JORGE MIRANDA
O PRINCÍPIO DA EFICÁCIA JURÍDICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Janeiro/Fevereiro 2013

O constitucionalista diz que a reforma de Bolonha foi um desastre e pede às Faculdades  de Direito para refletirem. E defende que o mestrado é absolutamente essencial para quem quer seguir advocacia

Jorge Miranda

JORGE MIRANDA,
Doutor em Direito (Ciências Jurídico-Políticas) pela Universidade de Lisboa (1979) e professor catedrático desta Faculdade e da Universidade Católica Portuguesa (desde 1985).Foi Deputado à Assembleia Constituinte portuguesa (1975-1976), com intervenção importante na feitura da Constituição de 1976; e Deputado à Assembleia da República (1976 e 1980-1982).Foi membro da Comissão Constitucional – antecessora do Tribunal Constitucional (1976-1980 e 2004-2007).Foi presidente do Conselho Científico (1988-1990 e 2004-2007) e presidente do Conselho Diretivo (1991-2001) da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.Um dos fundadores da Associação Portuguesa de Direito Constitucional, foi presidente da Associação Portuguesa de Direito do Ambiente, é membro do Comité executivo da Associação Internacional de Direito Constitucional.É autor de mais de 250 títulos entre as quais o Manual de Direito Constitucional em 7 volumes (publicado desde 1981), um Curso de Direito Internacional Público e, em colaboração com Rui Medeiros, a Constituição Portuguesa Anotada, 3 volumes, 2005, 2006 e 2007.


Professor na Faculdade de Direito de Lisboa e um dos “pais” da Constituição, Jorge Miranda considera  altamente censurável uma revisão constitucional neste momento. O constitucionalista afirma ainda que numa altura de crise económica e social as prestações do Estado social mais se justificam.


Tem defendido que por detrás da questão da refundação do Estado está um projeto de revisão constitucional.  É defensável mexer hoje numa Constituição que foi produto de um determinado tempo e ideologia?


Não concordo com essa afirmação. Qualquer Constituição surge num certo tempo, mas a Constituição já tem 37 anos e já sofreu sete alterações. Além disso, houve todo um conjunto de transformações na sociedade portuguesa, na Europa e no mundo e a Constituição foi-se adaptando. Por outro lado, há um papel extremamente importante da jurisprudência constitucional; primeiro a Comissão Constitucional, e depois o Tribunal Constitucional; de maneira que não acho que se possa dizer que a Constituição é de um certo tempo e ideologia. É uma Constituição viva; as circunstâncias originárias não deixam de estar presentes. As ideias da democracia, do Estado de Direito, da democracia também social vêm de 1976 e têm sido preservadas nas revisões, mas em muitos aspetos, a Constituição foi já alterada profundamente, sobretudo no campo económico, quer em 1982, quer em 1989, quer em 1997. Além disso, na Assembleia Constituinte nenhum partido tinha maioria absoluta e as normas tinham que ser votadas sempre por maioria absoluta. Tinha sempre de haver um acordo. A Constituição, como tem sido conhecido, surgiu como uma Constituição compromissória, à semelhança das Constituições  espanhola, italiana, brasileira, e esses compromissos têm-se manifestado também nas revisões constitucionais.


Mas justifica-se hoje a sua revisão?


É evidente que a Constituição pode ser sempre aperfeiçoada. Quer em 1980, quer em 1986, quer em 2004, apresentei projetos, ou anteprojetos, de revisão constitucional. Agora uma coisa é ser aperfeiçoada, outra é pôr em causa os grandes princípios em que assenta. Independentemente das vantagens que o aperfeiçoamento pode ter no campo político ou no campo do sistema de direitos fundamentais, no campo económico, no domínio da garantia da constitucionalidade, num momento de profunda crise económica, financeira, social, num contexto internacional muito mutável e instável, num momento em que há tanto a fazer e tantos debates políticos a travar, estar um Parlamento a fazer uma revisão constitucional, quando há tanta legislação que deve fazer de reforma – aí, sim, de verdadeira reforma fiscal, da justiça de setores administrativos, seria altamente censurável.


O Estado social deve manter-se como está?

Deve manter-se. O Estado social é uma aquisição civilizacional europeia e ocidental. O discurso de posse do Presidente Obama vem todo nesse sentido, a Constituição brasileira também, corresponde à evolução do Estado moderno, passando de um Estado liberal a um Estado social. No Estado liberal conquistaram-se as liberdades, os direitos de liberdade; no Estado social conquistaram-se os direitos sociais e há a preocupação de, para além da igualdade perante a lei, fazer uma igualdade efetiva de oportunidades, e para lá do princípio da liberdade, também há o princípio da solidariedade. No fundo, isso é que é o Estado social; é evidente que pode ter várias conformações – mesmo na Europa, é diferente o Estado social escandinavo do Estado social britânico, do francês ou do alemão, sem falar nos países da Europa Oriental, que saíram de regimes comunistas e estão  entrando em vias de democracia.


Mas numa altura de crise justificam-se as atuais prestações do Estado social?

Numa  crise económica que é acompanhada por uma  profunda crise social, quando há milhares de desempregados, trabalho precário, quando há pessoas com enormes dificuldades, não sabendo qual vai ser o seu futuro, quando vejo aqui na Faculdade as enormes dificuldades que os estudantes têm em comprar livros, ainda mais se justificam as prestações sociais. Agora não quer dizer que não possa haver racionalização.


Onde poderá então ser legítimo fazer essa racionalização e cortes?

Há ainda desigualdades profundas na sociedade portuguesa. Há trabalhadores com situações muito variadas, poderia aí haver racionalização, não no sentido de uma uniformização mas de uma harmonização. Há setores que têm um estatuto privilegiado – poderia haver aí um esforço de racionalização. Também no SNS julgo que o atual ministro tem estado a fazer um esforço muito importante de racionalização sem pôr em causa o princípio do SNS. Também na Universidade, a fusão da Técnica com a Clássica corresponde a um esforço de racionalização. Há muitos custos superiores que podem ser extintos.


Neste momento, há tendência para não levar a sério os princípios constitucionais no campo fiscal?

Isso agora está pendente do Tribunal Constitucional, e eu não me quero pronunciar enquanto o Tribunal Constitucional não decidir. Acho que agora os constitucionalistas devem guardar certa reserva. É provável que esta revista saia já depois da decisão, mas neste momento eu preferia não dizer nada. Agora, há certos princípios constitucionais fundamentais, como o princípio da igualdade. Independentemente de mais ou menos revisão constitucional, de mais ou menos Estado social, o princípio da igualdade é um princípio fundamental de qualquer Estado moderno, de qualquer constitucionalismo moderno. O princípio da proporcionalidade, da proteção da confiança, o princípio da progressividade e da unicidade do imposto sobre o rendimento pessoal, a ideia da atenção à situação familiar, são princípios que estão presentes na Constituição. É em face destes princípios que poderão ser avaliadas muitas das matérias e das normas que estão na lei orçamental.


O Tribunal Constitucional está a ser pressionado?

Acho que não. Verificou-se que depois dos requerimentos de suscitação da questão da inconstitucionalidade e da apreciação de pedidos de declaração de constitucionalidade pelo Presidente da República, pelo Provedor de Justiça e por dois grupos de deputados, tem ha-vido uma certa reserva e calma. Não se tem falado muito nas questões que estão pendentes no Tribunal e acho que isso é bom. É bom que a opinião pública, os agentes políticos, os constitucionalis-tas, deixem o Tribunal Constitucional decidir serenamente, com o tempo que entender necessário – embora, a meu ver, devesse ser o mais curto possível -, sem que haja qualquer interferência. Depois de o Tribunal decidir, cá estaremos nós para comentar.


Como vê hoje o Tribunal Constitucional? Já criticou uma certa componente política do Tribunal...

O que eu critico desde 1982 – e foi uma das razões por que recusei aceitar uma candidatura ao Tribunal Constitucional – são duas coisas. Em Portugal, há dois órgãos eleitos com legitimilidade política universal: o Presidente da República e a Assembleia da República, e só esta é que designa os juízes. O Presidente da República também deveria designar juízes. Por outro lado, e mais grave do que isso, há juízes de carreira que têm de ser designados pela Assembleia da República, e como nesta são os grupos políticos que propõem as candidaturas, o que significa é que o juiz de carreira vai ficar conotado com o partido A ou B. Estes juízes devem ser politicamente isentos; não quer dizer que não devam ter as suas opiniões e convicções, não devem é expressá-las. Aceitar haver juízes eleitos pela Assembleia da República introduz uma componente política na magistratura. Quanto à composição do Tribunal, há um grande equívoco. Tenho ouvido dizer que, em vez do Tribunal Constitucional, que seria um tribunal político, o ideal seria o Supremo Tribunal de Justiça fazer o controlo da constitucionalidade, mas não concordo. Desde que apareceram os tribunais constitucionais, em 1920, na Aústria, e olhando para o Supremo Tribunal dos EUA e para o Supremo Tribunal Federal do Brasil, que são, no fundo, tribunais constitucionais, esses tribunais têm sempre juízes de origem política. Os juízes do Supremo Tribunal dos EUA são designados pelo Presidente da República, mediante assentimento do Senado. Na Europa, há sempre uma componente política na designação dos juízes, que não são juízes de carreira porque se pretende que o Tribunal Constitucional tenha uma legitimidade democrática. O Tribunal Constitucional, que tem o poder de declarar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica com força obrigatória geral, que faz com que uma norma jurídica votada por um Parlamento democraticamente eleito deixe de vigorar, tem de ter, também ele, uma legitimidade democrática.


Que juízes deveríamos ter então no Tribunal Constitucional?

Os dez designados pela Assembleia da República seriam juristas, os cooptados seriam juízes de carreira. Na fórmula que tenho proposto haveria  oito juristas designados pela Assembleia da República por maioria de dois terços, dois juízes designados pelo Presidente da República e três cooptados entre os dez primeiros. Há muita vantagem em que haja juízes de carreira num Tribunal Constitucional, mas não designados pela Assembleia da República, não sujeitos a um escrutínio de caráter partidário. Admito juízes de carreira nomeados para o Tribunal Constitucional pelo Presidente da República, porque este está acima dos partidos.


Ainda sobre as interferências dos partidos na Justiça: um advogado pode ser deputado?

Deve haver aí rigorosas incompatibilidades. Em princípio, um advogado não deve ser deputado. Ou, pelo menos, um advogado que fosse deputado não deve-ria participar em comissões ou votações em que estivessem em causa interesses que ele pudesse vir a representar. É uma matéria que exige grande ponderação, mas o princípio deve ser o da incompatibilidade.


As medidas propostas pela ministra da Justiça e impostas  pela troika são bons indicadores?

Até agora tem havido pouca realização. Acho que há algumas medidas importantes anunciadas pela ministra, como a reforma do processo civil e a reforma do mapa judiciário. Se for feita com cuidado, e não levando a uma deslocalização do poder judicial das zonas mais pobres do País, também pode ser uma forma de racionalização da Justiça.


A proposta do mapa, tal como está,  poderá limitar o acesso dos cidadãos à Justiça?

É possível, mas hoje em dia a circulação das pessoas num país que é pequeno faz--se em moldes muito diferentes do que se fazia há 30, 50 anos. O problema mais grave, para mim, não é a dificuldade de deslocação das pessoas, mas a vantagem de haver tribunais no interior, haver serviços que aproximem as pessoas do poder e que deem vida às localidades. Estamos a assistir, em Portugal, a uma desertificação do Interior; é desejável que o mapa judiciário atenda a esta necessidade de não retirar os serviços judiciários das terras mais significativas que temos no Interior.


O atual Regulamento das Custas Ju-diciais não poderá também limitar o acesso dos cidadãos à Justiça?

Esse é mais grave. Aí há já um fator eco-nómico que está para lá do alcance de muita gente. Aí penso que haverá mui-tos mais problemas do ponto de vista da constitucionalidade e do efetivo acesso das pessoas à Justiça. Mas não quero es-tar a julgar agora.


Que outras medidas preconizaria numa reforma da Justiça?

Há uma medida que seria importante que se concretizasse o mais depressa possível e que era em matéria de prescrição do processo criminal. A partir do momento em que é deduzida a acusação, deve ser suspenso o prazo de prescrição, para evitar situações como aquelas em que as pessoas interpõem recursos para arrastar os processos para a prescrição. É absolutamente necessária uma medida como esta; a ministra já a anunciou, mas até agora ainda não a concretizou. Há uma outra ideia que tenho há muito tempo, tenho a impressão de que a ministra já falou nisto: quando alguém é condenado em primeira instância, e se é condenado a pena de prisão, e se esse tempo de prisão é superior ao da prisão preventiva, baixa logo à cadeia, independentemente do recurso. Isto é importantíssimo para valorizar o juiz de primeira instância e para pôr fim a situações de pessoas condenadas há não sei quantos anos e que através de uma série de recursos conseguem escapar à prisão, enquanto outros com menos possibilidades baixam logo à prisão. Num caso desses, se, por via de recurso, houvesse a absolvição, a pessoa deveria ser indemnizada pelo Estado, mas quem é condenado baixa logo à prisão.


No atual contexto de crise, como vê o apoio judiciário? Não seriam defensáveis mecanismos de triagem prévios?

Admito que sim. Não exerço advocacia, por isso não conheço essa realidade; admito perfeitamente que possa haver racionalização. O princípio deve ser o de que ninguém deve ser impedido de aceder à Justiça por questões económicas, embora a Constituição não estabeleça a gratuitidade da Justiça. Já houve decisões da Comissão Constitucional e do Tribunal Constitucional a respeito disto.


Defende os meios extrajudiciais de resolução de conflitos?

Na medida do possível. Não podemos cair, pura e simplesmente, numa desjudicialização, mas meios extrajudiciais, nomeadamente, e arbitragem têm sido convenientes  e experimentados. A própria Constituição também prevê a composição extrajudicial dos conflitos.


Já propôs uma revisão constitucional para impedir a exoneração do Procurador-Geral da República. Porquê?

A minha ideia é que o Procurador-Geral da República deve ser nomeado por um determinado período e durante esse período não deve ser exonerado, não deve estar sujeito a uma exoneração do Presidente da República, sob proposta do governo. Não houve nenhum Procurador-Geral da República que tenha sido exonerado até agora, apesar de alguns terem sido muito criticados. Por uma questão de independência, o Procurador-Geral da República deve ter um determinado mandato e deve estar à margem de qualquer apreciação política. Num caso de responsabilidade criminal, seria diferente, agora num plano de confiança política deve ser independente.


O anterior Procurador-Geral da República queixou-se da falta de poderes. Os que lhe são atribuídos pela Constituição são suficientes?

A Constituição diz que o Procurador-Geral da República dirige o Ministério Público. É muito genérica; terá de ser a lei a concretizar, a regulamentar. A personalidade do Procurador-Geral da República é extremamente importante. A forma como ele gere os serviços, como se relaciona com os outros magistrados, como conduz a sua atividade e como evita falar para a comunicação social – e, na minha opinião, deve evitar o mais possivel - é extremamente importante para a autoridade do Procurador-Geral  da República.


Os magistrados deveriam falar menos para a comunicaçao social?

Às vezes não têm sabido fugir às perguntas da comunicação social, quando deveriam evitar isso. Não quer dizer que  deva haver uma pura e simples clausura do Procurador-Geral da República, mas,  em princípio, não deve dar entrevistas, deve estar um pouco à margem, tal como o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça ou os juízes do Tribunal Constitucional. Quem está ligado à função da justiça deve evitar qualquer forma de ligação à comunicação social, de entrar no contraditório político. Pode fazer comunicados, agora mais do que isso...


Mas a opinião pública também tem o direito a estar informada.

Através de comunicados, de declarações e através da própria transparência do funcionamento da magistratura. Deve ser uma comunicação sóbria e discreta; tem--se visto que o Procurador-Geral da República que fala acaba por ser prejudicado. Às vezes é criticado muito injustamente; estou a lembrar-me do que aconteceu com o Procurador-Geral Souto Moura. Foi injustamente atacado por não ter conseguido fugir a fazer declarações. Foi uma enorme injustiça – um magistrado de altíssima qualidade, extremamente sério, e que foi flagelado, criticado de uma forma horrorosa.


As fugas ao segredo de justiça também não ajudam...

Haverá, eventualmente, problemas no interior do Ministério Público, o que é lamentável. É necessária uma máxima intervenção para evitar as fugas, porque acabam por ser altamente prejudiciais,  não só ao Procurador-Geral da República, mas a direitos fundamentais dos cidadãos, buscas nos escritórios, quando afinal não há nada, pessoas que estão acima de todas as suspeitas e aparecem nos jornais... isso é extremamente negativo.


Mas defende a publicidade do processo?

A partir da acusação, sim, antes, não. Enquanto alguém não é constituído ar-guido, deve haver segredo de justiça, depois, não. O processo sobe depois para o tribunal e aí é diferente – o juiz aceita ou não aceita. O segredo de justiça é  um aspeto fundamental do Estado de Direito.


Falou há pouco na necessidade de transparência da magistratura. Como avalia o funcionamento dos Conselhos Superiores de Magistratura e Ministério Público?

Bastante bem. Não tenho visto na opinião pública críticas à atuaçao dos dois Conselhos. O que deveria haver era um único conselho superior judiciário para os tribunais judiciais e administrativos. Agora, a composição desses órgãos foi feita em 1982 – e eu fui deputado nessa revisão constitucional – e acho que se justifica; há uma maioria de juízes, mas há uma maioria de membros  designados por órgãos com legitimidade democrática, o Presidente da República e a Assembleia da República. Parece-me que isto está correto.


São esses órgãos que lhe dão legitimidade.

Uma vez que a Constituição diz que a administração da Justiça é feita em nome do povo, os tribunais administram a Justiça em nome do povo, é natural que o órgão superior de disciplina da  magistratura  seja um órgão em que os órgãos do poder político tenham uma intervenção. Provavelmente aí um aperfeiçoamento seria estabelecer que o Presidente  do Conselho Superior dos tribunais superiores fosse designado pelo Presidente da República, não ser como hoje acontece; é Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e ao mesmo tempo Presidente do Conselho Superior de Magistratura. Deveria ser um juiz designado pelo Presidente da República.


O que é que isso evitaria?

Desde logo, acho que é extremamente difícil acumular as duas funções: ser Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e do Conselho Superior de Magistratura. Por outro lado, reforçaria a componente democrática do Conselho.


Tem dito que existem universidades e cursos a mais. A fusão das Universidades Técnica e Clássica de Lisboa é um bom exemplo.

É um passo importante de racionalização e de afirmação da universidade no contexto internacional. Só tenho pena que o ISCTE não tenha entrado; a Universidade Nova é uma coisa diferente, nova, pode até haver vantagens em que haja uma certa concorrência e competitividade nas universidades em Lisboa. No conjunto das universidades públicas que temos no País, não são a mais, porque as universidades que temos no Interior contribuem para dinamizar essas regiões. Extinguir essas universidades teria efeitos negativos pro-fundos na economia da Beira Interior, Trás-os-Montes e Alentejo. Essas univer-sidades devem manter-se; o mesmo vale para os institutos politécnicos. O que tenho afirmado é que há cursos a mais, repetição de cursos particularmente em áreas que conheço  mais ou menos, como a sociologia.


E cursos de Direito, também há em demasia?

Cursos de Direito públicos acho que estão bem os cinco existentes, nem mais nem menos.



Como vê hoje o ensino do Direito? Foi sempre muito crítico em relação ao Processo de Bolonha.

Esse é o ponto que conheço melhor e me preocupa mais diretamente. As Faculdades de Direito tiveram sempre, tradicionalmente, cinco anos de licenciatura. Noutros países nem sempre foi assim, mas em Portugal, sim, e não só em Portugal, também em Espanha. Aqui, na Faculdade de Direito de Lisboa, a última reforma tinha três anos comuns e depois, no quarto e quinto anos, para além de cadeiras comuns, havia quatro variantes, permitindo uma especialização em direito privado, em direito público, nas áreas económicas e nas áreas históricas, e as coisas corriam bem. Depois, um mestrado científico dirigido à investigação e de onde resultou a produção de dezenas, centenas, de importantes trabalhos científicos em todas as áreas, quer em Lisboa, quer em Coimbra. O Processo de Bolonha representa uma rutura com isto e abre uma grave crise no ensino do Direito, com a redução da licencitura a quatro anos e com um mestrado profissionalizante cujo nível não é superior ao nível do antigo quinto ano. Tenta-se meter nos quatro anos o que se dava nos cinco, mas naturalmente que a capacidade de assimilação dos alunos não é ilimitada, é necessário tempo. O que se tem verificado é que as cadeiras são dadas com muito menos desenvolvimento e com muito menos nível. Isto num momento em que surgiram novas áreas que exigem ensino universitário e que não havia há 20 ou 30 anos. Basta pensar no direito urbanístico ou no direito do ambiente, dos valores mobiliários ou no direito da União Europeia. O direito constitucional e o direito das sociedades comerciais também tiveram um enorme desenvolvimento.


Mas essas áreas estão a ser integradas nos cursos?

Ou não são integradas, são remetidas para o tal mestrado profissionalizante, ou então são integradas mas apertadamente. O direito constitucional, por exemplo, temos um sistema de controlo de constitucionalidade que é fundamental num Estado de Direito, o Tribunal Constitucional dedica mais de 95% da sua atividade à decisão de recursos que vêm dos tribunais no âmbito da fiscalização concreta. Fiscalização abstrata ocupa um tempo e um lugar relativamente pouco importante, a matéria dos recursos é fundamental e é através dos recursos que os cidadãos podem defender os seus direitos fundamentais. A matéria de justiça constitucional não é ensinada como cadeira obrigatória aqui, nesta Faculdade de Direito, nem na Universidade Católica, o que significa que podem-se formar sem ter esses conhecimentos. Há advogados sem esses conhecimentos. Há um  ponto em que eu concordo totalmente com o Bastonário da Ordem dos Advogados, que é a ideia dele de o mestrado ser obrigatório para o acesso à advocacia. Já é obrigatório no acesso ao Centro de Estudos Judiciários. A medida que ele adotou foi considerada inconstitucional, porque só por lei, e não por uma norma da própria OA, é que isso poderia ser feito, porque estava em causa a liberdade de acesso a uma profissão. É absolutamente essencial estabelecer a obrigatoridade do mestrado no acesso à advocacia. Concordo inteiramente com o Bastonário, não com a forma, mas com o conteúdo. Posso admitir que baste a licenciatura para profissões não forenses - para as quais o curso de Direito habilita –, como funcionário público, carreira diplomática, ou até, eventualmente, o notariado ou os registos. Para as carreiras forenses, os cinco anos são absolutamente necessários. Por outro lado, há outro aspeto no Processo de Bolonha que eu critico: o curso de Direito teve sempre, tradicionalmente, para além de cadeiras jurídicas, cadeiras de ordem cultural, história, economia, ciência política. Um jurista não pode ser um tecnocrata de leis, isso seria a pior coisa, o curso tem de ter uma componente cultural que é dado por essa envolvente. Esta reforma de Bolonha veio reduzir o ensino destas matérias e pôr em causa esta abertura cultural e à realidade social.


Essa abertura está presente na formação do Centro de Estudos Judiciários e da Ordem dos Advogados?

Suponho que no Centro de Estudos Judiciários tem sido feito um esforço grande para essa abertura. Para dar um exemplo, até há alguns anos não era dada a matéria de justiça constitucional e direitos fundamentais no Centro de Estudos Judiciários, agora sim. Tenho muita esperança de que o atual diretor revitalize o Centro de Estudos Judiciários. Agora, quanto aos advogados, a Ordem não são bem cursos que organiza, são lições, não é vocação da Ordem transformar-se numa escola de advocacia.


Justificava-se uma única escola de advogados e magistrados?

Acho difícil. São vocações diferentes, e não conheço nenhuma experiência em que isso se verifique. Relativamente aos juízes, acho que está muito bem o Centro de Estudos Judiciários; quanto aos advogados, acho que o importante é uma boa formação universitária e depois os estágios com condução por parte da Ordem, mas não gostaria de ver a Ordem transformada numa escola.


Estamos então num ponto de irreversibilidade quanto a Bolonha?

Tendo em conta o desastre que Bolonha  tem sido - muitíssimos professores reco-nhecem que há um grande desastre -, seria altura de as Faculdades de Direito fazerem uma reflexão conjunta. Não quer dizer que vão agora condenar, mas fazer uma ponderação, tirar dados da experiência, comparar com a situação de outros países, comparar com a situ-ação anterior a Bolonha, e depois fazer propostas. Não quer dizer que eu esteja a defender o retorno à situação anterior a Bolonha; dez anos depois da sua en-trada em vigor é a altura de parar para pensar. Não é por acaso que nos países com mais desenvolvimento na ciência jurídica, em Itália e na Alemanha, o Pro-cesso de Bolonha foi posto em causa. Em Itália, praticamente as faculdades sabo-taram, porque havia um curso de três anos que eventualmente seria a licencia-tura, de modo que as pessoas optaram por fazer os cinco anos. Na Alemanha recusaram a aplicação do Processo de Bolonha, na Espanha tem havido muitas resistências. Já em França, tinham um sistema diferente do nosso. Mas tam-bém em termos sociais e financeiros o Processo de Bolonha é negativo, porque frequentar o mestrado é mais caro do que a licenciatura. Não democratiza, pelo contrário, desmocratiza.


Sente-se acompanhado nas suas críticas a Bolonha?

Ainda há pouco tempo fiz uma intervenção aqui, na Faculdade, em que falei nisso, e já tenho falado muitas vezes no assunto e não tenho visto publicamente as pessoas serem tão incisivas na defesa dessa reflexão, o que eu lamento profundamente. Acho que as Faculdades de Direito vão pagar muito caro a diminuição da qualidade das licenciaturas em Direito.

 

Fonte: Boletim da Ordem dos Advogados
Mensal nº 98/99 - Janeiro/Fevereiro 2013
Texto Ana Isabel Cabo/Fotos Madalena Aleixo