JANEIRO/FEVEREIRO 2013
PortugalAS REDES JUDICIÁRIAS EUROPEIAS NA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA

ALEXANDRE BATISTA COELHO,
Coordenador do Departamento de Relações Internacionais do CEJ

A existência, no espaço europeu, de órgãos jurisdicionais internacionais não invalida que a administração da Justiça, nas suas várias incidências organizativas, seja ainda matéria que continua fundamentalmente no foro interno dos Estados

Não obstante variados constrangimentos, algumas hesitações e não poucas justificadas interrogações, é inegável que a União Europeia tem assistido a um contínuo processo de integração, em que os diversos Estados membros têm vindo a abdicar de poderes que num modelo clássico de afirmação e de exercí-cio da identidade nacional tradicionalmente lhes estavam reservados. Nesta experiência de evolução política que a nível continental todos vimos testemunhando, com aplauso ou com ceticismo, a área da administração da Justiça é por-ventura aquela em que mais subsistem as particularidades e em que permanece ainda consideravelmente preservado o poder soberano dos Estados, quiçá manifestação derradeira de singularidades que o decurso do tempo e a evolução das coisas tratarão de ir esbatendo.

A existência, no espaço europeu, de órgãos jurisdicionais internacionais, com natural destaque para o Tribunal de Jus-tiça da União Europeia e para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, este com competência alargada a todos os membros do Conselho da Europa, não invalida que a administração da Justiça, nas suas várias incidências organizati-vas, seja ainda matéria que continua fundamentalmente no foro interno dos Estados. Pese embora o importantíssi-mo papel daqueles dois tribunais e a relevantíssima jurisprudência que têm emitido, a sua ação desenvolve-se em áreas de uma competência material espe-cífica, promovida segundo regras processuais comuns, mas que escapam à tramitação concreta de um qualquer modelo nacional.

A realidade das coisas, porém, não se compadece com fron-teiras judiciárias impermeáveis. A livre circulação de bens, de serviços, de mão de obra e de pessoas em geral e a crescente mobilidade decorrente da democratização do transporte aéreo e da acrescida facilidade de comunicações implicam que a atividade dos tribunais e das autoridades judiciárias tenha uma cada vez maior componente e incidência transnacional. Desde as redes da criminalidade organizada, com ramificações em múltiplas origens e destinos, à mera regulamentação litigiosa das responsabilidades parentais entre progenitores de dife-rentes nacionalidades e vivendo separados, exige-se hoje uma estreita colaboração entre Estados no campo judiciário, que viabilize resultados práticos concretos, para além das teias burocráticas, de marcado cariz soberanista, que as mais das vezes funcionam apenas como obstáculo de facto a qualquer solução pronta e eficaz.

Sobretudo ao nível comunitário, para além das inúmeras fontes de direito substantivo, e apoiados em normas dos Tratados da União (hoje constantes dos arts. 81.º e 82.º do TFUE), multiplicaram-se também os instrumentos de coope-ração judiciária internacional, norteados pelo propósito de partilhar de forma fluida informação pertinente, de facilitar procedimentos e boas práticas, ou de reconhecer como válida e relevante, de maneira expedita e num determinado contexto processual nacional, a intervenção ou a decisão tomada por uma autoridade judiciária de um qualquer outro Estado mem-bro. É por isso frequente na vida quotidiana dos tribunais dos países europeus a utilização de institutos processuais de coope-ração internacional, como sejam, por exemplo, o mandado de detenção europeu, a transferência de pessoas condenadas, o título executivo europeu para créditos não contestados ou o processo europeu para ações de pequeno montante.

O adequado conhecimento e a cor-reta aplicação dos diversos instrumen-tos de cooperação judiciária necessi-tam, todavia, ser complementados por entidades que promovam e facilitem o contacto e a colaboração entre as autoridades dos diferentes Estados. Surgiram assim, no âmbito da UE, a Rede Judiciária Europeia, criada em 1998 e destinada a promover e a inter-mediar procedimentos de cooperação em matéria penal, em particular em casos de criminalidade grave, tais como crime organizado, corrupção, tráfico de estupefacientes e terrorismo; e a Rede Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, instituída em 2001, que naqueles domínios visa facilitar a cooperação judiciária entre os Estados membros, melhorar a aplicação efetiva e prática dos instrumentos comunitários e convenções em vigor e, bem assim, estabelecer um sistema de informação acessível ao público em geral. Num e noutro caso, as representações nacionais nas duas redes são asseguradas por pontos de contacto que funcionam como intermediários ativos, assegurando a circulação da informação e a prestação de assistência técnica às autoridades judiciárias dos respetivos Estados, quando solicitada.

Mas vários outros exemplos de organizações de cooperação judiciária podem apontar-se: no espaço europeu, o Eurojust, criado em 2002 e visando promover a coordenação da inves-tigação criminal em casos de criminalidade transfronteiriça; num contexto extraeuropeu, e para citar apenas casos em que Portugal participa, a Ibered (Rede Ibero-Americana de Cooperação Jurídica Internacional), fundada em 2004, e a Rede Judiciária da CPLP, instituída em 2005.

A existência de instrumentos jurídicos de cooperação ju-diciária internacional e de organizações multilaterais que facilitem e promovam a aplicação prática dos mesmos implica, porém, que no terreno se encontrem profissionais do foro qualificados e capacitados em direito internacional e europeu que estejam devidamente habilitados a utilizar os recursos jurídicos disponíveis sempre que necessário.

É neste contexto que surgiu, como documento hoje incon-tornável, a Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões de 13/9/2011, intitulada Gerar confiança numa justiça à escala da UE – Uma nova dimensão para a formação judiciária europeia (http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2011:0551:FIN:PT:PDF), onde foram traçados importantes objetivos e fixadas ambiciosas metas.

Considerando, à partida, que “a criação de uma cultura judicial europeia que respeite plenamente a subsidiarieda-de e a independência judicial é fundamental para o bom funcionamento de um espaço judiciário europeu” e que “a formação judiciária constitui um elemento crucial deste pro-cesso, porquanto reforça a confiança mútua entre Estados membros, profissionais da justiça e cidadãos”, a Comissão foi inequívoca ao definir como seu objetivo “permitir que metade dos profissionais da justiça da União Europeia participe em atividades de formação judiciária europeia até 2020, sendo para o efeito utilizados todos os recursos disponíveis a nível local, nacional e europeu, em conformidade com os objetivos do Programa de Estocolmo”. Ou seja: assumindo que, segundo dados de 2010, ascendia a um total de 1.401.296 o número de profissionais da Justiça nos 27 Estados membros (entre os quais 79.100 juízes, 35.032 procuradores do MP e 868.615 advogados e solicitadores), a Comissão traçou como meta a atingir permitir que pelo menos 700 mil desses profissionais participem, até 2020, em pelo menos uma ação de formação europeia ou um intercâmbio com colegas de um outro Estado membro.

Este é um desafio que hoje se coloca a todas e a cada uma das profissões jurídicas. E é um desafio que os advogados, enquanto parceiros insubstituíveis numa administração da Justiça moderna e de qualidade, decerto não regatearão.

Fonte: Boletim da Ordem dos Advogados Mensal nº 98/99
Janeiro/Fevereiro 2013