DIVISÃO DO PODER, PARTIDOS POLÍTICOS
E CIDADANIA
Jorge
Miranda
1. Ao considerar-se o tema da
separação de poderes, defrontamo-nos sempre com dois
postulados de base, que, nem por serem por demais conhecidos
e objecto de análise convém deixar de repetir e reiterar.
Primeiro postulado: nenhum Estado
existe sem um mínimo de limitação do poder pelo Direito –
porque é sempre o Direito que o constituí e legitima e
porque a própria lei decretada pelos governantes obriga-os
enquanto estiver em vigor e pode adquirir um dinamismo
próprio que o ultrapassa. Mas Estado de Direito é muito mais
do que isso: é limitação material, e não apenas formal; é
limitação para garantia de direitos fundamentais; é
expressão de institucionalização e de racionalidade máximas.
Segundo postulado: a experiência
histórica demonstra que esta limitação material é
inseparável da divisão do poder, pois contra o poder só o
poder. Montesquieu continua actual; só existe liberdade onde
o poder aparece distribuído por vários centros ou sujeitos.
E, sobretudo, Montesquieu é actual pela sua análise de um
pouvoir d' empêcher a par de um pouvoir de statuer.
Daí
-
independentemente das vicissitudes e das disputas doutrinais
– as grandes aquisições do constitucionalismo moderno
manifestadas e alargadas no segundo pós‑guerra,
designadamente por Constituições como a italiana de 1947, a
alemã de 1949, a portuguesa de 1976, a espanhola de 1978 ou
a brasileira de 1988 e por grandes convenções internacionais
de direitos do homem.
Lembrem‑se:
-
o princípio representativo, por
envolver dissociação entre titularidade e exercício do poder
(ao contrário do que se verifica na democracia directa e na
monarquia absoluta);
-
a pluralidade de órgãos da função
política e o princípio da competência;
-
a independência dos tribunais e a
sua reserva da função jurisdicional;
-
a atribuição das grandes decisões
legislativas ao Parlamento
-
tanto pelo seu carácter electivo e pluralista quanto pelo
seu procedimento;
-
o controlo jurisdicional da
legalidade dos actos administrativos e da
constitucionalidade das leis, esta, em especial, a cargo dos
tribunais constitucionais ou tribunais homólogos;
– a responsabilidade do Estado e das
demais entidades públicas por acções ou omissões lesivas de
direitos e interesses das pessoas.
Bem como:
-
a divisão territorial de poder,
através do federalismo, do regionalismo político e até da
simples descentralização administrativa local;
-
a divisão pessoal, através de
incompatibilidade entre cargos públicos;
-
a divisão temporal, através da
fixação de tempo de exercício dos cargos e de limitações à
renovação de mandatos;
-
a divisão político-temporal do
poder, através da previsão de durações diferentes de
mandatos dos titulares dos órgãos representativos e da não
cumulação das datas das respectivas eleições.
-
a divisão
jurídico-administrativa, através de formas variadas de
descentralização (autarquias locais, associações públicas,
Universidades e institutos públicos).
2. Restam não poucos problemas,
uns vindos desde há muito, outros da nossa época ou, nesta,
com maior projecção e acuidade.
Entre eles, os que tocam:
-
às zonas de fronteira entre
política e administração, às leis-medidas e às leis
individuais e ao controlo jurisdicional desses actos e dos
actos de governo;
-
às zonas de fronteira também
entre administração e jurisdição, à distinção dos poderes de
instrução do juiz e dos das comissões parlamentares de
inquérito e às funções, sobretudo quando de regulação, das
autoridades ou entidades públicas independentes;
-
às fronteiras ainda entre a
justiça constitucional e a liberdade de conformação do
legislador, à interpretação conforme com a Constituição, às
sentenças aditivas e apelativas dos tribunais
constitucionais, à fiscalização da inconstitucionalidade por
omissão.
E, mais amplamente, mais no plano da
realidade constitucional do que no das normas, penso:
-
na estrutura interna e na
limitação dos poderes dos partidos enquanto associações de
Direito Constitucional;
-
na afirmação da autoridade
democrática perante os diversos e pujantes corporativismos,
especialmente os dos grandes corpos do próprio Estado (como
a magistratura, os militares ou os dirigentes da função
pública) assim como perante os grupos de interesses da
sociedade civil (sejam económicos, sejam sindicais,
desportivos, culturais ou clericais);
-
nos limites à concentração
oligopolista na comunicação social;
-
na emergência da sociedade da
informação e daquilo a que se vai chamando democracia
electrónica;
-
no controlo democrático do poder
económico, seja dos privados, seja dos gestores públicos;
-
em geral, enquanto liberdade e
poder aí se interpenetram, na eficácia de direitos,
liberdades e garantias nas relações de desigualdade entre
particulares;
-
enfim, na era da integração
comunitária e da globalização, na necessidade
-
com base ou não num princípio de subsidiariedade
-
de se deixar espaço ao Estado no cotejo dos poderes supra e
transnacionais, por ser no âmbito do Estado que os cidadãos
partilham sentimentos identitários e podem exercer direitos
de participação democrática;
– inversamente, na necessidade – em
nome da solidariedade na salvaguarda de direitos
fundamentais universais, da salvação do planeta e da
segurança colectiva – de reforçar os instrumentos e as
organizações de cooperação e de jurisdição, inclusive de
jurisdição penal internacional.
3. De todas estas questões,
imensas e complexas, as únicas (tendo de escolher) sobre as
quais vou falar são as concernentes aos partidos políticos –
até porque, parafraseando
Maurice Duverger
(na sua obra fundamental de 1952, Les partis politiques)
o grau de separação de poderes depende muito mais do sistema
de partidos do que das disposições consignados na
Constituição.
Com efeito, como se sabe, em sistema de
partido único, como foram os comunistas, os fascistas e os
de muito países africanos, não existe nunca verdadeiramente
separação de poderes, mesmo se a Constituição estabelece
órgãos com competências diferenciadas. E o mesmo poderia
dizer‑se a respeito do “Estado sem partidos” de Salazar, em
Portugal, dos anos 30 até 1974.
Ao invés, em sistemas de pluralidade de
partidos – os do Estado democrático de Direito e da
democracia representativa de tipo ocidental – eles concorrem
entre si para o acesso ao poder a para, como consta, por
exemplo, das Constituições italiana de 1947 e da portuguesa
de 1976, para a formação da vontade política do povo.
Maurice Duverger, naquela obra, analisaria depois as
relações entre sistemas eleitorais e sistemas de partidos,
afirmando que:
– um sistema de representação
proporcional conduziria a partidos múltiplos, com
implicações no funcionamento do sistema de governo;
– um sistema de representação
maioritária uninominal com dois turnos, a um sistema de
partidos múltiplos e a um dualismo de blocos políticos;
– e um sistema de representação
maioritário uninominal com um só turno de votação (quer
dizer, bastando a maioria relativa para um candidato ser
considerado eleito) a um sistema de dois grandes partidos,
em rotação no poder.
As proposições ou leis (como, por
vezes, foram chamadas) de
Duverger foram
muito criticadas, ou corrigidas ou completadas,
ulteriormente, embora não deixem de ser comprovadas, em grau
variável, em muitos países. É bem conhecido, por exemplo, o
contributo de Douglas
Rae, ao salientar a importância da magnitude dos
círculos eleitorais (ou do maior ou menor número de mandatos
que lhes correspondem).
Seja como for, o princípio democrático
compreende o princípio da maioria e, por conseguinte, o
partido ou a coligação de partidos que obtém a maioria de
mandatos deve governar e os restantes passam para a Oposição
(estou raciocinando, como é óbvio, em sistemas parlamentares
e semiparlamentares ou semipresidenciais; em sistemas
presidenciais, há outros problemas).
Ora, realizando‑se as eleições, por
natureza, periodicamente, quem estiver hoje no Governo,
amanhã estará na Oposição e quem estiver hoje na Oposição
amanhã estará no Governo. E essa expectativa de alternância
traduz, só por si, um investimento de confiança, de paz
cívica e de estabilidade constitucional – sim, também de
estabilidade constitucional, porquanto, como qualquer
maioria é maioria de certo momento ou de certa conjuntura,
não pode sozinha alterar a Constituição, a Carta dos
direitos fundamentais e das regras do jogo.
Donde, divisão de poder:
– sincronicamente, em cada tempo,
entre maioria e minoria entre Governo e Oposição, com as
inerentes garantias de liberdade;
– diacronicamente, ao longo dos tempos,
entre diferentes orientações políticas e programáticas que
se vão sucedendo à medida dos resultados das eleições e da
variação das circunstâncias.
4. Mas, dito isto, há ainda uma
forma de divisão de poder, não menos importante, nada
despicienda à luz dos grandes princípios de um Estado de
Direito, e que, todavia, nem sempre tem merecido a devida
atenção. Refiro‑me à divisão de poder entre os partidos e os
cidadãos ou, se se preferir, entre os partidos e a sociedade
civil.
Entram, aqui, os problemas:
– o exclusivo ou não do impulso
político, designadamente de propositura de candidaturas, dos
partidos;
– da relação entre o Parlamento e o
referendo, ou entre democracia representativa e democracia
semidirecta;
– da separação entre Governo ou
partido de Governo e Administração, à luz das exigências de
institucionalização e isenção desta;
– da relação entre as direcções
partidárias (eleitas, pressupondo que seja observado o
método democrático, pelos militantes) e os Deputados
(eleitos por todos os cidadãos).
Onde fica aqui a ideia de cidadania,
como status activae civitatis, na fórmula de
Jelinek, ou a
de status activae processualis, na de
Häberle?
5. Em democracia pluralista, os
partidos não são seguramente órgãos de Estado, não lhes
compete praticar actos imputáveis ao Estado. Ao invés, tão
pouco se reduzem a meras entidades privadas. Pelo relevo
que adquirem e pelos direitos e poderes que, da Constituição
formal, da lei ou de costumes ou convenção constitucional
recebem, o seu estatuto não pode deixar de ser um estatuto
de Direito público.
Por isso justifica-se inteiramente que
se lhes estendam os grandes princípios constitucionais de
organização política, desde os relativos às eleições até aos
respeitantes à divisão do poder. Não faria sentido que
tantos direitos e poderes não acarretassem deveres e ónus,
nem, que a democraticidade fosse exigida para o Estado e não
também para os partidos, sujeitos determinantes do
contraditório político em sufrágio universal.
Não se trata, evidentemente, de uma
rígida predefinição uniformizadora da vida interna dos
partidos. Trata-se apenas de uma transposição de certos
princípios como o do voto individual, directo, secreto e
periódico, o da liberdade e igualdade das candidaturas, o da
pluralidade dos órgãos partidários, ou o do controlo dos
seus actos. Trata-se de impedir o culto da personalidade, o
domínio dos aparelhos e a corrupção.
Em Portugal, na revisão constitucional
de 1997, não só se estabeleceu que os partidos deveriam
reger-se pelos princípios da transparência, da organização e
da gestão democrática e da participação de todos os seus
membros (artigo 51.º, n.º 5) como se atribuiu ao Tribunal
Constitucional competência para julgar as acções de
impugnação de eleições e deliberações de órgãos de partidos
políticos [artigo 223.º, n.º 2, alínea h)], apesar de
não ter sido grande até agora o impacto das novas normas.
6. Só os partidos são capazes de
gerar Governos e programas de Governo e, por conseguinte,
com ou sem previsão constitucional, cabe-lhes o essencial
das iniciativas políticas a nível nacional e local.
Não quer isto dizer que não possa ou que
não deva existir impulso político por parte dos cidadãos.
Ele decorre, pelo menos, do exercício das liberdade de
expressão, de associação, de reunião e de manifestação e das
demais liberdades públicas; decorre da actividade dos grupos
que se constituam por causa destes ou daqueles problemas
colectivos; do direito de petição, assim como quando
admitida da iniciativa popular. Tudo está em saber até onde
os grupos de cidadãos conseguem influenciar as decisões
governativas e qual a independência que conseguem preservar
diante dos próprios partidos e de outras organizações.
Problemática delicada vem a ser a das
candidaturas. Há Constituições, como a portuguesa, que
procuram reparti-las: candidaturas para o Parlamento
reservadas aos partidos, candidaturas para a Presidência da
República reservadas a grupos de cidadãos, candidaturas para
os órgãos do poder local provenientes de uns e outros. Na
prática, o papel dos partidos apresenta-se prevalecente (se
bem que nas eleições presidenciais e nas municipais surjam
factores de ordem pessoal que se repercutem nos resultados).
Naturalmente, certos sistemas eleitorais
poderão depois conferir aos eleitores em geral um maior ou
menor poder de escolha: assim, quando se estabeleça lista
não bloqueada, ou voto cumulativo, ou voto único
transferível, ou círculos uninominais ou circunscrições de
candidatura. Tal como pode ser preconizada a adopção, com
mais ou menos adaptações, do modelo norte-americano de
eleições primárias, abertas tanto aos militantes quanto aos
simpatizantes dos partidos. De todo o modo, parece
ineliminável alguma desigualdade entre cidadãos inscritos em
partidos
-
que se supõe mais envolvidos na intervenção e na
responsabilidade política permanente
-
e os demais cidadãos.
7. Outro ponto a considerar diz
respeito ao referendo ou plebiscito (para mais, significam o
mesmo – a votação popular para a tomada de decisões ou a
pronúncia sobre determinadas questões).
O referendo é uma instância de poder que
só faz sentido desde que seja um complemento
-
de propulsão ou de correcção
-
da decisão do Parlamento, e não uma instância de repetição
ou de substituição ou, muito menos (como tem sucedido em
regimes autoritários ou totalitários) uma instância de
aclamação. E, para assim ser, o referendo tem de repousar
nos cidadãos, directa e livremente, e poderá revelar-se um
excelente estímulo a diferentes e novos movimentos sociais,
utilíssimos também para o arejamento da democracia.
A lei portuguesa assegura a grupos de
cidadãos, em número não inferior, cada um, a 5 000, a
participação nas campanhas referendárias, com os inerentes
direitos de propaganda. Os partidos não ficam excluídos, mas
deveriam aceitar certa autocontenção, não constrangendo, nem
instrumentalizando aqueles grupos. Nos três referendos
nacionais até agora efectuados, infelizmente, tal não se
verificou.
Mais ainda: o referendo não deveria
incidir sobre questões inerentes a um programa de Governo ou
de cuja resolução dependesse a subsistência do Governo (até
porque também cabe aqui salvaguardar a separação de poderes
- a separação de poderes entre o Povo e o Parlamento).
Senão, a não aceitar-se esta tese, um Governo derrotado em
votação referendaria terá de demitir-se ou o Parlamento terá
de ser dissolvido.
8. Muito haveria a dizer acerca
da isenção político-partidária da Administração pública. Um
Estado democrático de Direito pressupõe-na.
A meu ver, mesmo os escalões mais
elevados devem estar-lhe vinculados, o que implica, por um
lado, um acesso exclusivamente por carreira e garantia de
estabilidade (ou até de inamovibilidade) dos dirigentes; e,
por outro lado, em contrapartida, uma estrita neutralidade
político-partidária, sem que esses dirigentes possam
pertencer a qualquer partido. Há países (Portugal, por
exemplo) que não têm alcançado este nível de exigência, com
as consequências negativas que se conhecem.
Outra coisa é a designação pelo Governo
ou Poder Executivo para cargos de natureza política ou de
confiança política fora da Administração. Aí, toda a
identificação partidária é legítima. A única restrição
-
a defender com rigor, em virtude ainda do princípio da
separação dos poderes
-
refere-se a Deputados e, por maioria de razão, a juízes: um
Deputado que aceite um desses cargos, ainda que não
remunerado, deve perder ou renunciar ao mandato; um Juiz
deve sair da magistratura, e um Juiz de tribunal
constitucional ou equivalente, durante alguns anos após a
cessação das suas funções, não deve assumir cargos políticos
no Estado e em partidos políticos.
9. Permita‑se‑me, ainda
enfatizar uma preocupação que há muito tenho acerca do
funcionamento dos Parlamentos, por atingir o cerne do
sentido das eleições. É a seguinte.
Adopte-se a representação proporcional
ou a maioritária, reserve-se ou não aos partidos o exclusivo
de apresentação de candidaturas, em todos os países
democráticos são os candidatos propostos por partidos que
ocupam a totalidade ou a quase totalidade dos lugares dos
Parlamentos. E, ainda que em círculos uninominais o
contacto eleitor-Parlamentar seja muito mais forte do que
aquele que pode dar-se em círculos plurinominais com
sufrágio por lista, mesmo ali os Deputados e Senadores
aparecem enquadrados por organizações partidárias – tal
como, em contrapartida, não deixa nunca de ser relevante o
factor pessoal na escolha dos candidatos e na sua colocação
nas listas nos países de representação proporcional.
Que relação deve haver, contudo, entre
Deputados ou Senadores e partidos? Qual o grau de autonomia
de cada Deputado ou Senador enquanto membro do Parlamento?
Como inserir os Deputados e Senadores eleitos pelos diversos
partidos uns em face dos outros, formando todos uma mesma
câmara? E como proceder em caso de conflito?
Uma tese radical tenderia a afirmar que
a representação política se teria convertido em
representação partidária, que o mandato verdadeiramente é
conferido aos partidos e não aos Parlamentares e que os
sujeitos da acção parlamentar acabam por ser, não os
Deputados e Senadores, mas os partidos ou quem aja em nome
destes. Deveriam ser pois, os órgãos dos partidos a decidir,
(com maior ou menor democraticidade ou com maior ou menor
centralismo democrático) sobre as orientações de voto dos
membros do Parlamento, sujeitos estes a uma obrigação de
fideliade a que não poderiam escusar-se senão em
casos-limite de escusa de consciência.
Esta concepção ignora que, embora
propostos pelos partidos, os Deputados e Senadores são
eleitos por todos os cidadãos e não apenas pelos militantes
ou pelas bases activistas dos partidos e que juridicamente
representam todo o povo. Levada às últimas consequências,
com as comissões políticas ou os secretariados, exteriores
ao Parlamento, a dizer como os seus membros haveriam de
votar, essa concepção transformaria a assembleia política em
câmara corporativa de partidos e retirar‑lhe-ia a própria
qualidade de órgão de soberania, por afinal ela deixar de
ter capacidade de livre decisão. Porque, se a democracia
assenta na liberdade política e na participação, como
admitir que nos órgãos dela mais expressivos, os
Parlamentos, os Deputados e Senadores ficassem privados de
uma e outra coisa?
O entendimento mais correcto, dentro do
espírito do sistema, parece dever ser outro. A representação
política hoje não pode deixar de estar ligada aos partidos,
mas não converte os Parlamentares em meros porta-vozes dos
seus aparelhos. Pode dizer-se que o mandato parlamentar é
(salvo em situações marginais) conferido tanto a eles quanto
aos partidos; não é aceitável substituir a representação dos
eleitores através dos eleitos pela representação através dos
dirigentes partidários, seja qual for o modo por que estes
são escolhidos. E, se em partidos fortemente ideológicos
correspondentes a bem caracterizadas minorias políticas como
os colocados em extremos do espectro político, não será
muito grande o desfasamento entre eleitores e militantes, já
nos restantes partidos ele será acentuado; e cabe perguntar
se os Deputados e Senadores eleitos pelas listas de um
partido estão mais vinculados aos militantes do que aos
cidadãos eleitores, ou se têm mais base de apoio os órgãos
representativos de 100 000 ou os Deputados votados por um ou
mais milhões.
Não por acaso, por isso, mesmo quando há
reserva constitucional de candidatura aos partidos, um pouco
por toda a parte, garante-se aos Deputados a subsistência
dos seus mandatos independentemente dos partidos. Uma vez
feita a verificação de poderes, eles não podem ser
substituídos contra a sua vontade. E, portanto, se deixarem
de pertencer aos respectivos partidos, por decisão sua ou
por expulsão, não perderão o mandato – pelo menos, como
sucede em Portugal, se não se inscreverem em partido diverso
daquele por que foram propostos ao eleitorado [artigo 160.º
, n.º 1, alínea c) da Constituição].
Uma democracia representativa autêntica
exclui tanto a circulação livre de Representantes deste para
aquele partido como uma fidelidade partidária cega,
contrária à liberdade e à responsabilidade dos eleitos pelo
povo.
Portanto, dando como certo o carácter
bivalente da representação política, é preciso procurar o
enlace, o ponto de encontro específico dos Deputados e
Senadores e partidos. Ora, esse enlace não pode ser senão o
que oferecem os grupos ou bancadas parlamentares como
conjuntos dos Deputados e Senadores eleitos pelos diversos
partidos (em que, de resto, nem sempre é obrigatória a
inscrição dos Deputados e Senadores). São os grupos
parlamentares que exercem as faculdades de que depende a
actuação dos partidos nas assembleias políticas e só eles
têm legitimidade democrática para deliberar sobre o sentido
do seu exercício, não quaisquer outros órgãos ou centros de
decisão extraparlamentares. E por aqui se afastam quer uma
pura concepção individualista vendo o Parlamentar isolado ou
desinserido de uma estrutura colectiva quer uma pura
concepção partitocrática em que os homens dos aparelhos ou
as “bases” se sobrepusessem aos Deputados e Senadores e aos
seus eleitores.
Nem se excluem, assim, os corolários
mais importantes do regime de eleição mediatizada pelos
partidos, designadamente quanto à disciplina de voto ou à
perda de mandato do Deputado ou Senador que mudar de
partido. Pelo contrário, eles ficam colocados à sua
verdadeira luz, que em sistema democrático, só pode ser a da
cidadania de eleitores e de eleitos. Pois, se os grupos ou
bancadas parlamentares implicam uma avançada
institucionalização dos partidos, são, ao mesmo tempo um
anteparo ou um reduto da autonomia individual e colectiva
dos Parlamentares
-
dos Parlamentares que, por serem eles a deliberar, mais
obrigados ficam a votar, salvo escusa de consciência,
conforme a maioria se pronunciar.
10. Vou terminar, e vou terminar
reconhecendo que a realidade, em Portugal e na maior parte
dos países europeus, está longe destas exigências de rigor
democrático e constitucional.
Não obstante, não creio que o sistema
que hoje se vive, com o domínio absorvente dos partidos e,
dentro dos partidos, dos seus dirigentes máximos, seja
irreversível. Bem pelo contrário: o desencanto crescente dos
cidadãos, com abstencionismos eleitorais impressionantes
(sem falar em fenómenos graves de clientelismo e de
corrupção) apontam para mudanças a médio prazo. Tudo estará
então em evitar os males inversos, e ainda piores, do
populismo. Tudo estará em fazer apelo ao sentido profundo da
cidadania republicana e às forças morais e culturais que
permanecem na sociedade, apesar da crise de valores que se
vai espraiando.
Como constitucionalista que preza, antes
de tudo, a coerência, sinto ser meu dever e dever também
académico, procurar contribuir para mais e melhor
democracia, mais e melhor Estado de Direito. E em Brasília,
cinquenta anos depois da sua inauguração (com tudo quanto
significou para o Brasil e para o mundo) e neste magnífico
Instituto de Direito Público, ouso outrossim supor que
poderei ser ouvido.
|