, em face da
Constituição de 1988. Estas questões comporão o cerne do
presente estudo jurídico.
Na
complexidade da sociedade contemporânea, na qual diversos
sistemas, códigos de linguagem e dicursos partilham do
e concorrem no mesmo espaço, formando o dissenso como
sua nota principal, o que se tem denominado como uma das
características da pós-modernidade, o intéprete, em sua
função de colaborador com a concretização (Müller) do(s)
direito(s), deparando-se com a questão da liberdade de
religião e do proselitismo, enfrenta não só o problema
metódico do direito, mas também a escassez de um marco
seguro e universalmente aceito no tema, bem como com a
variedade de discursos que não estão atrelados à razão,
apesar de sempre estarem respaldos pelo conteúdo da verdade
de quem os profere (teorias morais de primeira ordem).
A solução
dos casos que envolvem o conteúdo da liberdade de religião e
da liberdade de divulgação da própria religião, aspeco
consubstancial à liberdade de expressão e à própria
liberdade de religião, talvez só possa estar apta a
satisfazer a uma singela parcela da sociedade ou, ao
contrário, a receber a crítica acirrada de pequena parcela
da sociedade. O papel do estudioso do Direito, nessa
situação incômoda, deve ser o de manter as bases do Estado
de Direito, com o dever superior de cingir as divergências
unicamente ao discurso. É preciso manter a tensão
proveniente do exercício da liberdade de expressão religiosa
em termos racionalmente sustentáveis, respeitadas as opções
de crença e fé de cada indivíduo e de cada religião.
I.
APRESENTAÇÃO
Há uma corriqueira e recorrente confusão
envolvendo a liberdade de religião e de expressão, o que
ocorre basicamente em face da natureza fluída de todos os
direitos fundamentais, do qual faz parte a liberdade
religiosa (cf. André
Ramos Tavares &
Pedro Buck, 2007: 174). Contudo, inobstante esta
circunstância, eventuais (e aparentes) obscuridades
referentes ao conteúdo e extensão dos direitos fundamentais
não podem servir como justificativa, exatamente, para a sua
supressão ou retração. Daí a necessidade de se delimitar,
inicialmente, o conteúdo do direito à liberdade religiosa
(inclusive sua relação com a dignidade da pessoa humana), de
forma a evitar que haja quer seja a sua subversão (supressão
da liberdade religiosa em prol da liberdade religiosa de
outras crenças) ou a configuração equivocada de seu legítimo
e inafastável exercício em ato discriminatório.
Conforme se demonstrará a seguir, a liberdade
religiosa encampa, em seu âmbito de proteção, a saber,
argumentos destinados a membros de outras religiões com
vistas a convertê-los, por meio da alegação da superioridade
transcendental do cristianismo em face de outras crenças
indicadas (em especial, do espiritismo e das de matriz
africana e oriental). Em outras palavras, verificar-se-á que
o proselitismo - discurso que pretende converter membros de
outras religiões, ou, mais especificamente, produzir
prosélitos (novos adeptos de uma determinada religião) -
está albergado no seio da liberdade religiosa, mais
precisamente pela denominada liberdade de crença ou de
divulgação das crenças (encampada pela Constituição do
Brasil). Disto resulta a concretização, e não o desrespeito,
da dignidade da pessoa humana, conforme se verificará.
Ato contínuo, definir-se-á o
conceito-conteúdo constitucionalmente correto e adequado da
figura penal da discriminação religiosa, o qual haverá de
ser respeitoso e deferencial ao sentido constitucional do
direito à liberdade religiosa e a livre divulgação da crença
e da fé.
II. DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE
RELIGIOSA
De início, cumpre apontar que, na
Constituição de 1988, a liberdade religiosa, enquanto
direito fundamental, encontra-se arrolada, abertamente, em
dois preceptivos. O primeiro é o art. 5º, VI, da CB, o qual
determina que:
“VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença,
sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e
garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e
a suas liturgias;”
O outro dispositivo constitucional que se
refere diretamente à liberdade religiosa é o art. 5º, VIII,
o qual apregoa que:
“VIII
– ninguém será privado de direitos por motivo de crença
religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se
as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta
e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em
lei;”
Há, é certo, outro preceptivo constitucional
que se relaciona, também, propriamente à religião, a saber,
o art. 5º, VII, da CB, cuja redação é a seguinte:
“VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de
assistência religiosa nas entidades civis e militares de
internação coletiva;”
Mencionado dispositivo, sem embargo,
apresenta uma dimensão assaz específica da liberdade
religiosa, a saber, a proteção constitucional à prestação de
assistência religiosa em entidades civis e militares de
internação coletiva. Seu estudo não é essencial para
definição do conteúdo da liberdade religiosa em si, ao
contrário do que ocorre com o art. 5º, VI, da CB. Incide
nesta mesma situação, o preceptivo constante do art. 5º,
VIII, uma vez que este se destina, usualmente, à conscrição
militar.
Disto resulta que a liberdade religiosa
encontra-se plasmada, principal e especialmente, no art. 5º,
VI, da CB, preceptivo que será essencial para bem
estabelecer e definir o conteúdo constitucional da liberdade
religiosa no Dirieto brasileiro. Este direito, conforme já
foi adiantado anteriormente, assegura a inviolabilidade da
liberdade de consciência e de crença. Há, nesta norma, os
elementos basilares da liberdade religiosa: liberdade de
consciência e de crença.
Tem-se aí, igualmente, a percepção correta de que a
liberdade religiosa não pode ser compreendida plenamente em
isolamento normativo, descolada das demais normas
constitucionais. O sentido da liberdade religiosa no Direito
brasileiro passa pela compreensão da liberdade religiosa do
art. 5º no contexto constitucional brasileiro.
Quanto àqueles elementos basilares referidos
acima, outro, aliás, não é o sentido do histórico memorial
apresentado por James
Madison, um dos responsáveis pela elaboração da
Constituição estadunidense de 1787, destinado à Assembléia
Geral do Estado de Virgínia, em 1785:
“A Religião, então, de todo homem, deve ser deixada a cargo
da convicção e consciência de cada homem; e é direito de
todo homem exercê-la da maneira que lhe convier.”
(in: Robert S. Alley
(ed). The constitution & religion. New York: Prometheus
Books, 1999, p. 29, original não grifado, tradução livre).
Esta liberdade de consciência e de crença, em
geral (em um “primeiro momento”), dirige-se essencialmente
contra o Estado. É dizer, o discurso e a proteção da
liberdade religiosa, no âmbito constitucional, têm como
destinatário a figura do Estado (cf.
André Ramos Tavares.
“Religião e neutralidade do Estado”. Revista Brasileira de
Estudos Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte, ano 2, n. 5,
pp. 13-25, jan./mar. 2008, p. 15, e
Leonardo Martins.
“Liberdade religiosa e liberdade de consciência no sistema
da Constituição Federal”. Revista Brasileira de Estudos
Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte, ano 2, n. 5, pp.
27-48, jan./mar. 2008, p. 28). Sobre esta incidência dos
direitos fundamentais constitucionalmente positivados sobre
a relação cidadão-Estado, lecionam
Dimitri Dimoulis
e Leonardo Martins:
“A principal finalidade dos direitos fundamentais é conferir
aos indivíduos uma posição jurídica de direito subjetivo, em
sua maioria de natureza material, mas às vezes de natureza
processual e, conseqüentemente, limitar a liberdade de
atuação dos órgãos do Estado.” (Teoria geral dos direitos
fundamentais. São Paulo: RT, 2006, p. 63, original não
grifado)
É dizer, o âmbito protetivo, o espaço de
tutela derivado do direito à liberdade religiosa se erige,
primeiramente, contra o Estado, o qual, por conseguinte,
está impossibilitado de impor, v.g., uma religião oficial,
relegando as demais à marginalidade e, tampouco,
desrespeitar ou tolher o exercício de qualquer religião, da
consciência e crença individual ou perseguir certas
religiões ou praticantes (há outras limitações derivadas
desta concepção, como a impossibilidade de o Estado promover
guerras santas). “Significa [ainda] que a pessoa não pode
ser forçada a abandonar sua opção religiosa, sua fé” (André
Ramos Tavares. Curso de Direito Constitucional, 6ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 586).
O direito à liberdade religiosa, desta feita,
afigura-se, propriamente, como um direito individual
detentor de um status negativus, o qual implica uma
pretensão de resistência à (possível mas indesejável)
intervenção estatal ilegítima. Nesse sentido, de acordo com
o magistério de Thomas Jefferson, um dos responsáveis por elencar a liberdade
religiosa no rol dos direitos individuais da primeira
Constituição contemporânea, a dos Estados Unidos da América
(e por conseguinte das demais, especialmente daquelas que,
como a brasileira, seguiram-lhe de perto os passos), o
direito em comento está a denotar que
“[n]enhum homem deverá ser compelido a freqüentar ou adotar
qualquer religião, local ou ministério, (...) e tampouco
poderá, de qualquer maneira, sofrer [restrições, moléstias
ou encargos] em razão de suas opiniões ou crenças
religiosas; mas sim que todo homem deverá ser livre para
professorar, e, por argumento, manter suas opiniões no que
se refere à religião” (“Thomas Jefferson’s Bill for
Establishing Religious Freedom”. in.
Robert S. Alley
(ed). The constitution & religion. New York: Prometheus
Books, 1999, p. 35, original não grifado, tradução livre).
Sobre
o conteúdo específico da liberdade religiosa, já argumentei
em outra oportunidade que:
“A assim denominada liberdade religiosa, enquanto direito
fundamental, há de incluir a liberdade: i) de opção em
valores transcendentais (ou não); ii) de crença nesse
sistema de valores; iii) de seguir dogmas baseados na fé e
não na racionalidade estrita, iv) da liturgia (cerimonial),
o que pressupõe a dimensão coletiva da liberdade; v) do
culto propriamente dito, o que inclui um aspecto individual;
vi) dos locais de prática do culto; vii) de não ser o
indivíduo inquirido pelo Estado sobre as suas convicções;
viii) de não ser o indivíduo prejudicado, de qualquer forma,
nas suas relações com o Estado, em virtude de sua crença
declarada.” (André
Ramos Tavares. “Religião e neutralidade do Estado”.
Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo
Horizonte, ano 2, n. 5, pp. 13-25, jan./mar. 2008, p. 15).
Sistematizando o que está acima transcrito,
tem-se que o art. 5º, VI, da CB, e dentro do contexto
normativo desta, congrega, em seu bojo, uma proteção perante
o Estado, que está a incluir o direito: (a) à opção por
valores transcendentais; (b) à crença nesse sistema de
valores; (c) à possibilidade de seguir os dogmas religiosos;
(d) ao culto (e aos seus locais) e à liturgia e; (e) de o
indivíduo não ser inquirido pelo Estado acerca de suas
convicções. Quanto ao direito de o indivíduo não ser
prejudicado, de qualquer forma, nas suas relações com o
Estado, em virtude de sua crença declarada, esta hipótese
protetiva encontra-se arrolada, especificamente, no art. 5º,
VIII, da CB, acima já transcrito. Ressalte-se, aqui, a
essencialidade da liberdade religiosa para a dignidade da
pessoa humana, na exata medida em que, se a finalidade desta
é assegurar que o homem possa escolher o seu próprio
caminho, efetuar suas próprias decisões (cf.
André Ramos Tavares.
Curso de Direito Constitucional, 6ª ed. São Paulo: Saraiva,
2008, p. 541), então há de perpassar, necessariamente, pelo
âmbito dos valores transcendentais, cuja tutela encontra-se
inscrita no direito à liberdade religiosa.
Não se trata, pois, de invocar a dignidade da pessoa humana
arbitrariamente, para justificar esta ou aquela conduta;
sim, porque como conceito aberto e abstratamente concebido
pela Constituição, a dignidade da pessoa humana pode ser
utilizada de maneira meramente retórica (geralmente numa
leitura unilateral e isolacionista da norma contemplativa
desse “valor”), o que só pode alcançar um peso ínfimo ou
nulo dentro do discurso jurídico no que se refere a alcançar
conclusões constitucionalmente consistentes.
Merece destaque, aqui, quanto ao conteúdo
específico do art. 5º, VI, que a liberdade religiosa
envolve, igualmente, a crença em um determinada sistema de
valores. Isto implica uma obrigação vinculada à liberdade de
consciência, a saber, o dever de:
“cada homem prestar ao criador as deferências, e apenas
aquelas, que ele crê ser aceitável para ele. Este dever
precede tanto em tempo como em grau de obrigação às
exigências da sociedade civil.”
(James Madison.
“To the Honorable the General Assembly of the Commonwealth
of Virginia. A Memorial and Remonstrance”. In.
Robert S. Alley
(ed). The constitution & religion.
New York: Prometheus Books, 1999, p. 29, original não
grifado, tradução livre).
A “lógica” imanente a esta dimensão
específica da liberdade religiosa é bem simples. A opção de
um indivíduo por uma religião incorpora, invariavelmente,
como contrapartida, o dever de este cumprir com alguns
dogmas ou formalidades religiosas, os quais são efetivamente
realizados pelo adepto, em razão de um ato de crença: o
indivíduo crê em um dogma ou rito específico e o segue,
perpetua (como, por exemplo, a proibição de adoração de
imagens gravadas, como bandeiras, pelas Testemunhas de
Jeová). Tem-se, portanto, uma liberdade de atuação conforme
as crenças, para se valer de expressão de autoria de
Jónatas Machado
(Liberdade religiosa numa comunidade constitucional
inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, pp. 222 e ss.).
Mencionada liberdade está a implicar a
proteção, inclusive estatal, àquela conduta do indivíduo
pautada por sua crença. Sem isto, a liberdade de crença
seria manietada ou, colocando de outra forma, ter-se-ia não
propriamente uma liberdade religiosa, mas uma indiferença
religiosa, que longe está de ser sinonímia daquela.
Portanto, tem-se, na hipótese aqui mencionada, uma dimensão
essencial da liberdade religiosa, que é sua
instrumentalização por meio da liberdade de atuação conforme
a crença, tendo em vista que:
“a liberdade religiosa não seria adequadamente tutelada se
admitisse uma tão estrita como simplificadora bipolaridade
entre crença (belief) e conduta (action), que resultasse
numa generosa protecção da primeira e na desvalorização da
segunda.” (Jónatas
Machado. Liberdade religiosa numa comunidade
constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p.
222).
Esta dimensão protetiva da liberdade
religiosa é assaz salutar, impregnando o conteúdo mínimo e
intangível do que está incorporado nesta liberdade. Afinal,
as condutas religiosas são manifestações consolidadoras e
concretizadoras daqueles valores retidos pelo indivíduo em
seu foro íntimo (consciência). Assim, pode-se concluir pelo
seguinte juízo lógico de causa e efeito: se as condutas
religiosas estiverem constitucionalmente desprotegidas, a
própria liberdade religiosa estará em xeque (cf.
Jónatas Machado.
Op. cit., p. 223). Portanto, para que haja uma proteção
constitucional efetiva à liberdade religiosa, a liberdade de
atuação conforme a crença haverá, também, de estar
constitucionalmente protegida. Em outras palavras, a
liberdade de conduta religiosa, em um ambiente
constitucional de liberdade, integra o núcleo duro da
própria idéia de liberdade religiosa (e, em termos indiretos,
cumpre com os imperativos da dignidade da pessoa humana,
dada a sua mútua relação):
“Compreensivelmente, em nome da proteção do indivíduo, da
unidade e integridade da sua personalidade moral, a
liberdade religiosa deve proteger a conduta religiosa, a
liberdade de actuação e autoconformação de acordo com as
próprias convicções (...)” (Jónatas
Machado. Op. cit., p. 223, original não grifado).
Umbilicalmente relacionada à liberdade de
atuação conforme as crenças há outra dimensão da liberdade
religiosa que, invariavelmente, extravasa o âmbito
individual de cada indivíduo. As religiões, em maior ou
menor grau, além de revelarem a sua própria concepção de
“verdade” e de mundo, exigindo de seus adeptos a prática de
condutas (e, invariavelmente, um modo de vida) relacionadas
aos dogmas que lhe são subjacentes, buscam convencer as
demais religiões de que é a sua verdade, aquela por ela
apregoada, a correta. Não por outro motivo é que a
Constituição de 1988, em seu art. 5º, VI, traz,
paralelamente, à liberdade de consciência, a liberdade de
crença, ou, para se valer de termo utilizado por
Jónatas Machado,
a liberdade de divulgação das
crenças,
a qual congrega, especificamente, a atividade de professorar
uma fé religiosa (cf.
Leonardo Martins, 2008: 27-48 e, igualmente,
Dimitri Dimoulis,
2007: 64, ao mencionar o direito “que permite ao titular
expressar crenças e conteúdos de consciência, assim como
silenciar a respeito, sem sofrer coação ou sanções”).
O ato de professorar a fé chega, inclusive, a
ser reputado como um dever moral do indivíduo, conforme bem
destaca Archibald Cox:
“Os idealizadores colocaram a liberdade de consciência em
primeiro lugar, e depois seguiram com a liberdade de
expressão e de imprensa. Eles estavam preocupados, acima de
tudo, com a liberdade espiritual: liberdade de pensar,
acreditar e louvar. Eles também sabiam que um homem que
carrega uma crença tem uma necessidade, um dever moral, de
expressá-la.” (Cox, 1980: 1, original não grifado, tradução livre).
É preciso destacar que esta liberdade de
crença ou de divulgação das crenças
recebe mais destaque e protagonismo em
algumas determinadas religiões (as ditas universalistas,
tema abordado a seguir), tal como a Cristã, a qual
apresenta, inclusive, como mandamento basilar de
Jesus Cristo:
“Ide ao mundo inteiro, proclamai o Evangelho
a todas as criaturas. Quem crer e for baptizado será salvo.”
(Marcos, 16,
15,
Bíblia, 1989: 988). Nos Atos dos Apóstolos
há, igualmente, nesse sentido, as palavras de
Pedro:
“Convertei-vos e cada um peça o batismo em nome de Jesus
Cristo, para conseguir perdão dos pecados. Assim, recebereis
o dom do Espírito Santo. Pois a promessa foi feita para vós
e vossos filhos, assim como para todos aqueles – tão
numerosos – que Deus irá chamar” (Atos dos Apóstolos,
2,38-39; Bíblia. edições Loyola, 1989: 1058).
Portanto, há, no bojo das religiões, em
especial no cristianismo e, especificamente, no catolicismo,
o dever de evangelizar (os próprios apóstolos
decorreram desta concepção evangelizadora). Seja demandanda
por todas religiões ou não, o correto é que a Constituição,
na liberdade religiosa, protege, igualmente, esta dimensão
coletiva (porquanto busca alcançar outros indivíduos que não
os praticantes de uma dada religião), a evangelização (termo
adequado para expressar o proselitismo praticado pelo
cristianismo). Ressalte-se que este âmbito da liberdade
religiosa é também protegido por outro direito
constitucional, a saber, a liberdade de expressão (cf.
Tavares, 2008: 586; Dimoulis, 2007: 64 e; Buck,
2007: 229), a qual, em conjugação com o direito em apreço,
se configura em liberdade de expressão religiosa. Há, aqui,
portanto, novamente, uma confluência de direitos, que
revelam a sua exata medida e alcance.
Destaca-se, a título ilustrativo, que a
liberdade de expressão, aliás, serviu, em um primeiro
momento, como instrumento e veículo da liberdade religiosa,
conforme leciona
Archibald Cox:
“Quando primeiramente considerada, a liberdade de expressão
e de imprensa significavam, principalmente, a liberdade de
ouvir e ler a palavra de Deus e, desta feita, descobrir o
caminho da salvação.” (Cox,
1980: 1, original não grifado, tradução livre).
Portanto, e isto é importante destacar a
título acautelatório, a relação entre liberdade religiosa e
liberdade de expressão não faz com que aquela seja
secundária a esta. Pelo contrário. Em um primeiro momento, a
liberdade de expressão foi vislumbrada como um instrumento
da liberdade de crença, podendo, por conta disto, a
liberdade religiosa, em seu processo de externalização –
liberdade de expressão religiosa –, ser um direito de
natureza autônoma em face da liberdade de expressão:
“Este binômio ‘consciência/crença’ indica, de um lado, que a
liberdade de consciência não deve ser entendida como um
subcaso da liberdade de expressão do pensamento (art. 5º, IV),
pois o constituinte a viu como um fenômeno muito mais
próximo da convicção ou fé religiosa do que um mero
posicionamento político-ideológico e como tal intimamente
ligada à autoconcepção do titular do direito, ao seu mundo
interno (forum internum) e não às vicissitudes do embate
ideológico adequável aos mais diversos interesses subjetivos
ou políticos, próprio da liberdade de expressão.” (Martins,
2008: 27, original não grifado).
Consigna-se, aqui, portanto, a proteção
constitucional dada à externalização dos dogmas e valores
religiosos que o indivíduo carreia em seu foro íntimo. A
liberdade religiosa protege o direito de o religioso
professorar a sua convicção. Esta proteção se encontra
presente na inviolabilidade da liberdade de crença,
constitucionalmente prevista, de maneira expressa e
articulada pela Constituição do Brasil. Destaca-se, ao cabo,
valendo-se do magistério de
Leonardo Martins quanto à ligação íntima da liberdade de
expressão religiosa à autoconcepção do titular, que a
própria externalização da crença finda por, igualmente,
estar protegida pelo manto protetor do valor constitucional
da dignidade da pessoa humana, dado que um dos elementos
essenciais da dignidade da pessoa humana é assegurar ao
indivíduo a sua autodisponibilidade (cf.
Tavares, 2008:
542).
II.1.
Liberdade de crença, evangelização e religiões de caráter
universal
Verificou-se na parte final do item acima que
a liberdade religiosa, além de abarcar uma dimensão
eminentemente individualista, é dizer, conceder ao indivíduo
a prerrogativa de crer naqueles valores transcendentais que
melhor lhe convenham, proibindo qualquer atuação estatal
intrusiva, protege, igualmente, o direito de o indivíduo
“exteriorizar sua crença ou visão de mundo”. Daí a sua
relação próxima com outro direito fundamental, a saber, a
liberdade de expressão, compondo, assim, a liberdade de
expressão religiosa ou liberdade de divulgação da crença.
No que se refere ao cristianismo, a liberdade
de divulgação da crença é exercida com maior rigor e
entusiasmo, exatamente em razão das premissas históricas
e mandamentais desta religião, a qual, conforme visto, traz,
recorrentemente, aos seus membros ou apóstolos, o dever de
evangelizar (Marcos,
16, 15 e Atos dos Apóstolos, 2, 38-39). Este é, ademais, o
magistério do importante estudioso da história cristã, o
britânico Christopher
Dawson:
“Cristo é a cabeça desta humanidade restaurada, o
primogênito da nova criação, e a vida da Igreja consiste na
progressiva extensão da encarnação mediante a gradual
incorporação da humanidade nesta unidade superior” (Dawson, 2001: 66, original não grifado, tradução livre).
Mas não é apenas o cristianismo
que arrola como fundamento esta pretensão universalizadora.
O judaísmo, por exemplo, já apresentava, em sua origem, a
tendência de “acentuar a unicidade e a universalidade da
divindade nacional” (cf.
Dawson, 2001:
63), embora seja pertinente destacar que há, sim, diferenças
entre a pretensão universalizante deste em relação à do
cristianismo (as quais não serão exploradas aqui).
Desnecessário
seria dizer que nem todas as religiões detêm esta pretensão
universalista. Há, sem embargo, por sua vez, aquelas que,
inclusive por questões históricas e culturais,
além de dogmáticas, acabam possuindo esta finalidade
universalizante e, em razão disto, findam por exercer com
maior intensidade uma divulgação efusiva de suas crenças,
tal como o cristianismo (representado especialmente pelo
catolicismo, o qual provém do grego
katholikos – καθολικος –, que está a
significar geral ou univeral),
o judaísmo
e o islamismo (vide, quanto a este último,
Dawson, 2001:
300). Com efeito, portanto, acabam por demandar, igualmente,
a tutela mais constante do âmbito protetivo da liberdade de
divulgação de crenças ou, tão-só, da liberdade de crença,
constitucionalmente assegurada.
Esta dimensão coletiva da religião, que
envolve o professorar e o externalizar de seus valores e
dogmas, em especial pela religião católica, apresentará um
inelidível potencial de conflito e atrito, especialmente
quando confrontada com outras religiões e crenças (cf.
Dimoulis, 2007:
64-65).
Trata-se mesmo de situação corriqueira, já
que as religiões, por comporem aquilo que se reconhece como
teoria moral de primeira ordem, assumem a
característica basilar de negar e afastar as demais
“teorias” existentes. Uma teoria de primeira ordem carreia
em seu bojo a concepção de que é a única adequada, sendo as
demais inválidas ou equivocadas; esta rejeição é,
invariavelmente, intrínseca, quer dizer, acaba assumindo uma
conotação religiosa; em outras palavras, não é apenas um
afastar-se de outras religiões, mas sim um enxergar nelas
conotações contra-religiosas. Sobre esta concepção, vide o
magistério de Amy
Gutmann e
Dennis Thompson:
“As teorias de primeira ordem procuram solucionar
discordâncias morais, demonstrando que as teorias e
princípios alternativos deveriam ser recusados. O objetivo
de cada uma é ser a única teoria capaz de solucionar a
discordância moral. (Gutmann;
Thompson, 2007: 29).
Isto porque é natural das religiões estarem
pautadas em uma dada “verdade religiosa”, a qual estará
radicada, valendo-se de termo utilizado pelo jurista
lusitano Jónatas
Eduardo Mendes Machado, “na afirmação da
superioridade teleológica intrínseca de uma determinada
doutrina em relação às demais” (1996: 188, original não
grifado). Discorre com naturalidade
Mateus Soares de
Azevedo sobre o tema, ao afirmar que “[s]eja de nosso
agrado ou não, é da natureza das coisas que uma religião
necessariamente exclua as outras.” (2004:
A.3, original não grifado).
O cristianismo e, em especial, a religião
católica, não se afastam desta “ordem natural das coisas”,
conforme bem se percebe das palavras de
Santo Agostinho,
retratada por
Christopher Dawson:
“Este caminho [que leva à Verdade permanente] se encontra
somente no Cristianismo, na sabedoria sobrenatural que
mostra ao homem não apenas a verdade, mas também os meios
para desfrutá-la.” (Dawson,
2001: 144, original não grifado).
É dizer, as religiões universalistas, tal
como o cristianismo e sua corrente católica, em sua
pretensão proselitista (discurso com vistas a persuadir os
membros de outras religiões a aderir à do emissor),
invariavelmente vão pregar a negação da validade das demais
manifestações religiosas em seus discursos, na busca por
novos seguidores, a serem resgatados e convertidos. Preciso,
aqui, portanto, é o magistério de
Joseph H. Carens,
levando, obviamente, em consideração, este caráter de
primeira ordem das religiões universalistas, como o judaísmo
e o cristianismo (mais precisamente o catolicismo):
“Se você é criado em uma tradição, por exemplo, o
catolicismo, você não pode, simultaneamente, ser criado em
outra, por exemplo, o judaísmo” (1990: 234, tradução livre).
Com efeito, não é possível e nem é
constitucionalmente admissível, no caso brasileiro, a
exigência de que essas religiões pratiquem uma visão
tolerante (em um sentido, aqui, de indiferença religiosa;
este tema será mais bem explorado no item III do presente
artigo), pluralista (isto não quer dizer que se deva, por
exemplo, defender e acatar eventual discurso de ódio ou
discriminatório, nem o chamado fundamentalismo religioso –
tais são elementos distintos, conforme se demonstrará,
igualmente, em item específico). Em outras palavras, não
pode o Estado promover uma intromissão (legislativa ou
judicial) no bojo destas religiões de pretensões
universalistas, com vistas a tolher ou conduzir os discursos
por elas praticados. Esta conduta nulifica importante
dimensão da liberdade religiosa, mais precisamente a
liberdade de crença ou de sua divulgação, implicando a
negação, inclusive, da própria religião, que perde sua
identidade e, desta feita, estar-se-á manietando a dignidade
da pessoa humana. A positivação da liberdade religiosa ampla
pressupõe estes elementos. Sobre essa impossibilidade de se
exigir, especificamente do cristianismo, a aceitação de
outros valores de uma doutrina rival, sem desnaturar ou
intervir nessa crença, vide o importante magistério de
Geoffrey Harrison:
“Poderia, por exemplo, um Cristão que admitisse que outras
posições morais/religiosas eram tão boas quanto [os valores
morais ou posições] do Cristianismo ser, ainda, considerado
um Cristão? Eu creio que não, na medida em que a adoção de
uma determinada moralidade envolve a rejeição ao menos de
alguns aspectos de qualquer doutrina rival que não seja
compatível com a sua própria.”
(Harrison,
1979: 287, original não grifado, tradução livre).
Tem-se, portanto, aqui, a primeira e mais
importante conclusão deste estudo. A liberdade religiosa,
mais precisamente o direito à liberdade religiosa plasmado
no art. 5º, VI, da CB de 1988 e compreendido no contexto
constitucional, assegura e garante o direito de o religioso
professorar suas crenças. Outro não é o sentido da
textualmente expressa inviolabilidade da liberdade de
crença, a qual também é reconhecida como liberdade de
divulgação das crenças (cf.
Machado, 1996:
225 e ss), em conclusão plenamente válida para o Direito
constitucional brasileiro, como se demonstrou acima.
No que se refere às religiões eminentemente
universalistas – tal como o cristianismo –, de pretensões
evangelizadoras, a liberdade religiosa em apreço protege o
seu discurso excludente em relação às religiões
concorrentes, uma vez que é da natureza destas figurar como
uma teoria moral de primeira ordem (cf.
Gutmman e
Thompson, 2007: 29). Isso significa que não pode o Estado
impor a estas um dever de tolerância (em termos de
indiferença quanto às demais religiões, como se explicará
mais adiante), um discurso politicamente correto, sob o
risco de promover, com isto, a supressão da própria
liberdade religiosa detida, por exemplo, pelas instituições
católicas.
II.2.1.
Liberdade de crença e proselitismo
Viu-se, acima, que a liberdade religiosa,
constitucionalmente protegida, há de abarcar, igualmente, a
proteção à liberdade de divulgação de crenças ou,
simplesmente, liberdade de crença, sendo que é recorrente,
para grande parte das religiões, a pretensão de converter
(evangelizar, para se continuar usando, aqui, um termo
cristão) e, com isto, divulgar os seus valores
transcendentais, sendo esta também uma importante dimensão
da própria liberdade constitucional em apreço. Diante disto,
não pode o Estado, como resulta óbvio e inevitável
normativamente falando, buscar restringir a comunicação
religiosa como se esta fosse semelhante a outra forma
qualquer de mensagem ou de comunicação. Se assim fosse,
bastaria consagrar a liberdade ampla de expressão. Conforme
rememora Jónatas
Machado:
“Isso não implica, porém, que a mensagem religiosa possa ser
tratada exactamente da mesma forma que qualquer mensagem não
religiosa. Tendo em conta, a um tempo, as especificidades
meta-racionais do fenómeno religioso, seria inadmissível,
designadamente, uma aplicação dos princípios da veracidade,
da proibição de publicidade enganosa e da proteção da saúde
e segurança dos consumidores, em termos que viessem implicar
um prejuízo sobre o mérito teológico ou eclesiástico
intrínseco das confissões religiosas em causa, ou tocar nas
suas dimensões éticas e morais essenciais.” (Machado,
1996: 226-227, nota 749, original não grifado).
Afinal, o proselitismo religioso, tal como a
pretensão evangelizadora - no âmbito da religião cristã -
constituem elementos normativo-constitucionais essenciais da
liberdade religiosa, merecendo, por conta disto, um
tratamento mais cauteloso do exegeta (no caso em concreto do
Judiciário), quanto ao seu escopo.
Ressalte-se que o Estado Brasileiro, em face
do art. 5º, VI, da CB, cujo conteúdo, contexto e escopo já
foram devidamente explorados, não pode promover uma intrusão
na comunicação religiosa, mesmo que esta tenha a pretensão
clara de convencer, persuadir membros de outras religiões
ou, ainda, membros não-praticantes de sua religião, a
engrossar as suas fileiras, por meio, inclusive, de um
discurso que enjeite as demais religiões ou tenha
características nitidamente meta-racionais dirigidas a fiéis
de outras religiões.
Quanto a esta conclusão, importante se faz a
menção, aqui, da Lei n. 9.612, de 19 de fevereiro de 1998,
responsável por instituir o Serviço de Radiodifusão
Comunitária, o que poderá servir para melhor compreendê-la.
Esta Lei, em seu art. 4º, §1º, estabelece que, à programação
das emissoras do Serviço de Radiodifusão Comunitária:
“§1º É vedado o proselitismo de qualquer natureza na
programação das emissoras de radiodifusão comunitária.”
(original não grifado).
Percebe-se que o ato normativo em apreço
adota um tom assaz genérico. Veda-se o proselitismo de
qualquer natureza. Um intérprete incauto, desconhecedor do
conteúdo constitucional da liberdade de religião, poderia,
por conseguinte, compreender o termo qualquer natureza como
se estivesse a abarcar o proselitismo de conotação
religiosa, o qual estaria, juntamente com a vedação ao
proselitismo político-partidário (decorrente, este, de uma
exegese do art. 4º, IV, da Lei em comento, que apregoa a
impossibilidade de discriminação
político-ideológico-partidária), vedado pela Lei.
Ato contínuo, a vedação em apreço poderia
conduzir à (constitucionalmente equivocada) idéia de que
existiria uma vedação legal/infraconstitucional ao
proselitismo religioso, a qual estaria a denotar que a
prática normativa brasileira, quanto à liberdade religiosa,
não admite ou tolera a proselitismo no âmbito das rádios
comunitárias. Com isto, poder-se-ia concluir, via juízo
relacional, que esta vedação se aplicaria ou poderia vir a
ser aplicada, igualmente, a outros âmbitos de comunicação
(livros e semelhantes), seja por determinação legislativa,
executiva ou por mandamento judicial.
Com base no que foi discorrido e desenvolvido
acima, quanto ao conteúdo da liberdade religiosa na
Constituição, a qual protege da intromissão estatal a
liberdade de divulgação das crenças, não há como encartar,
na vedação ao proselitismo de qualquer natureza, referida
pela Lei mencionada, o proselitismo religioso. A
Constituição de 1988 não admite este enxerto. Não há como se
confundir a mensagem religiosa, a comunicação religiosa, com
as demais mensagens, dando-lhes o mesmo tratamento, conforme
bem destacou Jónatas
Machado em trecho transcrito neste tópico, e que é
plenamente aplicável à realidade constitucional pátria.
Poder-se-ia, é
certo, intentar justificar mencionada vedação, em face da
Constituição, a partir de eventual argumento jurídico
sustentando que o Estado brasileiro é um Estado
eminentemente laico,
em razão do art. 19, da CB, o qual determina, em seu inciso
I, que é vedado aos entes da federação:
“I- estabelecer cultos religiosos ou igrejas,
subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter
com eles ou seus representantes relações de dependência ou
aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de
interesse público.” (original não grifado);
Em outras
palavras, o cerne deste argumento estaria a sustentar que,
por ser laico, não poderia o Estado, constitucionalmente,
subvencionar religiões ou com elas ter alguma relação. Nesse
diapasão, a concessão do serviço de radiodifusão, previsto
na Lei n. 9.612/98, às entidades ou órgãos religiosos,
poderia ser reputada como uma forma de subvenção a uma
determinada religião, algo constitucionalmente considerado
inadmissível em virtude do art. 19, I, da CB, e que não
viria a atender qualquer interesse público. A específica
subvenção, no caso do serviço de rádio-comunitária,
decorreria do fato de as ondas de rádio serem objeto de
concessão (controle) pelo Estado, nos termos do art. 223, da
CB,
exatamente em razão da escassez destas. Com base nisto,
haveria, em tese, uma justificativa para a “neutralidade”
estatal (consolidada e concretizada, aqui, por meio da
vedação acima mencionada) em face das religiões, no âmbito
específico das rádios-comunitárias.
Esta ilação, supostamente fundamentada na
idéia de Estado laico, sem embargo, é problemática, conforme
já apontei em outra oportunidade:
“Estabelecer a regra da separação institucional entre Estado
e Igreja (regra da não-identidade), ou proclamar o Estado
como ‘neutro’ (princípio) conduz a alguns problemas de ordem
prática. (...). Uma resposta adequada não pode ser
oferecida, no âmbito constitucional, com atenção exclusiva
ao princípio da neutralidade do Estado. Essa seria uma
leitura distorcida (do ponto de vista da teoria
constitucional) e ideológica (o resultado é conhecido
previamente).” (Tavares,
2008: 16-17).
Em síntese, o grande problema desta exegese
do art. 19, I, da CB, e que denotaria um não-agir estatal,
ao menos quanto à sua prerrogativa de conceder concessões de
ondas de rádio para a execução do serviço de
rádio-comunitária às entidades religiosas, é que esta
“neutralidade” finda por acarretar um laicismo por parte do
Estado, o qual poderá justificar, constantemente, sua
passividade perante as entidades religiosas sob o argumento
de que eventual conduta comissiva por sua parte não
atenderia o interesse público (conceito este de limites e
conteúdo assaz fluídos e imprecisos). Sobre a concepção de
laicismo, já esclareci que:
“O laicismo significa um juízo de valor negativo, pelo
Estado, em relação às posturas de fé. Baseado,
historicamente, no racionalismo e cientificismo, é hostil à
liberdade de religião plena, às suas práticas amplas. A
França (com seus recentes episódios de intolerância
religiosa) pode ser aqui lembrada como exemplo mais evidente
de um Estado que, longe de permitir e consagrar amplamente a
liberdade de religião e o não-comprometimento religioso do
Estado, compromete-se, ao contrário, com uma postura de
desvalorização da religião, tornando o Estado inimigo da
religião, seja ela qual for.” (Tavares,
2008: 17).
Ou seja, mencionada ilação constitucional
poderia, por via transversa, produzir um Estado que, ao
cabo, será hostil às religiões, em razão de uma ampla gama
de justificativas (não atendimento do interesse público,
escassez de recursos, excessiva neutralidade). Mas o
Estado deve conter-se dentro de sua Constituicão. Daí
resulta que aquele tipo de inferência afronta e desrespeita,
indubitavelmente, a Constituição de 1988, na medida em que
essa conduta estatal acabaria por enfraquecer, por
menoscabar mesmo, a própria liberdade religiosa ali
assegurada. É inegável que, por vezes, esta liberdade pode
necessitar de uma ação estatal, com vistas a assegurar o seu
exercício (a necessidade de uma atuação estatal garantidora
de direitos individuais de cunho liberal, no âmbito da
liberdade de expressão, é bem desenvolvida por
Owen Fiss em
seu The Irony of free speech, 1996).
Ressalte-se que, em um caso
semelhante, Rosenberger v. University of Virginia,
envolvendo, contudo, uma Universidade norte-americana
custeada por recursos públicos e a recusa, desta
universidade, em subsidiar um jornal estudantil de conteúdo
religioso (exatamente por conta desta natureza religiosa), a
Suprema Corte dos Estados Unidos reputou a concepção de
Estado avesso à religião como inconstitucional. Para fins
deste estudo, o que importa ser destacado da decisão da
Corte é o seu argumento de que há uma
“diferença crítica ‘entre o discurso do governo encampando
uma dada religião, o que é proibido, e um discurso privado
encampando uma dada religião, o que é protegido pelo direito
à liberdade de expressão e de exercício [de consciência]’” (Rosenberger
v. University of Virginia,
Justice
Kennedy,
tradução livre).
Em outras
palavras, o Estado laico pode, sim, auxiliar na promoção das
religiões, desde que não tome para si um determinado
discurso religioso (enquanto oficial). É dizer, o Estado
pode, sim, fornecer meios para que as religiões se expressem
(concessão de ondas de rádio), desde que não realize um
juízo discriminatório quando da alocação dos recursos entre
as diversas religiões interessadas. Aplicando este
raciocínio ao caso da vedação constante do art. 4º, §1º, da
Lei n. 9.612/99, o qual veda(ria) o proselitismo, inclusive
religioso, tem-se que esta norma não poderá encontrar
fundamento constitucional na idéia de Estado laico,
constante do art. 19, I, da CB. Aqui a Constituição não está
a proibir que particulares, por meio de instrumentos ou bens
detidos ou controlados pelo Estado, possam professorar uma
dada religião, mas sim que o Estado não pode, em seu próprio
nome, professorar uma determinada religião, excluindo as
demais, ou, ainda, atuar como um verdadeiro gatekeeper,
definindo qual religião pode ter sua voz veiculada e quais
não. Se não está essa interpretação ancorada no art. 19,
inc. I, da CB, estará, inevitavelmente, afrontando o art.
5º, VI, da CB.
Destaca-se, além disto, que o eventual argumento da escassez
de recursos (com base na premissa de que não haveria
recursos – ondas de rádio – suficientes para atender a todas
as religiões), o qual poderia sustentar este controle
estatal proibitivo, há de ser peremptoriamente afastado. É
que mesmo em Rosenberger este argumento já havia sido
esposado (fundo escasso para custear publicações discentes)
e terminativamente afastado, por ser “simplesmente errado”:
“O governo não pode justificar a discriminação quanto a um
ponto de vista dentre os emissores privados, com base em um
fato econômico de escassez” (Rosenberger v. University of
Virginia, Justice
Kennedy, tradução livre)
Portanto, conclui-se aqui que não há como,
sob o direito constitucional à liberdade religiosa, rechaçar
a legitimidade constitucional do proselitismo religioso,
tendo em vista que tal conduta é ínsita à liberdade de
divulgação das crenças ou, simplesmente, liberdade de
crença. Logo, o art. 4º, §1º, da Lei n. 9.612/98, não pode
ser interpretado de maneira a inserir em seu manto
proibitivo o discurso religioso, sob o risco de se promover
um inescusável desrespeito à Constituição ou, pior ainda, um
descompasso entre a normatividade constitucional e a
realidade prática e infraconstitucional brasileira (cf.
Dimoulis,
http://www.ibec.inf.br/revista.html).
Ressalte-se,
nesse sentido, que o proselitismo religioso já obteve,
inclusive, a sua constitucionalidade chancelada pela Suprema
Corte dos EUA. Paradigmático é o caso de Cantwell v.
Connecticut, envolvendo três Testemunhas de Jeová que foram
presas por pregar na Rua Cassius, na qual, segundo consta,
residiam, em sua maioria, católicos.
A pregação consistia na abordagem de transeuntes e de
moradores, apresentando a estes, mediante autorização dos
destinatários, panfletos e livros, os quais poderiam ser
adquiridos, desde que o comprador se comprometesse a lê-los.
Mencionada conduta abarcava, ainda, a apresentação de um
livro, em versão sonora, sob o sugestivo título Inimigos,
cujo conteúdo incluía ataques à religião católica:
“A fita tocada por
Cantwell abarca uma série de ataques gerais a todos
os sistemas religiosos organizados, tratando-os como
instrumentos de Satã e injuriosos ao Homem; posteriormente,
se dirige à igreja católica por meio de pesadas críticas,
pautadas em termos que naturalmente ofenderiam não apenas
fiéis desta religião, mas todos os outros que respeitam a fé
religiosa de seus pares.” (Cantwell v. Connecticut,
Justice Roberts,
tradução livre).
Inobstante este conteúdo que poderia ser
considerado agressivo, o Justice Roberts, responsável por
apresentar a opinião da Corte, bem destacou a natureza
conflituosa das religiões e suas conseqüências para o
deslinde de casos como esse num contexto de liberdade
religiosa:
“No reino da fé religiosa, e da crença política, diferenças
agudas podem surgir. Em ambos os casos, as doutrinas de uma
afiguram-se para a outra como supinamente equivocadas. Para
persuadir os demais acerca de seus pontos de vista, o
defensor [de uma religião], conforme sabemos, por vezes,
pode se valer do exagero, do aviltamento dos representantes
que foram, ou são, proeminentes na [outra] igreja, e, mesmo,
do falso testemunho. Mas as pessoas desta nação, em face da
história, determinaram que, apesar da probabilidade de
abusos e excessos, estas liberdades são, no longo prazo,
essenciais para as opiniões valorosas e para a conduta
adequada dos cidadãos partícipes de uma democracia.(...).
“Embora o conteúdo da gravação, de maneira natural, tenha
gerado animosidade, nós pensamos que (...) a comunicação dos
querelantes, considerada à luz das garantias
constitucionais, não representou uma clara e patente ameaça
à paz pública, de forma a configurá-la como sujeita a
punição” (Cantwell v. Connecticut,
Justice Roberts,
original não grifado, tradução livre).
Portanto, é pacífico o entendimento segundo o
qual o proselitismo religioso, mesmo com os elementos que
indubitavelmente o marcam, quais sejam, a negação e a
desconsideração das demais religiões, gerando, em certo
grau, uma animosidade é, em realidade, compreensível, como
elemento integrante da liberdade religiosa (tecnicamente,
está alocado em seu núcleo essencial). Este foi o
posicionamento adotado pela Suprema Corte dos Estados
Unidos, país responsável por constitucionalizar a liberdade
religiosa. Destaca-se, sem embargo, que, embora o
proselitismo religioso esteja constitucionalmente protegido,
certas condutas haverão de ser reputadas excluídas e
constitucionalmente proibidas. Discursos que incitem
claramente a violência e a quebra da paz não são protegidos
pela liberdade de divulgação das crenças. Da circunstância
de a liberdade de religião incluir inevitavelmente o
proselitismo não decorre, evidentemente, que se esteja a
proteger toda e qualquer conduta, conforme a própria Suprema
Corte dos EUA, no caso acima, já decidiu:
“Há limites ao exercício destas liberdades [de divulgação da
crença ou, segundo denominação norte-americana, de agir]. O
perigo nestes períodos de atividades coercitivas em que
aqueles que iludidos por conceitos raciais incitam a
violência e a quebra da paz, com vistas a despojar terceiros
de seu igual direito ao exercício destas liberdades, é
enfatizado por eventos familiares a todos.” (Cantwell v.
Connecticut,
Justice Roberts, original não grifado, tradução
livre).
Proselitismo, desta feita, não pode ser
confundido com comunicação incitando a violência ou
promovendo, por exemplo, uma guerra santa com as demais
religiões (cf.
Tavares,
2008: 15).
Estes conteúdos, desnecessário seria dizê-lo, não estão
protegidos pela liberdade de divulgação de crenças.
II.3.
Propósitos evangelizadores/proselitistas e o suporte fático
da liberdade religiosa
Com vistas a cumprir sua pretensão
universalizante, as religiões, invariavelmente, lançam mão
do proselitismo religioso, com o intuito de arregimentar
crentes, prosélitos. Este recurso se encontra devidamente
protegido pela liberdade constitucional de divulgação da
crença. Aliás, outra não poderia ser a conclusão, uma vez
que o proselitismo invariavelmente afigura-se como um dos
elementos basilares do cristianismo e da Igreja católica
(vide, nesse sentido,
Marcos, 16, 15 e Atos dos Apóstolos, 2, 38-39).
No que se refere especificamente ao
proselitismo, viu-se, ademais, no último item, que este não
há de compreender, por exemplo, a incitação à violência ou a
promoção da guerra santa (cf.
Tavares, 2008:
586). Estes conteúdos não estão protegidos pela ordem
constitucional. E, frise-se, por uma questão assaz lógica.
Proselitismo visa a conversão de membros de outras religiões
e não a sua destruição. O êxito de uma dada igreja há de se
dar pela conversão dos membros das demais, e não pela
destruição destes.
Não se pode confundir
proselitismo e incitação à violência, por meio de discurso
religioso. Ao praticar proselitismo, automaticamente, para
alguns, estar-se-ia discriminando e promovendo verdadeira
Guerra Santa; estar-se-ia solicitando a seus fiéis que
matassem ou realizassem atos de violência ou vandalismo em
nome de sua fé.No entanto, há de separar na dimensão do
discurso aquilo que é realmente a quadra da intenção íntima
do autor desse discurso, da pontencialidade de que a
comunicação poderá acarretar na mente dos receptores e.
Em que pese a batalha retórica travada entre
membro de determinadas religiões e seitas distintas e os
laicos, no espaço público, a salvação que regularmente
preenche o discurso voltado a converter os membros de uma
sociedade a uma determinada religião, sem embargo, produz-se
da maneira como é peculiar às teorias morais de primeira
ordem, por meio da negação ou crítica à outra teoria
moral/religião
Assim como a pretensão evangelizadora
convertedora permeia essa espécie de discurso,
provavelmente, estará repleta de excertos rejeitando e
contestando as demais religiões, configurando-as como obras
demoníacas (técnica esta presente, também, no caso supra,
Cantwell v. Connecticut, e que foi reputada plenamente
constitucional pela Suprema Corte dos EUA)
Voltando à tarefa de conversão, ressalte-se
que, se esta compõe o fulcro do cristianismo, é ainda mais
essencial para os integrantes da Renovação Carismática, um
dos movimentos religiosos da Igreja Católica que traz como
principal missão evangelizar, a título exemplificativo. Bem
apresentam uma visão sintetizada quanto aos carismáticos,
S. Radhakrishnan
e P. T. Raju:
“No Novo Testamente, quando se descreve a realidade viva da
vida comunal cristã, o homem cristão, em geral, é
representado como o homem carismático, como o homem repleto
dos poderes do Espírito Santo, como o homem por meio do qual
se realizam os dons do Espírito Santo.” (Radhakrishnan;
Raju, 1993: 524, tradução livre).
Estes mesmos autores concedem grande ênfase e
destaque aos carismáticos nos feitos em prol do
cristianismo:
“O Espírito Santo, como o espírito da liberdade, tem sido o
fermento da história da Igreja durante todos os séculos:
todas as grandes reformas e incontáveis fundações de novas
igrejas e seitas são marcas distintivas das novas revelações
carismáticas. As grandes criações da história das igrejas
brotaram dos carismáticos, que têm aparecido em todas as
épocas.” (Radhakrishnan; Raju, 1993: 528, tradução livre).
Esta dimensão que podem assumir certas
religiões, com um tom mais intenso quanto à proposta de
conversão, não pode ser ignorada ou considerada ilícita,
sendo plenamente compatíve e consistente com a própria idéia
de liberdade de propagação religiosa.
III. LIBERDADE RELIGIOSA E CRIMES CONTRA O
SENTIMENTO RELIGIOSO
O art. 20, §2º, da Lei n. 7.716/89 , Lei
esta responsável por definir os crimes de raça e de cor, bem
como os de discriminação religiosa. A redação do preceptivo
em comento, alterado pela Lei n. 9.459, de 1997, é a
seguinte:
“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência
nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
§2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por
intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de
qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.”.
A criminalização de algumas condutas
reputadas como laesae religionis pelo Código Penal e
pela legislação penal esparsa (Lei n. 7.716/89). É dizer,
cumpre aqui ponderar e esclarecer que nem todo o discurso
religioso pode ser reputado como constitucionalmente
protegido (o que já foi mencionado no tópico acima, quanto à
incitação de guerra santa e condutas violentas), sendo que
aqueles que extravasam o âmbito do proselitismo religioso
incidem em violações à ordem jurídica, devendo ser
repreendidos.
III.1.
Dos crimes contra o sentimento religioso
O título V,
do Código Penal, dispõe sobre os crimes contra o sentimento
religioso (e contra o respeito aos mortos). É-lhe específico
o art. 208, cuja redação está a seguir representada:
“Art. 208.
Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou
função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática
de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto
de culto religioso:
“Pena –
detenção, de um mês a um ano, ou multa;”
O
dispositivo penal traz, conforme se depreende de sua
leitura, três figuras penais distintas: (i) escárnio por
motivo de religião; (ii) impedimento ou perturbação de
cerimônia ou prática de culto e; (iii) vilipêndio público de
ato ou objeto de culto.
Importa
discorrer mais de perto sobre a primeira figura penal, uma
vez que esta se reporta a conduta referente à comunicação
religiosa, tema que compõe o elemento central do presente
estudo jurídico. Nessa linha de argumentação, quanto ao
conceito de escárnio, precisa é a definição já clássica
oferecida por Nelson
Hungria:
“Escarnecer é
achincalhar, zombar afrontosamente, ridicularizar
sarcasticamente, exprimir menoscabo por meio de mofa
grosseira e cínica” (Comentários ao Código Penal, vol. VIII.
Rio de Janeiro: Forense, 1943, p. 63).
Um exegeta
incauto, desconhecedor do conteúdo constitucional da
liberdade religiosa, poderia, erroneamente e em detrimento
da Constituição e da ordem jurídica brasileira em sua
totalidade, intentar tipificar o proselitismo e a pretensão
evangelizadora como o escárnio penalmente punível. Contudo,
conforme bem rememora
Nelson Hungria:
“É preciso que o
sujeito passivo seja pessoa determinada. O escárnio
dirigido, por exemplo, aos católicos ou protestantes em
geral não constitui o crime em questão.” (Comentários ao
Código Penal, vol. VIII. Rio de Janeiro: Forense, 1943, p.
64, original não grifado).
Explica-se
aqui que a desconsideração da comunicação geral, sem
destinatário individualizado, é leitura constitucionalmente
coerente e conforme. Afinal, consoante foi visto, é natural
do discurso religioso praticado pelas Igrejas, em especial
pelas instituições daquelas religiões de pretensão
universalista, pregar o rechaço às demais religiões. Esta
postura integra o núcleo central da própria liberdade de
religião. Nesse diapasão, o legislador penal foi sábio em
excluir da tipificação penal o discurso genérico das
religiões que se destina contra as demais, justamente porque
sua eventual criminalização frustraria a liberdade religiosa
e, mais importante, implicaria a inconstitucionalidade da
norma jurídica assim construída.
A prática
jurídica bem demonstra ser legítima e compreensível a
assertiva comumente propagada de que determinadas religiões
são instrumentos do diabo ou epidemias; isto não configura
crime, não deve ser considerado como uma das condutas
alcançadas pela tipificação penal do art. 208, do Código
Penal. É, sim, uma posição ideológica e dogmática legítima
daquela pessoa que está a emitir a mensagem religiosa
(p.ex., decisão do extinto TACrSP, RJDTACr 23/374).
Assim, eventual exegese generalizadora do
preceptivo em questão, abarcando uma proibição, para toda
religião, quanto à crítica às demais religiões,
configurando-as imediatamente e automaticamente (bem como de
maneira irrefletida) como práticas de escárnio, implicará
indelével oposição à inviolabilidade constitucional da
liberdade de crença, dimensão constitucional da liberdade
religiosa que protege a divulgação dos valores encampados
por determinada religião, oposição esta que é e será
reputada inconstitucional. Outro não é o magistério, a ser
seguido na espécie, de
Jónatas Machado (1996: 229, original não grifado):
“(...) a criminalização do proselitismo em termos genéricos
traduzir-se-ia, não na protecção de um bem fundamental
devidamente identificado, mas sim na proibição de uma
conduta religiosa, independentemente do impacto que a mesma
pudesse vir a ter, ou não, nos bens fundamentais
constitucional e penalmente tutelados. Tal solução, ao
transferir para as autoridades administrativas vastos
poderes de restrição do direito à liberdade religiosa, deve
ter-se, evidentemente, como constitucionalmente
inadmissível.”.
Em síntese,
eventuais criminalizações generalizantes de comunicações ou
expressões religiosas pelo Código Penal são incompatíveis
com a Constituição da República.
III.2. Da
interpretação constitucionalmente adequada do art. 20, §2º e
§3º da Lei n. 7.716/89, em face da liberdade religiosa
Conforme transcrito acima, a Lei
n. 7.716/98 criminaliza as condutas discriminatórias e
preconceituosas. Especificamente em seu art. 20, reputa como
crime a prática, o induzimento e a incitação da
discriminação religiosa, sendo que, caso o ato
discriminatório seja divulgado por intermédio dos meios de
comunicação, a pena será aumentada (art. 20, §2º, da Lei em
comento).
É preciso, preliminarmente, compreender o
escopo da vedação à discriminação religiosa. Esse objetivo
só poderá ser definido de forma a respeitar a liberdade
religiosa, sob o risco de, ao assim não proceder, ensejar
indelével mácula ao art. 5º, VI, da CB. Não há que
criminalizar o discurso religioso proselitista, em termos
genéricos, como se este estivesse a configurar discriminação
por si só. Não se pode reputar como discriminação qualquer
discurso que avente desigualações. O termo
“discriminação” não pode ser considerado como um conceito
capaz de subverter e eliminar por completo direitos de
envergadura constitucional, como a liberdade de expressão e
de religião (liberdade de divulgação de crenças).
Com efeito, preciso é o
magistério de Norberto
Bobbio segundo o qual a desigualação desemboca em
discriminação quando completa três fases ou passos. O
primeiro passo consiste na realização de um juízo de fato:
“(...) isto é, na constatação da diversidade entre homem e
homem, entre grupo e grupo. Num juízo de fato deste gênero,
não há nada de reprovável: os homens são de fato diferentes
entre si. Da constatação de que os homens são desiguais,
ainda não decorre um juízo discriminante.” (Bobbio,
2000: 108).
Já o segundo passo a que faz menção
Norberto Bobbio
envolve a realização de um juízo de valor:
“O juízo discriminante necessita de um juízo ulterior, desta
vez, não mais de fato, mas de valor: ou seja, necessita que,
dos dois grupos diversos, um seja considerado bom e o outro
mau, ou que um seja considerado civilizado e o outro
bárbaro, um superior (em dotes intelectuais, em virtudes
morais etc.) e o outro inferior. Compreende-se muito bem que
uma coisa é dizer que dois indivíduos ou grupos são
diferentes, tratando-se de uma mera constatação de fato que
pode ser sustentada por dados objetivos, outra coisa é dizer
que o primeiro é superior ao segundo.” (Bobbio,
2000: 108, original não grifado).
Ressalte-se, aqui, em face da transcrição
acima, que um juízo de valor em que se cria ou estabelece
uma diferenciação entre dois grupos, sob o argumento de que
um destes é superior ou melhor ao outro, não se configura,
inicialmente ou automaticamente, como uma discriminação
penalmente punível. Deixando, momentaneamente, de lado esta
questão, que será em seguida explicitada, não há como
afastar a presença deste tipo de juízo nos embates
religiosos. A superioridade de uma religião em relação à
outra estará presente no argumento, que é encampado por
quase todas as religiões, de que será ela própria, e não a
sua rival, que leva à verdade. Cada religião, nesse sentido,
prega ser mais verdadeira que as demais. Corrobora este
argumento, uma vez mais, a defesa
de
Santo Agostinho, retratada por
Christopher Dawson:
“Este caminho [que leva à Verdade permanente] se encontra
somente no Cristianismo, na sabedoria sobrenatural que
mostra ao homem não apenas a verdade, mas também os meios
para desfrutá-la.” (Dawson,
2001: 144, original não grifado).
A etapa derradeira para configurar uma
desigualação efetivamente como discriminação (penalmente
sancionável e condenável) reside num juízo obrigacional, por
parte daquele que se reputa superior, de explorar,
escravizar ou eliminar aquele que é considerado inferior:
“Para que a discriminação libere todas as suas conseqüências
negativas, não basta que um grupo, com base num juízo de
valor, afirme ser superior ao outro. Pode-se muito bem
pensar num indivíduo que se considere superior ao outro mas
não extraia de modo algum deste juízo a conseqüência de que
é seu dever escravizá-lo, explorá-lo ou até mesmo
eliminá-lo.” (Bobbio, 2000: 109, original não grifado).
Em outras palavras, um discurso desigualador
somente redundará em discriminação se trouxer em seu
conteúdo um dever, por parte daqueles que se autoproclamam
superiores, de explorar, escravizar ou eliminar (eliminação,
aqui, em um sentido físico ou territorial) os considerados
inferiores. Este ponto é essencial para a resolução da
dúvida que paira sobre os limites do discurso religioso
proselitista e a sua configuração ou não em prática
discriminatória.
Para se chegar a um bom termo nesta
discussão, importante se faz definir, finalmente, o sentido
de explorar e eliminar.
Em outras palavras, seria o proselitismo uma
maneira de se discriminar (no sentido penal), na justa
medida em que o emissor busca converter pagãos ou membros de
outras religiões à sua própria, sob o argumento de
superioridade desta? A resposta é desenganadamente negativa,
uma vez que, se assim fosse, uma importante dimensão da
liberdade religiosa seria suprimida, a saber, a liberdade de
divulgação de crenças, embora seja também uma verdade
incontestável que o proselitismo se pauta em uma relação
entre superior e inferior, posto que o atrativo central da
conversão reside no suposto argumento que a religião que
converte detém uma verdade superior à antiga verdade do
convertido. Vem a corroborar esta ilação o firme magistério
de Norberto Bobbio:
“com base precisamente no juízo de que uma raça é superior e
a outra inferior, sustenta que a primeira deve comandar, a
segunda obedecer, a primeira dominar, a outra ser subjugada,
a primeira viver, a outra morrer. Da relação
superior-inferior podem derivar tanto a concepção de que o
superior tem o dever de ajudar o inferior a alcançar um
nível mais alto de bem-estar e civilização, quanto a
concepção de que o superior tem o direito de suprimir o
inferior.” (Bobbio,
2000: 109, original não grifado).
O embate religioso, invariavelmente, envolve
esta concepção de que determinada religião ou igreja há de
ajudar o terceiro a alcançar um nível mais alto de
bem-estar, de salvação. Esta é a pedra angular, por exemplo,
do cristianismo, presente na sua missão de evangelizar (tema
já desenvolvido neste presente artigo), reputada como um
dever, mas não apenas do cristianismo. Esta conduta,
contudo, não implica discriminação. Apenas a concepção de
que o superior tem o direito de suprimir o inferior (que só
pode ser verificada adequadamente em cada caso concreto e
que não se manifesta no caso em apreço) é que enseja prática
discriminatória, a ser, por conseguinte, considerada
legalmente (penalmente) censurável:
“Somente quando a diversidade leva a este segundo modo de
conceber a relação entre superior e inferior é que se pode
falar corretamente de uma verdadeira discriminação, com
todas as aberrações dela decorrentes.” (Bobbio,
2000: 109-110, original não grifado).
O discurso proselitista, desta feita,
enquadra-se na primeira concepção, do dever de ajudar o
membro de outra religião, vista convictamente como
equivocada, de alcançar um nível mais alto de bem-estar e
valores. Não está, portanto, promovendo guerra santa, ou,
ainda, incitando violência ou perseguição aos membros das
demais religiões, com vistas a eliminá-los.
Chega-se, aqui, portanto, a outra importante
conclusão deste estudo. A discriminação religiosa, proibida
pelo art. 20, da Lei n. 7.716/89, refere-se ao discurso que
incita a supressão da outra religião, por meio de
perseguições e atos de violência. Discursos que visam a
converter, pela fé, os membros das demais religiões, a outra
fé, não hão de ser reputados como discriminatórios.
A tolerância, em termos religiosos, não pode
ser compreendida como, simplesmente, indiferença no sentido
de conviver com as demais, por ignorá-las. E, ademais, a
tolerância não pode significar a imposição de que uma
religião reconheça outras religiões e as repute igualmente
válidas (cf., já visto, o magistério de
Geoffrey Harrison,1979:
287).
Afinal, este juízo lógico redundaria na própria supressão ou
desvirtuamento (por intervenção do Estado-normativo) das
religiões de pretensão universalista e da própria idéia de
evangelização, presente na Igreja Católica. Tolerância, no
âmbito religioso, desta feita, pode implicar, sim, o
direcionamento de uma religião para os fiéis de outras
crenças, desde que este direcionamento se dê pela via da
persuasão discursiva, e não por meio da violência. Nesse
sentido, uma vez mais,
Bobbio:
“(...) mas quem percorreu a história da liberdade religiosa
sabe que, em seu nascimento, nos séculos XVI e XVII, a idéia
da tolerância não foi um produto da indiferença religiosa,
mas, quando muito, de uma fé não imposta mas livremente
professorada.” (Bobbio,
2000: 137, original não grifado)
A
tolerância, no âmbito religioso, pressupõe, sim, a
desconsideração das demais por uma determinada Igreja, a
qual acreditará, contudo, que a força dos seus argumentos (e
não outros subterfúgios como a força e a perseguição), de
sua verdade, será suficiente para produzir prosélitos. A
violência e a perseguição é que são práticas intolerantes, e
não os argumentos pautados nas próprias crenças religiosas.
Nesse sentido,
Norberto Bobbio:
“Pode-se
acreditar que a verdade seja única, e que eu a possua, mas
que não esteja destinada a superar o erro a não ser à custa
de muito trabalho e risco. Trata-se, aqui, de saber se o
método para fazer triunfar a verdade em que acredito é o
recurso à persuasão ou à força, à refutação do erro ou à
perseguição de quem erra. Aquele que escolhe a primeira
estrada é tolerante. Mas quem ousaria dizer que ele
renunciou à própria verdade mais do que aquele que segue a
segunda estrada? No fundo, ele renunciou simplesmente a
empregar um certo modo de fazer que a verdade se afirme. E é
uma renúncia que revela – ainda que prescindindo de toda
avaliação moral –, junto com uma disposição mais benévola
para com a inteligência do interlocutor, também uma maior
confiança nas próprias idéias, e não o contrário.” (Bobbio,
2000: 140, original não grifado).
Para o
teórico italiano, esta é a modalidade de tolerância a ser
praticada pelos homens de fé. É a correta aplicação da regra
da tolerância no que se refere aos assuntos da fé:
“Foi preciso que
a liberdade de fé ou de opinião, assegurada por uma correta
aplicação da regra da tolerância, passasse a ser reconhecida
como a melhor condição para fazer que, mediante a persuasão
e não a imposição, triunfe a verdade em que se crê.” (Bobbio,
2000: 151, original não grifado)
IV.
Conclusões
Foi possível verificar, aqui, que em um
primeiro momento, o crime de escárnio religioso, tipificado
pelo art. 208, do CP, não abarca aquelas comunicações de
natureza genérica, destinadas contra outras religiões ou
instituições religiosas. Estas são reputadas como
manifestações constitucionalmente admitidas pelo art. 5º,
VI, da CB, mais precisamente pela liberdade de divulgação
das crenças.
Não há como confundir discriminação
religiosa com proselitismo. São condutas distintas. A
discriminação somente é configurada quando, além de implicar
um juízo de fato e de valor quanto às eventuais diferenças
existentes entre o homem, também enseja uma concepção de que
aquele reputado como inferior há de ser suprimido, eliminado
ou explorado. O discurso proselitista não encampa argumentos
favoráveis à violência contra os que não professoram a mesma
religião do emissor.
Afinal, é próprio que religiões assumam
abertamente a pretensão universalizante e, por derradeiro, a
rejeição das demais.
A liberdade
religiosa, constante do art. 5º, VI, da CB, e seu sentido
garantidor da inviolabilidade de consciência e de crença,
denotam que os valores transcendentais detidos pelo
indivíduo não podem sofrer direcionamento estatal. Mais do
que isso, demonstrou-se que o religioso, além de estar
protegido normativamente para crer em determinada verdade,
pode, igualmente, agir de acordo com esta e, em uma dimensão
aberta (coletiva), professorar as suas crenças, com vistas a
“converter” terceiros. Este ato de professorar a crença está
protegido, especificamente, pela inviolabilidade de crença
ou, para se valer de outra terminologia, a liberdade de
divulgação das crenças, na intersecção com a liberdade de
expressão. Mencionado direito mantém ampla e próxima relação
com a dignidade da pessoa humana, construindo um sentido
específico deste importante direito fundamental.
A liberdade
de divulgação das crenças açambarca em seu bojo o
proselitismo religioso, o qual é peculiar das religiões de
natureza universalista. Quanto a este aspecto, ressalte-se
que o discurso proselitista praticado por uma dada religião
pode, sim, implicar a negação das demais. É que,
invariavelmente, as religiões são teorias morais de primeira
ordem, as quais pressupõem a negação das demais teorias
existentes. Nesse diapasão, não há como buscar afastar do
manto protetor do art. 5º, VI, da CB, o discurso
proselitista, sob pena de, ao assim fazê-lo, nulificar a
liberdade religiosa das religiões universalistas, tal como o
cristianismo, suprimindo-as.
Por fim, não
há como, sob o direito constitucional da liberdade religiosa
e de expressão, exigir uma conduta comunicacional de
tolerância que fosse mera sinonímia de indiferença, por
parte das diversas religiões. Tolerância, no âmbito da
liberdade de expressão religiosa, pressupõe, sim, um
discurso contrário às demais religiões, em sua pretensão
proselitista. A conversão dos adeptos das outras religiões
há de se dar pela persuasão dos argumentos, e não pela força
ou violência. Este é o sentido constitucionalmente adequado
da tolerância, no seio da liberdade religiosa, e não a
imposição de que as religiões reconheçam, umas às outras, a
validade das crenças opostas, discordantes ou concorrentes.
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