A ENTREGA VIGIADA E SUAS REPERCUSSÕES PENAIS

                                               Vicente Greco Filho*

 

Sumário: 1. Direito penal moderno e a criminalidade organizada; 2. Concurso de pessoas, quadrilha ou bando e organização criminosa; 3. A organização criminosa e as medidas de entrega vigiada e ação controlada; 3.1. Natureza jurídica e efeitos penais da entrega vigiada; 3.2. A necessidade de autorização judicial e sua natureza; 4. Conclusões finais; 5. Bibliografia.

                Resumo: Não há definição legal de organização criminosa, cujo conceito deve manter-se fluído. Com tratamento, abrangência e situações diversas, a ação controlada e a entrega vigiada são medidas previstas na Lei de drogas e na Lei de combate ao crime organizado. A especificidade de tratamento dada pela Lei de drogas não se estende para outros casos. A não atuação policial interfere tão somente no art. 301 do CPP. A ação controlada não é meio e sim instrumento de prova. Salvo no caso dos crimes de drogas, não depende de autorização judicial, por ter natureza de ato administrativo. Tratando-se de jurisdição voluntária, nos crimes de drogas a autorização judicial não faz coisa julgada.

Abstract: There is no legal definition of criminal organization, whose concept must remain pliable.   The measures of controlled action and the controlled delivery are differently treated in the range and situations by the Brazilian Drug Law and the Organized Crime Law. The non-action of police interferes only in the article 301 of the Brazilian Criminal Procedure Code. The controlled action is not a mean but an instrument of evidence. Except in the case of drug crimes, there is no need for judicial authorization, because it has the nature of an administrative act. Because it is a hypothesis of voluntary jurisdiction, in the case of drug crimes the judicial authorization does not makes res iudicata.

                Palavras-chave: Organização criminosa – Lei de drogas brasileira – Entrega vigiada – Ação controlada – Agente infiltrado -  Instrumento de prova – Efeitos penais – Flagrante delito

Key-words: Criminal organization – Brazilian Drug Law – Controlled Delivery – Controlled Action – Underground Agent - Instrument of evidence – Criminal effects – Flagrant crime

 

1. Direto penal moderno e a criminalidade organizada

 

Na evolução histórica secular do Direito penal, dois fenômenos paralelos mostraram alterações significativas: de um lado, a natureza dos bens jurídicos tutelados, de outro o tipo de criminoso ou as formas de criminalidade.
Quanto ao primeiro, salvo nas ações não desejadas contra o Estado ou o soberano, que, na verdade, não eram tratadas por um Direito penal mas pela pura ação da força, em épocas primitivas e até meados do século XIX a preocupação era a da tutela de bens jurídicos individuais. O furto, adotando como exemplo os crimes de conteúdo econômico ou patrimonial, era previsto desde o Código de Hamurabi; Roma antiga já previra o estelionato, com outra conformação, é certo, mas também protegendo o patrimônio individual.  É possível identificar como uma das primeiras preocupações com direitos coletivos, ainda no campo econômico-patrimonial, os crimes falimentares e, entre nós, somente na segunda metade do século XX os crimes contra a economia popular. Da década de 1980 para cá a mudança de rumo foi radical: sem deixar de existirem os crimes de tutela do patrimônio individual a preocupação passou a ser a da ordem econômica, financeira, daí a tipificação dos crimes contra o sistema financeiro, contra a ordem econômica, de proteção das relações de consumo etc. Também são a partir dessa época, os crimes contra o patrimônio ambiental, e outros de proteção de interesses coletivos ou difusos.
No plano do criminoso ou da criminalidade, no passado, o Direito penal focalizava o criminoso individual, a criminalidade em concurso e, no máximo, a quadrilha ou bando. Na atualidade a preocupação mundial é com a organização criminosa, com a criminalidade organizada.

 

2. Concurso de pessoas, quadrilha ou bando e organização criminosa

Inicialmente, há que se distinguir as três situações, o que nem sempre vem sendo feito com clareza: o concurso, a quadrilha ou bando e a organização criminosa.
O concurso, que pode ocorrer em co-autoria ou participação, consiste na prática do crime por mais de um agente, com ou sem divisão de atividades, na prática de crime determinado ou de crimes determinados.
O Código Penal em vigor, como se sabe, em seu art. 288, por sua vez, prevê o delito de quadrilha ou bando, que consiste em "associarem-se mais de três pessoas em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes". A Lei nº 11.343/2006, Lei de Drogas, por sua vez, prevê o crime de associação, admitindo a concorrência de duas ou mais pessoas com fim da prática dos crimes nela previstos .
Não há definição legal da forma ou modo de ser da quadrilha ou bando, mas a idéia é a de que se trata da reunião de pessoas que se ajustam para a pratica de crimes, em futuro concurso ou não. A quadrilha ou bando é crime que antecede o crime fim e é independente dele e está vinculada à concepção dos antigos bandos ou quadrilhas consistentes de grupos de criminosos em que todos podem fazer a mesma coisa, de regra se conhecem e podem ter uma chefia imediata de todos. Difere do concurso porque na quadrilha ou bando há uma conduta própria antecedente de ajuste com ânimo associativo se não permanente mas com a finalidade da prática de crimes futuros em semelhança de situações. Já naquele, o concurso, a reunião ou concorrência de pessoas é na prática de determinado crime, independentemente de conduta anterior associativa. A quadrilha ou bando, exatamente, consiste na conduta associativa, que sobrevive prévia e paralelamente à prática do delito a que se propõe a associação, subsistindo ainda que o crime ou crimes visados não cheguem sequer a ser tentados ou ainda que o crime visado seja praticado individualmente por um de seus membros . Este estará em concurso material com o crime do art. 288 do Código Penal ou 35 da Lei nº 11.343/2006, se for o caso; os demais membros praticam apenas a infração de quadrilha ou bando ou associação porque o segundo crime foi praticado individualmente. Já no concurso, um crime é praticado por mais de uma pessoa sem que tenha ocorrido o pacto associativo próprio de uma sociedade de fato.

  Igualmente, não há definição legal de organização criminosa, figura introduzida no Brasil pela Lei nº 9.034/95, que, em sua versão original, a equiparava à descrição do art. 288 do Código Penal, aspecto que foi alterado pela Lei n° 1o.217, apresentando as figuras como de conteúdo diferente, lado a lado: quadrilha ou bando e organização criminosa. A Lei n° 9.034 estabelece medidas de ordem processual, investigativa e administrativa no com­bate ao crime organizado, mas não define as características de uma organização criminosa nem prevê a organização como fato criminoso em si, diferentemente do que ocorre em outras legislações.
Há quem sustente, contudo sem razão, que no Brasil existe definição legal de associação criminosa e que ela se encontra na chamada Convenção de Palermo.
A Convenção de Palermo é o nome pelo qual é mais conhecida a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, apesar de editada em Nova York tendo em vista ter sido decorrente de três instrumentos firmados na capital da Sicilia. Foi adotada em Assembléia da Organização das Nações Unidas (ONU), no mês de novembro do ano de 2000, na cidade de Nova Iorque. No Brasil, a Convenção de Palermo  foi promulgada pelo Decreto 5.015, de março de 2004. No âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Convenção de Palermo foi objeto de Resolução, aprovada na XXX Assembléia Geral, contando com o apoio do Governo brasileiro.
Dispõe a referida Convenção em seu art. 2:
Terminologia

Para efeitos da presente Convenção, entende-se por:

  1. "Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material
  2. ..................................

 

Tal conceituação, porém, “data venia”, não pode ser considerada como tal porque imprestável para o Direito brasileiro, eis que não estabelece requisitos distintivos entre o nosso “quadrilha ou bando” e o “grupo criminoso organizado”, distinção hoje necessária para os efeitos processuais penais e penais. A expressão "organização criminosa" (entidade diferente, portanto de quadrilha ou bando e nisso a Convenção de Palermo de nada serve) é utilizada para fins penais, além da Lei n° 9.034, por exemplo, no crime de lavagem de dinheiro e nos da Lei de Drogas.
Há quem afirme, por outro lado, que  lei deveria, deve ou deverá estabelecer os requisitos para que uma associação ou grupo se constitua em organização, mas não cremos que isso seja adequado, uma vez que as organizações são muito diferenciadas e uma definição restringiria o conceito, tomando impossível a sua identificação em face de exigências rígidas e expressas. O conceito deve manter-se fluido, como fluido é o próprio modo de ser de uma "societas sceleris". Da doutrina, então, é que podem ser ex­traídas as características básicas de uma organização criminosa que podem não estar presentes em todos os casos, mas servem de base para o enquadramento ju­rídico da situação. São apontados os seguintes elementos, entre outros, para o reconhecimento de uma organização criminosa:

1- Estrutura organizacional, com células relativamente estanques, de modo que uma não tem a identificação dos componentes da outra.
2- Especialização de tarefas, de modo que cada uma exerce uma atividade predominante. Tomando como exemplo uma organização criminosa para o tráfico ilícito de entorpecentes, dir-se-ia que tem ati­vidade definida o importador, o transportador, o destilador, o financeiro, o traficante de área e distribuidor e o traficante local, como uma rede, das artérias aos vasos capilares.
3- A existência de vários níveis de hierarquia, em que os subordinados nem sempre, ou quase nunca, conhecem a identidade da chefia de dois ou mais escalões superiores ou ainda que conheçam a chefia mais elevada não têm contato direto com ela e não podem fornecer provas a respeito.
4- A possível, e quase necessária, existência de infiltração de membros da organização em atividades públicas, no poder executivo, legislativo, Ministério Público e judiciário e a corrupção de agentes públicos.
5- A tendência de durabilidade.
6- A conexão com outras organizações, no mesmo ramo ou em ramo diferente, quando não a atividade em vários ramos.
7 - A coação, mediante violência, chantagem ou aproveitamento da condição de pessoas não participantes, mas que passam a ser auxiliares ou coniventes e que vivem sob a imposição de grave dano em caso de delação.
8- Mais de três pessoas.


3. A organização criminosa e as medidas de entrega vigiada e ação controlada

Caracterizado um grupo como organização criminosa a ele podem ser aplicadas as pedidas preconizadas na Convenção de Palermo e na legislação brasileira, especiais em comparação com o combate à criminalidade que não apresenta essa conformação.


Com já tivemos oportunidade de escrever em nosso Lei de drogas anotada, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 72 e ss, em co-autoria com João Daniel Rassi.

* Professor Titular de Direito Penal e Professor Associado de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, da Faculdade de Direito de Sorocaba, Procurador de Justiça de São Paulo aposentado, advogado. Membro da CJLP (Comunidade dos Juristas de Língua Portuguesa).

Cf. nosso Tóxicos- prevenção e repressão, comentários à Lei n. 11.343/2006 – Lei de Drogas, São Paulo, 2009, Saraiva, 13ª.

V. sobre o tema, entre nós, Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, v. IX,Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 174 e ss.

Entre essas medidas é prevista a chamada “entrega vigiada” assim definida no art. 2º da Convenção:
       
Artigo 2
.........................................

  1. "Entrega vigiada" - a técnica que consiste em permitir que remessas ilícitas ou suspeitas saiam do território de um ou mais Estados, os atravessem ou neles entrem, com o conhecimento e sob o controle das suas autoridades competentes, com a finalidade de investigar infrações e identificar as pessoas envolvidas na sua prática;

A figura é também referida nos seguintes dispositivos:
Artigo 20
Técnicas especiais de investigação

1. Se os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico nacional o permitirem, cada Estado Parte, tendo em conta as suas possibilidades e em conformidade com as condições prescritas no seu direito interno, adotará as medidas necessárias para permitir o recurso apropriado a entregas vigiadas e, quando o considere adequado, o recurso a outras técnicas especiais de investigação, como a vigilância eletrônica ou outras formas de vigilância e as operações de infiltração, por parte das autoridades competentes no seu território, a fim de combater eficazmente a criminalidade organizada.
..........................................................
4. As entregas vigiadas a que se tenha decidido recorrer a nível internacional poderão incluir, com o consentimento dos Estados Partes envolvidos, métodos como a intercepção de mercadorias e a autorização de prosseguir o seu encaminhamento, sem alteração ou após subtração ou substituição da totalidade ou de parte dessas mercadorias.

Antes da Convenção de Palermo, a entrega Vigiada era procedimento recomendado na Convenção de Viena sobre o Tráfico Ilícito de Entorpecentes de 1988, promulgada pelo Decreto nº 154 de 26/06/91, mas não tinha correspondência na então Lei de Tóxicos, a Lei nº 6368/76. Em termos análogos há, ainda, a previsão do instituto na Convenção das Nações Unidas contra a corrupção (Decreto 5.687/2006) e na Convenção Interamericana contra o Tráfico de Armas (Decreto nº 3.229/1999)
No Brasil, a previsão encontra-se na Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), nos seguintes termos:

Art. 53.  Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
I - a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes;
II - a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.
Parágrafo único.  Na hipótese do inciso II deste artigo, a autorização será concedida desde que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores.

A doutrina apresenta o conceito e a finalidade da entrega vigiada:
“La entrega vigilada es una nueva forma de investigación en la lucha contra Ia narcocriminalidad, que supone el tráfico de una remesa de estupefacientes entre dos o más países.
..............................

La entrega vigilada puede ser definida como una técnica investigativa por la cual la autoridad judicial permite que un cargamento de estupefacientes, que se envia ocultamente a través de cualquier medio de transporte, pueda llegar a su lugar de destino sin ser interceptada, a fin de individualizar al remitente, destinatario y demás participes de esta maniobra delictiva.

La finalidad de esta forma de investigación es que permite conocer y detener a todos los integrantes de la red de narcotraaficantes; a su vez, asegura una mayor eficacia investigativa, ya que si se intercepta la remesa de estupefacientes antes de llegar a destino, se ignorará quién es el destinatario, o conosciéndolo, no se lo podrá incriminar.”

No direito francês, há uma diferença entre entrega vigiada e a entrega controlada. Na primeira, a mercadoria ilegal é objeto de vigilância passiva por parte das autoridades; na segunda, é utilizado o recurso de agentes infiltrados que participam diretamente da operação. No direito brasileiro a distinção não tem relevância, porque, com a combinação, ou não, dos dois incisos do art. 53 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas) os requisitos para a autorização e seus efeitos são os mesmos. É certo que do ponto de vista do agente que participa as implicações penais são específicas, mas serão tratadas em outra oportunidade .

 

                   3.1. Natureza jurídica e efeitos penais da entrega vigiada

A observação a ser feita na legislação brasileira é a relativa à abrangência e entendimento do inciso II do art. 2º da Lei nº 9.034/1995 que, no procedimento de investigação e formação de provas sobre ilícitos praticados por quadrilha o bando ou organizações ou associações criminosas, dispõe sobre a possibilidade de “ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações.”

Duas são as questões mais importantes que o confronto desse dispositivo e o da Lei de Drogas suscitam:


Carlos Henrique Edwards, El arrepentido, el Agente Encubierto y la Entrega Vigilidada. Buenos Aires, Ed. Ad-Hoc, 1996, p. 107.

V. Francis Caballero e Yann Bisiou. Droit de la drogue. 2. ed. Paris: Dalloz, 2000.

Sobre a ação controlada por policiais na Lei referida V. Eduardo Araujo da Silva, Crime Organizado – Procedimento probatório, ed. Atlas, 2003, p. 91 e segs. E, também, Rodrigo Carneiro Gomes, Ação controlada e atuação policial na repressão às drogas, em Revista CEJ, Brasília, Ano XI, n. 38, p. 60-66, jul./set. 2007.

 

1- Ambos autorizam as mesmas atitudes das autoridades investigatórias? Ou seja, têm a mesma abrangência e aplicam-se às mesmas situações?
2- No caso negativo, a especificidade da Lei de Drogas impede que as providências nela previstas se estendam para outras mercadorias ou remessa de objetos que não sejam drogas e assemelhados?
Respondidas essas perguntas, enfrentar-se-á o objeto deste estudo:
Quais os efeitos penais da atuação da autoridade, nos termos da lei, no caso de entrega vigiada no âmbito interno e no âmbito transnacional? Isto é, o que acontece com o crime que deixou de ser perseguido ou punido, durante e depois da entrega vigiada, em caráter temporário e definitivo? e
Qual a natureza jurídica do instituto da entrega vigiada?

 

Comecemos por um confronto verbal dos três dispositivos, o das Leis nº 9.034 e 11.343 e o da Convenção de Palermo que será facilitado por um quadro comparativo apresentado em seguida.

 

Lei nº 9.034/1995 (Lei de prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas)

 

Art. 2º. Em qualquer fase da persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:
I – (Vetado)
II – a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações.
III-   .......................................

Convenção de Palermo, Decreto 5.015, de março de 2004 (Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional)
Art. 2
.................................
i) “Entrega vigiada" - a técnica que consiste em permitir que remessas ilícitas ou suspeitas saiam do território de um ou mais Estados, os atravessem ou neles entrem, com o conhecimento e sob o controle das suas autoridades competentes, com a finalidade de investigar infrações e identificar as pessoas envolvidas na sua prática

Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas)

 

 

Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
I - a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes;
II - a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.
Parágrafo único.  Na hipótese do inciso II deste artigo, a autorização será concedida desde que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do delito ou de colaboradores.

 

 

Os três diplomas têm em comum a finalidade do procedimento: a maior eficácia do ponto de vista da formação das provas e fornecimento de informações, investigar infrações e pessoas envolvidas ou responsabilizar o maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, na redação de cada um.
Desde logo, porém, destacam-se as três seguintes diferenças mais importantes:
1) Tanto a Lei nº 9.034/1995 quanto a Convenção de Palermo admitem o instituto no caso de ações de repressão ao crime organizado. Já a Lei nº 11.343/2006 refere-se genericamente aos crimes da Lei, independentemente de a investigação visar a organizações criminosas; podem referir-se a simples concurso ou ao crime de associação nela previsto.

2) A Lei nº 9.034 e a 11.343 claramente transmitem a idéia da temporariedade da não atuação policial, sendo que na primeira a linguagem nesse sentido é explícita e na segunda a ressalva final “sem prejuízo da ação penal cabível” também significa que a não-atuação da autoridade tem apenas o sentido de estratégia temporal e não definitiva quanto à caracterização ou repressão ao delito, ou seja, a omissão de atuação não exclui o crime que cuja repressão será apenas adiada. Já a Convenção de Palermo dá a entender que seria possível a permissão de que remessas ilícitas transitem em determinado território, no plano transnacional sem qualquer ação concomitante ou posterior de determinado Estado pelo qual o objeto transitou, como forma de cooperação internacional para a apuração de delitos cujo processo e julgamento ocorreria em outro país.

3) Somente o art. 53 da Lei nº 11.343 prevê que a medida depende de autorização judicial e audiência do Ministério Público.
Quanto à abrangência da Lei de Drogas (item 1 acima), sua especificidade, leva à conclusão de que, em se tratando dos crimes que ela define, a técnica da entrega vigiada independe de a investigação encontrar-se no contexto de repressão ao crime organizado, o que se justifica tendo em vista a magnitude do bem jurídico tutelado, a saúde pública, apesar de, na prática, a situação encontra-se nesse contexto. A diferença está em que, no caso da Lei 9.034 e no da Convenção de Palermo a convicção da existência de organização criminosa é pressuposto para a legitimidade da medida, ao passo que na Lei nº 11.343 o pressuposto é a natureza da mercadoria, qual seja a droga proibida ou controlada. Não vemos como afastar o pressuposto dos dois primeiros diplomas, isto é, a existência, em tese, de organização criminosa, se não de trata de tráfico de drogas. A Lei nº 11.343 não supera, portanto, a requisito próprio das demais para os outros crimes nela não previstos, no âmbito interno ou transnacional.
No que concerne à temporariedade dos efeitos da medida e a ressalva da Lei nº 11.343 (“sem prejuízo da ação penal cabível”), verifica-se que a legislação brasileira repele a descriminalização da conduta sob vigilância . Algo está suspenso, o que adiante se discutirá, mas não a criminosidade da conduta que sofrerá a persecução penal cabível cessada a oportunidade e necessidade da vigilância. A Convenção de Palermo, ainda que incorporada à ordem jurídica brasileira, na omissão, não poderia levar a conclusão diferente porque não cabe a convenções internacionais a incriminação de condutas, ou não, mas apenas a recomendação para a incriminação ou não incriminação. O princípio da legalidade penal, consagrado de maneira indiscutível no Brasil, tem também o sentido de legalidade formal estrita significando que somente lei com o respectivo processo legislativo próprio pode instituir crime, não se admitindo os eventuais substitutivos da lei, como a medida provisória. A interpretação da Convenção de Palermo ( e das demais já referidas que prevêem a figura), em consonância com a legislação autóctone, somente pode ser no sentido de que não há interferência na tipicidade e punibilidade da conduta vigiada, entendendo-se, em conseqüência, que autoriza somente a suspensão temporária de medidas de repressão.
No que interfere, então, a entrega vigiada?
Pura e tão somente no art. 301 do Código de Processo Penal quanto ao dever da autoridade policial de prender quem se encontra em flagrante delito.
Adotada a medida e dentro dos parâmetros estipulados fica suspenso o dever de a autoridade prender em flagrante os agentes envolvidos até que a operação alcance seus objetivos, quer se trate de crime consumado ou consumando-se como os crimes permanentes, quer de uma fase executiva da tentativa. É óbvio que se o acompanhamento se refere a ato preparatório a questão nem se coloca.

Alcançada a finalidade da vigilância ou, por qualquer outro motivo, demonstrada ser infrutífera ou desnecessária, revigora-se o dever da autoridade de prender quem se encontre em flagrante delito e, se isso não for mais possível, adotar as providências necessárias para a persecução, no Brasil, do crime aqui, no todo ou em parte, ocorrido (arts. 5º e 6º do Código Penal).
Na segunda hipótese, qual seja a de não ser mais possível o flagrante no Brasil, pode haver alguma dificuldade processual para a apuração e persecução penal, como, por exemplo, no caso de acompanhamento do trânsito de droga pelo País proveniente de outro e dirigida a um terceiro no qual, em virtude da cooperação internacional contra o crime organizado, mais adequadamente seria desmantelada a organização ali sediada sendo que, se houvesse o flagrante do transporte em território nacional, isso não seria possível.
O crime, na figura de transportar do art. 33 da Lei nº 11.343, ocorreu em território nacional e é passível de processo. Contudo, não tendo sido efetivado o flagrante e a apreensão da droga a comprovação da materialidade dependerá de laudo a ser elaborado no exterior. A validade dessa prova poderá ser discutida no processo brasileiro e a questão gerará certamente grandes debates, mas o problema é de prova, sua validade e valoração e não da existência ou inexistência da infração penal.

 

3.2. A necessidade de autorização judicial e sua natureza

Finalmente resta enfrentar o problema da necessidade, ou não, de autorização judicial para a não atuação policial e, daí, a natureza jurídica dessa autorização se e quando necessária.
A Lei nº 11.343 é expressa: a não atuação policial sobre os portadores de drogas depende de autorização judicial, ouvido o Ministério Público.
Já a Lei nº 9.034 nada dispõe nesse sentido, diferentemente do que faz com a infiltração de agentes em tarefas de investigação em que se exige circunstanciada autorização judicial (art. 2º, inciso V acrescentado pela Lei nº 10.217/2001.
Cabe, aqui, um depoimento de ordem histórica.
A possibilidade da utilização do “underground agent” como instrumento de investigação e formação de provas em ilícitos praticados por organizações criminosas era o inciso I do art. 2º no projeto aprovado pelo Congresso Nacional, mas foi vetado pelo Presidente da República à vista da repulsa de diversos Professores de Direito (eu fui um deles) que oficiaram ao Ministro da Justiça sugerindo que recomendasse ao Presidente da República que o vetasse, porque, dado o modo com que estava redigido era um convite aos abusos, tendo em vista sua generalidade, falta de parâmetros e requisitos, deficiência de técnica e não exigência de autorização judicial. Vetado o dispositivo, adveio a Lei nº 10.217, que inseriu a possibilidade de infiltração mas dependente de autorização judicial circunstanciada.
A ação controlada (inciso II do mesmo artigo) permaneceu como no original, uma medida de investigação e formação de provas sem qualquer exigência da prévia autorização do juiz.
A interpretação histórica leva a essa conclusão, mas não somente ela, também a interpretação sistemática e a lógica, porque se tal autorização é especificamente prevista para a infiltração, por força de lei posterior que poderia tê-la estendido para a ação controlada, se não o fez é porque esta última dela não necessita. Isso não quer dizer que não possa ou não deva haver regulamentação administrativa, inclusive com a definição da autoridade competente para a autorização no âmbito policial, a fim de evitar a omissão criminosa por prevaricação ou participação no próprio delito em curso que não está sendo interrompido ou obstado.

Se a ação controlada, salvo no caso dos delitos da Lei de Drogas, não depende de autorização judicial a sua natureza é de ato administrativo no exercício regular de direito ou estrito cumprimento do dever legal uma vez presentes os pressupostos necessários para a sua efetivação, como acontece com qualquer ato administrativo.
Resta, então, somente, a definição da natureza jurídica da autorização judicial no caso da Lei nº 11.343 ou, “ad argumentandum”, se se entendê-la necessária também nos demais casos.
Analisemos os aspectos da situação.
A ação controlada não é uma prova nem um meio de prova. É um instrumento, uma estratégia, uma prática ou uma técnica para a obtenção de provas ou informações. A prova ou o meio de prova será o que for possível obter  com o retardamento da ação policial.
A autorização judicial, então, tem por objeto fiscalizar a necessidade do retardamento e a adequação ao interesse público de uma técnica de investigação que, dada sua delicadeza e implicações, recomenda ou exige o prévio controle judicial.
A função judicial, portanto, é fiscalizadora do interesse público em uma atividade naturalmente de terceiros, no caso as autoridades policiais. Ora, isso não é nada mais nada menos do que a chamada jurisdição voluntária.
Diferentemente da autorização judicial para a interceptação telefônica em que o objetivo é a tutela da garantia constitucional do sigilo das comunicações das pessoas, a decisão judicial que autoriza a ação controlada fiscaliza a própria atuação policial e não interfere na esfera jurídica de terceiros.
Ainda que em ambas as situações é possível enquadrar a decisão judicial entre os poderes instrutórios do juiz essa é a diferença essencial: no caso da ação controlada fiscaliza-se a conduta policial quanto ao não exercício do dever de prender quem se encontre em flagrante delito sem que isso envolva a invasão da órbita de direitos das pessoas; no caso da autorização para a interceptação o ato do juiz é constritivo porque não apenas autoriza o procedimento mas determina a restrição a direito individual.

As cargas, na terminologia de Pontes de Miranda, das decisões são diferentes, porque na interceptação telefônica o ato judicial tem conteúdo constritivo ou restritivo de direitos, ao passo que na ação controlada meramente permite que a autoridade policial deixe de agir imediatamente como ordinariamente deveria fazê-lo.
Em sendo ato de jurisdição voluntária a autorização para a entrega vigiada está submetida às suas características: não faz coisa julgada, pode ser modificada se houver alteração da situação de fato etc.
Dissemos em outra oportunidade sobre o tema:
A submissão de certos efeitos jurídicos à autorização judicial é de discricionariedade legal. São os valores de cada cultura que determinam os tipos de atos sujeitos ao crivo judicial. Assim, há países em que a separação judicial ou o divórcio não são jurisdicionais e outros em que atos que, no Brasil, são de livre prática pelos indivíduos dependem de autorização judicial.
É preciso lembrar, também, que mesmo na jurisdição voluntária a atividade jurisdicional não é consultiva das partes. Ela atua, quando provocada (há casos especiais de atuação de ofício quando o interesse público justifica), para proferir uma decisão e não para orientar as partes ou dar-lhes, previamente, um conselho jurídico.
Devis Echandia elencou alguns traços gerais distintivos da jurisdição voluntária em confronto com a jurisdição contenciosa:
a) pela posição que as partes ocupam na relação processual, porque, ao passo que na voluntária os interessados que iniciam o processo perseguem determinados efeitos jurídicos materiais para eles mesmos, na contenciosa os demandantes procuram produzir efeitos jurídico-materiais obrigatórios para determinados demandados;
b) pela posição do juiz ao ditar a sentença, pois, enquanto na contenciosa o juiz decide entre litigantes (inter volentes ou contra volentem ou inter invitos), na voluntária, ao invés, pronuncia-se só em relação aos interessados (inter volentes ou pro volententibus); e na voluntária o julgamento não precisa ser sempre a favor de uma das partes e contra a outra, porque pode satisfazer ambas;

c) pelos sujeitos da relação processual, pois na voluntária não existe demandado, senão simples interessado peticionário, ao passo que na contenciosa existe sempre um demandado;
d) pelo conteúdo da relação processual ao iniciar-se o juízo, porque na voluntária se procura dar certeza ou definição a um direito ou certos efeitos jurídicos materiais ou legalidade a um ato, sem que se apresente ao juiz, inicialmente, nenhuma controvérsia nem litígio para sua solução na sentença, e na contenciosa, ao contrário, inicialmente se está pedindo a solução de um litígio com o demandado. A presença do litígio prévio vem a ser a causa do processo;
e) pelos efeitos da sentença, porque na contenciosa o normal é que tenha força de coisa julgada, ao passo que na voluntária jamais constitui coisa julgada. A sentença voluntária será obrigatória enquanto não modificada, mas não é imutável;
f) na jurisdição contenciosa a regra é o juízo de legalidade estrita, ao passo que na voluntária há um juízo de conveniência;
g) na jurisdição voluntária há interessados e não partes.

Assim é na autorização judicial para a ação controlada.

 

4. Conclusões finais

           

Do presente trabalho extraem-se as seguintes conclusões:

    • Não há definição legal de organização criminosa no Brasil. A definição de organização criminosa prevista no art. 2º, alínea “a” da Convenção de Palermo é imprestável porque não estabelece requisitos distintivos entre “quadrilha ou bando” e o “grupo organizado”.

    • Também não deve a lei estabelecer requisitos para que uma associação ou grupo constitua em organização, cujas exigências rígidas e expressas tornariam impossível identificá-la. O conceito deve ser fluído, como fluido é o próprio modo de ser de uma societas sceleris.
    • A entrega vigiada e a ação controlada são medidas de combate a criminalidade organizada previstas tanto na Lei de Drogas (art. 53), com na Lei de combate ao crime organizado (art. 2º), a partir de recomendações de convenções internacionais.
    • Diferentemente do que ocorre no direito francês, no direito brasileiro não tem relevância à distinção entre a entrega vigiada e a entrega controlada.
    • Embora a não atuação da autoridade esteja prevista na Lei de combate ao crime organizado, na Lei de Drogas e na Convenção de Palermo, em cada caso recebe ela tratamento diverso, com abrangência e situações distintas.
    • Não há descriminalização da conduta sob vigilância. A entrega vigiada interfere tão somente no art. 301 do Código de Processo Penal. Até que a operação alcance seus objetivos, fica suspenso o dever da autoridade prender em flagrante os agentes envolvidos.
    • A ação controlada, salvo nos casos dos crimes da Lei de Drogas, não depende de autorização judicial. Sua natureza é de ato administrativo no exercício regular de direito ou estrito cumprimento do dever legal da autoridade.
    • Nos crimes da Lei de Drogas, a autorização judicial é ato de jurisdição voluntária, estando submetida às suas características: não faz coisa julgada, pode ser modificada se houver alteração da situação de fato etc.

     

    5. Bibliografia

    ANDRADE, Manuel da Costa Andrade, Métodos ocultos de investigação (Plädoyer para uma teoria geral), em Justiça Penal Portuguesa e Brasileira, Colóquio em homenagem ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2008, p. 99 e segs.
    GOMES, Rodrigo Carneiro. Ação controlada e atuação policial na repressão às drogas, em Revista CEJ, Brasília, Ano XI, n. 38, p. 60-66, jul./set. 2007.
    GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. São Paulo:Saraiva, 10ª ed., 2003, vol. 3.
    _____ Tóxicos- prevenção e repressão, comentários à Lei n. 11.343/2006 – Lei de Drogas. São Paulo: Saraiva, 13ª, 2009.
    _____ Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva: 7ª ed., 2009.
    _____ e RASSI, João Daniel. Lei de drogas anotada, São Paulo: Saraiva, 2007.
    HENRIQUE EDWARDS, Carlos. El arrepentido, el Agente Encubierto y la Entrega Vigilidada. Buenos Aires: Ed. Ad-Hoc, 1996.
    MORANT VIDAL, Jesús. El delito de tráfico de drogas – Un estudio multidisciplinar, Editorial práctica de derecho: Valencia, 2005.
    ONETO, Isabel. O Agente Infiltrado, Coimbra Editora: Coimbra, 2005.
    SILVA, Eduardo Araujo. Crime Organizado – Procedimento probatório, São Paulo: Atlas, 2003.



    Nosso Direito Processual Civil Brasileiro, Saraiva: São Paulo, vol. 3, p. 270 e ss.

     


    Em outras legislações, como, por exemplo a espanhola, são exigidos mais outros requisitos, como por exemplo a importância do delito, o que não se cogita entre nós no texto legal, mas que deve ser usado como parâmetro, porque a medida é excepcional ou, pelo menos, especial. V. a respeito Jesús Morant Vidal, El delito de tráfico de drogas – Un estudio multidisciplinar, Editorial práctica de derecho, Valencia, 2005, p. 256 e segs.

    Observe-se enfaticamente que diferente é a situação do agente infiltrado que venha a participar de ação criminosa, o que será discutido em outro estudo, mas desde logo v. Isabel Oneto, O Agente Infiltrado, Coimbra Editora, 2005 e Manuel da Costa Andrade, Métodos ocultos de investigação (Plädoyer para uma teoria geral), em Justiça Penal Portuguesa e Brasileira, Colóquio em homenagem ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2008, p. 99 e segs.