O LUGAR
DOS SISTEMAS JURÍDICOS LUSÓFONOS
ENTRE AS
FAMÍLIAS JURÍDICAS
Dário Moura Vicente
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa
Sumário
I – Introdução
1. A recepção de ordens jurídicas estrangeiras e o seu
significado histórico nos sistemas lusófonos.
2. Convergência de sistemas jurídicos e pluralismo jurídico.
3. Famílias e tradições jurídicas.
4. Indicação de sequência.
II – Common Law e Civil Law num mundo
«globalizado»
5. As raízes romanas.
6. As fontes e o método.
7. O direito subjectivo.
8. Estado de Direito e Rule of Law.
9. Ideais e valores.
10. Convergência entre os sistemas de Common e de
Civil Law.
III – A família jurídica romano-germânica e os ramos em que
se divide
11. Uma ideia de Direito comum.
12. Sistemas de matriz francesa e sistemas de matriz
germânica.
IV – Os sistemas jurídicos lusófonos e o seu lugar entre as
famílias jurídicas
13. Traços de união entre os sistemas jurídicos lusófonos.
14. Factores de diferenciação desses sistemas.
15. Caracterização dos sistemas jurídicos lusófonos.
I
Introdução
1. A recepção de ordens jurídicas estrangeiras e o seu
significado histórico nos sistemas lusófonos. – A
evolução dos sistemas jurídicos é largamente tributária de
fenómenos de recepção, ou transplante, de ordens jurídicas
estrangeiras ou passadas.
Entre eles sobressai a recepção do Direito Romano, ocorrida,
como se sabe, em vários países do continente europeu a
partir do século XII.
Uma «segunda vaga» de recepções
teve lugar com a introdução das grandes codificações
europeias em vários países e territórios deste e de outros
continentes, nos séculos XIX e XX. E uma «terceira vaga»
registou-se na segunda metade do século pregresso, por via
da difusão na Europa continental de novos tipos contratuais
oriundos do universo jurídico anglo-saxónico (em particular
o norte-americano), como o leasing, o factoring,
o franchising, etc., e da consagração legal e
jurisprudencial de regimes especiais de responsabilidade
civil, igualmente emanados dos Estados Unidos da América,
entre as quais a do produtor, a dos médicos e a dos
provedores de serviços de Internet.
Vários
fenómenos de recepção visaram especificamente o Direito
português. Está neste caso o que ocorreu no Brasil, após a
independência, onde o art. 1.º da Lei de 20 de Outubro de
1823 estabeleceu:
«As Ordenações, Leis, Regimentos, Alvarás, Decretos e
Resoluções promulgadas pelos Reis de Portugal, e pelas quais
o Brazil se governava até o dia 25 de Abril de 1821, em que
Sua Magestade Fidelissima, actual Rei de Portugal, e
Algarves, se ausentou desta Corte; e todas as que foram
promulgadas daquella data em diante pelo Senhor D. Pedro de
Alcântara, como regente do Brazil, em quanto Reino, e como
Imperador Constitucional delle, desde que se erigiu em
Império, ficam em inteiro vigor na parte em que não tiverem
sido revogadas, para por ellas se regularem os negocios do
interior deste Império, emquanto se não organizar um novo
Código, ou não forem especialmente alteradas.»
Em virtude desta disposição
legal, as Ordenações Filipinas permaneceram em vigor no
Brasil até 1 de Janeiro de 1917, data em que começou a
aplicar-se o novo Código Civil, cujo art. 1807 as revogou no
tocante às matérias por ele reguladas. Mas também este
diploma legal, não obstante os traços de originalidade que o
caracterizavam, preservou em múltiplos aspectos a tradição
jurídica portuguesa – porventura até mais fielmente do que o
próprio Código Civil português de 1867.
Mais recentemente, o Código Civil brasileiro de 2002
reavivou a ligação entre os sistemas jurídicos dos dois
países, ao aproximar-se, em várias das suas disposições, do
Código português de 1966.
A assimilação de
valores jurídicos nacionais deu-se igualmente em outras
antigas possessões ultramarinas portuguesas. Foi o que
sucedeu em Goa, Damão e Diu. Aí vigoram ainda, por força do
Goa, Daman and Diu Administration Act 1962, as
disposições do Código Civil português de 1867 respeitantes,
designadamente, ao Direito
da Família (como, por exemplo, as que estabelecem o regime
supletivo de bens do casamento, que é naquele território,
como dispunha o referido Código, o da comunhão geral) e ao
Direito das Sucessões, assim como diversa legislação avulsa
portuguesa sobre as mesmas matérias, incluindo a Lei do
Divórcio de 1910.
Essas disposições desempenham, aliás, um importante papel na
integração das diferentes comunidades religiosas (cristãs,
hindus e muçulmanas) que habitam naqueles territórios,
incorporados na União Indiana em 1961.
Também nos países africanos de
expressão oficial portuguesa foi preservado, por força de
disposições constitucionais transitórias, o Direito
português anterior à independência.
Continua, assim, em vigor naqueles países o Código Civil de
1966. Foram,
é certo, entretanto adoptadas novas leis, algumas das quais
alteraram significativamente o Direito anterior.
Mas em muitos casos essas leis inspiram-se igualmente no
Direito português e acompanham a evolução recente deste.
Assim sucedeu, por exemplo, na Guiné-Bissau, com a lei da
arbitragem voluntária, de 2000;
em Angola, com a lei sobre as cláusulas contratuais gerais,
de 2002, e a lei sobre as sociedades comerciais, de 2004;
e em Moçambique, com o Código Comercial, de 2005.
Em Macau, o Direito vigente
filia-se também na tradição portuguesa, tendo a Lei Básica
deste território mantido em vigor a legislação local após a
transferência da respectiva administração para a República
Popular da China, ocorrida em 1999.
Deu-se assim cumprimento ao que ficara acordado na
Declaração Conjunta Luso-Chinesa, de 1987.
Na referida legislação incluem-se o Código Penal, o Código
de Processo Penal, o Código Civil, o Código de Processo
Civil e o Código Comercial, adoptados entre 1995 e 1999,
através dos quais se procurou modernizar e adaptar à
realidade local a legislação portuguesa.
Timor-Leste é um caso
particular. A ocupação deste antigo território português
pela Indonésia, entre 1975 e 1999, determinou a
aplicabilidade, durante este período, das leis indonésias.
O Direito português cessou então a sua vigência de facto.
Mas o novo Direito deste país, em formação desde a
independência, reflecte também a cultura jurídica portuguesa
– bem patente, por exemplo, na Constituição de 2002 e no
projecto de Código Civil divulgado pelo Ministério da
Justiça em 2008.
2.
Convergência de sistemas jurídicos e pluralismo jurídico. –
Os fenómenos de recepção de ordens jurídicas
estrangeiras são apenas uma das formas possíveis da
interacção entre sistemas jurídicos, que caracteriza o
Direito contemporâneo. Outras manifestações dessa
interacção, de igual importância, incluem
a formação, ocorrida
sobretudo ao longo do último século, de um vasto número de
sistemas jurídicos mistos, ou híbridos, nos quais se
conjugam as características distintivas de sistemas
integrados em diferentes famílias jurídicas;
e
as múltiplas iniciativas, levadas a cabo
desde os finais de Oitocentos (primeiro na Europa e depois à
escala universal), que tiveram em vista a harmonização e a
unificação do Direito Privado através de instrumentos
jurídicos de fonte internacional ou supranacional.
A importância desses fenómenos
levou alguns a concluirem que estaria em curso uma
inexorável «diluição de fronteiras» ou, pelo menos, uma
«convergência gradual» dos sistemas jurídicos nacionais.
Esta conduziria, no limite, à formação de um
novo Ius Commune, de âmbito regional
ou mesmo universal, que se supõe mais adaptado às
necessidades da economia moderna,
maxime as resultantes da intensificação das trocas
internacionais e da facilitação das comunicações à distância.
O certo, porém, é que a pluralidade e a
diversidade dos sistemas jurídicos nacionais não só não se
desvaneceram como se acentuaram até nas últimas décadas,
mercê, designadamente, da formação de novos Estados
proporcionada pelas sucessivas descolonizações ocorridas a
partir dos anos cinquenta e da desintegração do bloco
político-económico centrado na antiga União Soviética, nos
anos noventa. A própria «globalização» ou «mundialização» da
economia concorreu nesse sentido, em virtude da
especialização das produções agrícolas e industriais que
fomentou e da diversificação dos problemas sociais que lhe é
inerente.
De resto, à referida aproximação dos sistemas
jurídicos nacionais não são alheios certos riscos, entre os
quais avulta o de as regras que os integram se distanciarem
excessivamente das
necessidades reais das sociedades em que se destinam a
vigorar e do sentimento
de justiça prevalecente entre os seus membros,
em detrimento do princípio da adequação que deve
nortear toda a regulação jurídica da vida social.
Por outro lado, a
indiscriminada assimilação de modelos jurídicos alheios, tal
como outras formas de interacção cultural que caracterizam a
nossa era, envolve o duplo perigo, para o qual Bento XVI
alertou recentemente,
do ecletismo cultural e do nivelamento de
culturas, bem como do relativismo e da
homogeneização dos comportamentos e estilos de vida que lhes
andam associados – em suma, de
perda da identidade cultural.
A intensificação do intercâmbio
económico, político e cultural, certamente desejável
enquanto factor de desenvolvimento e garantia da convivência
pacífica entre os povos, não é, a nosso ver, incompatível
com a preservação de um certo grau de pluralismo
jurídico, tomado aqui como a coexistência de sistemas
jurídicos distintos, que constituem a expressão normativa de
mundividências diversas e de valores e ideais diferenciados.
3.
Famílias e tradições jurídicas. – É justamente desse
pluralismo que o Direito Comparado procura dar conta. Para
tal, este ramo da Ciência Jurídica ordena os sistemas
jurídicos em tradições ou famílias jurídicas –
entendidas as primeiras como formas típicas de conceber o
Direito, que encarnam historicamente em certo ou certos
sistemas jurídicos, e as segundas como grupos de sistemas
jurídicos que partilham um conceito de Direito. Este
último define-se a partir do entendimento prevalecente em
cada sistema jurídico quanto a certas questões fundamentais,
como a relevância do Direito enquanto forma de regulação da
vida social, as funções precípuas que lhe pertencem, as suas
fontes, os valores primordiais a cuja realização se dirige,
os meios preferenciais de resolução de litígios, os métodos
de descoberta da solução dos casos singulares, o papel dos
juristas e o modo predominante da sua formação.
A verdade,
porém, é que não há – nem existiu nunca – unanimidade de
vistas quanto à identificação dessas famílias e tradições
jurídicas.
Certo, a generalidade dos
autores admite a existência de uma família ou tradição
jurídica de Common Law (ou anglo-americana),
compreendendo os Direitos inglês e norte-americano, e
outra de Civil Law (ou romano-germânica), na qual se
incluem os sistemas jurídicos da maior parte dos países da
Europa continental.
Alguns admitem ainda uma família jurídica islâmica ou
muçulmana, em que se inserem os sistemas jurídicos vigentes
nos países africanos e asiáticos onde predomina o Islamismo
e em que a Xaria constitui a fonte primordial de
Direito. Mas já não pode dizer-se inteiramente pacífica a
autonomização de uma família jurídica lusófona, ou
lusitana, integrada pelos sistemas jurídicos dos países
de língua oficial portuguesa, como sugeriu Erik Jayme,
recentemente secundado por Carl Friedrich Nordmeier.
4.
Indicação de sequência. – É deste último problema que
vamos ocupar-nos na presente exposição. Para tanto,
enunciaremos em primeiro lugar os traços distintivos
fundamentais das duas famílias jurídicas mencionadas em
primeiro lugar – matéria que assume especial interesse no
contexto deste estudo porquanto, como veremos, alguns
sistemas jurídicos lusófonos se situam hoje na linha de
fronteira entre Common Law e Civil Law (II).
Procuraremos em seguida identificar, caracterizando-os
sucintamente, os principais ramos em que se divide a
família jurídica romano-germânica (III). Na base dos
elementos assim recolhidos, tentaremos determinar, por fim,
o lugar dos sistemas jurídicos lusófonos entre as referidas
famílias jurídicas (IV).
II
Common Law
e Civil Law num mundo «globalizado»
Ora, o que distingue, no
essencial, as famílias jurídicas romano-germânica e de
Common Law? A resposta a esta pergunta prestar-se-ia a
grandes desenvolvimentos, que não podemos levar a cabo aqui.
Limitar-nos-emos, por isso, a assinalar alguns dos pontos de
clivagem mais relevantes entre estas duas famílias jurídicas.
5. As raízes romanas. –
O primeiro deles prende-se com a influência
determinante que o Direito Romano exerceu sobre a formação
da família romano-germânica. É ele, com efeito, que está na
origem de muitas das suas instituições e categorias
próprias, incluindo a summa divisio entre Direito
Público e Privado,
a sistematização deste último em razão das pessoas, das
coisas e das acções (personae, res, actiones),
o conceito de obrigação (obligatio)
e a classificação das obrigações em contratuais,
quase-contratuais, delituais e quase-delituais.
O Direito Romano vigorou, além disso, como Direito
subsidiário em diversos países europeus, incluindo Portugal,
onde coexistiu com Direito nacional de fonte legislativa e
consuetudinária.
Diferentemente, os sistemas
jurídicos de Common Law ficaram, no essencial, imunes
à influência do Direito Romano. Não que este fosse
desconhecido deles, pois chegou a ser ensinado nas
Universidades inglesas. Mas na Idade Média a aplicação das
fontes romanas foi rejeitada pelos juristas ingleses e
proscrita por decisão real. Na raiz deste fenómeno terá
estado, por um lado, o receio de que a recepção do Direito
Romano conduzisse a uma restrição das liberdades individuais
consagradas no Direito inglês, então de fonte essencialmente
consuetudinária;
e, por outro, a circunstância de a administração da justiça
ter sido centralizada em Inglaterra, desde muito cedo, nos
tribunais reais e de se ter formado, na base das decisões
por estes proferidas, um Direito comum a todo o
reino, que gradualmente absorveu e substituiu os costumes
locais – algo que só muito mais tarde sucederia na Alemanha,
em França e em Portugal.
6. As
fontes e o método. – Parece inequívoco que em ambas as
famílias jurídicas em apreço o Direito assume uma função
nuclear na regulação da vida social. É, contudo,
fundamentalmente diverso o modo como se descobre nelas a
solução do caso singular.
Na família romano-germânica,
pese embora a contemporânea crise do normativismo, prevalece
ainda a tendência para deduzir de normas previamente
formuladas para uma generalidade de situações abstractamente
definidas o comando que há-de governar as situações
concretas da vida.
É, aliás, à
luz dessas normas que a própria matéria de facto deve ser
delimitada e posteriormente apreciada pelos tribunais.
Reflecte esta orientação o art. 511.º do Código de Processo
Civil português, ao estabelecer:
«O juiz, ao fixar a base instrutória, selecciona a matéria
de facto relevante para a decisão da causa, segundo as
várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva
considerar-se controvertida.»
Nos
sistemas de Common Law não existe norma equivalente.
Os tribunais partem aí dos factos. Não há uma definição
prévia da norma aplicável, a qual apenas surge, as mais das
vezes, na própria decisão do caso, correspondendo à
respectiva ratio decidendi. Esta, por seu turno,
apenas pode ser determinada na base de uma ponderação dos
factos, dos quais é indissociável.
Compreende-se assim que nos sistemas romano-germânicos se
distinga a jurisdição contenciosa, decidida segundo
critérios normativos, da jurisdição graciosa, baseada
em critérios de conveniência e oportunidade; distinção esta
que não é feita nos sistemas de Common Law.
Prefere-se geralmente nestes
últimos a valoração das situações concretas da vida à luz da
solução anteriormente dada a casos idênticos ou análogos e
dos policy issues por elas suscitados.
Por isso pôde Oliver Wendell Holmes afirmar que «a essência
do Direito não é a lógica, mas antes a experiência».
Mais do que um sistema de normas e princípios, o Direito é
tido na família de Common Law como um conjunto de
«remédios jurídicos», criados caso a caso pela
jurisprudência. Tende, pois, a vingar nela uma
perspectiva jurisdicionalista do Direito. Este evolui
essencialmente por pequenos incrementos, gerados pelas
decisões judiciais e ditados pelas necessidades da vida; não
através de reformas legislativas.
Vem daqui o
lugar proeminente conferido à jurisprudência nos sistemas de
Common Law, que a elevam à condição de fonte
primordial de Direito através da força vinculativa
reconhecida aos precedentes judiciais. Já as normas legais
possuem nesses sistemas carácter excepcional; e quando
existem revestem-se de um grau de abstracção notoriamente
inferior ao das normas legais dos sistemas
romano-germânicos.
7. O direito subjectivo.
– Frequentemente, a aplicação das normas traduz-se,
na família romano-germânica, no reconhecimento de um
direito subjectivo.
Este é tido predominantemente, desde Savigny,
como um poder jurídico: o poder de exigir de outrem
certa conduta ou de produzir certos efeitos na esfera
jurídica alheia. Gerou-se, aliás, nesta família jurídica uma
cultura dos direitos, patente na ideia, proclamada
por Jhering,
segundo a qual a «luta pelo direito subjectivo» constitui um
dever do seu titular para consigo próprio e de todos para
com a sociedade.
Consagra-se
nos sistemas integrados nessa família jurídica, além disso,
um direito de acção. «A todo o direito», diz o art.
2.º, n.º 2, do Código de Processo Civil português, «excepto
quando a lei determine o contrário, corresponde a acção
adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou
reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem
como os procedimentos necessários para acautelar o efeito
útil da acção».
Ubi ius,
ibi remedium:
este, em suma, o princípio que domina a matéria em apreço
nos sistemas romano-germânicos.
Outra foi,
durante muito
tempo, a orientação que prevaleceu em Inglaterra, onde os
tribunais reais só deferiam as pretensões a que
correspondesse uma acção («form of action»)
apropriada. A existência de um meio processual adequado
condicionava, assim, o reconhecimento dos direitos
subjectivos: «where there is a remedy, there is a right».
O conceito
de direito subjectivo não era, pois, conhecido em
Inglaterra. O que bem se compreende. Esse conceito
constituiu, na Europa Continental, um instrumento de
liberdade: a sua afirmação pelo humanismo racionalista
desempenhou um papel importante na superação da sociedade
feudal e do Antigo Regime. Ora, em Inglaterra as liberdades
individuais já se encontravam asseguradas pelo Common Law
no termo da Idade Média.
Eis por que
o Direito medieval inglês não consistiu num sistema de
normas e direitos subjectivos, como os Direitos
continentais, mas antes num sistema de acções.
No final do séc. XIX foi, é
certo, abolida a tipicidade das acções na reforma judiciária
então empreendida em Inglaterra. Mas esse facto não
erradicou uma específica forma de pensar, que prevalecera
durante séculos: as velhas forms of action
transformaram-se então em causas de pedir («causes of action»).
Estas são os factos susceptíveis de fundamentarem uma
pretensão deduzida em juízo («claim»), que o demandante tem
de invocar e provar. Assim, por exemplo, numa acção de
responsabilidade civil, a «cause of action» é um dos delitos
(«torts») previstos pelo Common Law (como, por
exemplo, o tort of trespass e o tort of
negligence). Dado que estes últimos são típicos – pois
não há em Inglaterra uma cláusula geral de responsabilidade
civil –, são também típicas as correspondentes causas de
pedir. Em ordem a demonstrar a existência de uma causa de
pedir, é necessário aduzir os factos que consubstanciam os
elementos de cada um desses torts. Assim, por
exemplo, em matéria de negligence haverá que provar a
existência de um dever, a violação deste, uma «causa
próxima» e um dano. O direito subjectivo não integra, pois,
os elementos do tort. E também não é suficiente, para
que haja responsabilidade, a invocação de que foi violado um
direito e de que daí decorreu um dano para alguém: em
Inglaterra, nem toda a violação de um direito subjectivo
confere ao seu titular um direito de acção.
Em suma, evoluiu-se em
Inglaterra de um sistema de acções típicas para um sistema
de causas de pedir típicas; mas não se passou deste para um
sistema de direitos subjectivos.
Também
nisto se revela a concepção jurisdicionalista do
Direito que subjaz ao sistema jurídico inglês, à qual se
contrapõe a concepção normativa própria dos sistemas
de Civil Law.
8.
Estado de Direito e Rule of Law. – Outro traço
distintivo da família romano-germânica é a circunstância de
o funcionamento dos poderes constituídos se subordinar nela
a regras jurídicas, que visam impedir o arbítrio e a
prepotência: tal a ideia reitora do princípio do
Estado de Direito («Rechtsstaat», «État de
Droit»), que, nascido na Alemanha no século XIX, daí
irradiou para os demais países do continente europeu. Esse
princípio postula, além do mais, a separação de poderes,
que obteve
expressão literária de relevo na obra de Montesquieu.
São ainda corolários dele a soberania popular, a salvaguarda
dos direitos fundamentais da pessoa humana, a independência
dos tribunais, a vinculação da administração pública à lei e
a protecção da confiança individual nas suas diferentes
expressões.
É
igualmente a separação de poderes (ou pelo menos certo
entendimento dela) que explica a importância conferida à lei
como fonte de Direito na família jurídica romano-germânica.
Nascido com a revolução francesa, o culto da lei
marca ainda hoje muito profundamente os sistemas jurídicos
da Europa continental, que sob este ponto de vista se
distinguem claramente dos de Common
Law.
Por certo que também nos
sistemas de Common Law o princípio do Estado de
Direito («rule of law») desempenha um papel nuclear
na legitimação do poder político e do Direito constituído.
Mas o entendimento dominante desse princípio é, nestes
sistemas jurídicos, diverso do que prevaleceu na
família romano-germânica.
O rule of law compreende, com efeito, na formulação
que lhe deu Albert Venn Dicey,
três elementos fundamentais: o Estado («Government»)
está subordinado ao Direito e exerce o seu poder sobre os
cidadãos exclusivamente através dele («primacy of law»);
todos os cidadãos, incluindo os funcionários e agentes
administrativos, estão igualmente submetidos ao Direito e à
jurisdição dos tribunais comuns («equality before
law»); e as regras da Constituição não são a fonte, mas
antes a consequência, das decisões pelas quais os tribunais
definem e tornam efectivos os direitos individuais. A
separação de poderes não integra, pois, os corolários do
rule of law. Daí, por exemplo, que no Reino Unido o
Supremo Tribunal fosse até recentemente parte de uma das
câmaras do Parlamento (a House of Lords). Daí também
que nos Estados Unidos pertençam às agências administrativas
federais vastos poderes jurisdicionais, que revelam a
inexistência neste país de uma reserva de jurisdição:
esta dá aí lugar a um equilíbrio de poderes assente na ideia
de «freios e contrapesos» (checks and balances).
9. Ideais e valores. –
Como valores jurídicos fundamentais, avultam na família
jurídica romano-germânica, desde a revolução francesa, a
liberdade, a igualdade e a solidariedade. Ora, a liberdade e
a igualdade são também grandes ideais no mundo de Common
Law – porventura mais a primeira do que a segunda, como
o revela a História dos Estados Unidos da América no tocante
ao tratamento conferido às minorias étnicas, bem como a
preocupação com a eficiência económica das soluções
jurídicas, que domina a produção científica contemporânea
naquele país.
Já a ideia de solidariedade tem menor expressão nos sistemas
anglo-saxónicos, ao menos na disciplina das relações entre
privados.
10. Convergência entre os
sistemas de Common e de Civil Law. – Estas
diferenças de forma e de espírito dos sistemas de Common
e de Civil Law não têm obstado à ocorrência de
fenómenos de convergência entre eles.
Esses
fenómenos são particularmente nítidos nos sistemas jurídicos
híbridos ou mistos. É o caso do Direito de Goa, Damão e Diu.
As disposições do
Código Civil português de 1867, que, como dissemos, ainda aí
vigoram, coexistem nesses territórios do antigo Estado
Português da Índia com outras, de inspiração anglo-saxónica,
cuja aplicabilidade resulta da extensão aos mesmos do
Direito vigente na República da Índia.
Lentamente, porém, a técnica legislativa anglo-saxónica
tem-se alargado à regulação das matérias em que persiste,
quanto às soluções de fundo, a tradição portuguesa.
A convergência entre os
sistemas jurídicos em exame deu-se também, posto que de
forma mais mitigada, no Brasil, onde se manifestou sobretudo
no Direito Constitucional. A Constituição brasileira de 1891
consagrou o modelo constitucional norte-americano,
reconhecível, designadamente, no modelo federal do Estado,
então adoptado, no acolhimento do sistema de governo
presidencialista e no papel atribuído ao poder judiciário,
que passou a ter no seu vértice um Supremo Tribunal Federal
dotado de poderes de fiscalização da constitucionalidade das
leis.
Este esquema constitucional passou, bem que atenuado, para
as constituições brasileiras posteriores.
Mas a influência norte-americana não se cingiu à conformação
dos poderes constituídos: à época da referida Constituição,
o Common Law e a Equity valiam como Direito
subsidiário nos casos submetidos aos tribunais federais
brasileiros.
Não
obstante o exposto, a distinção entre Common Law e
Civil Law perdura. Assim sucede inclusivamente
nos sistemas jurídicos híbridos, pois verifica-se em muitos
deles uma repartição de «esferas de influência» dos Direitos
que constituem a sua matriz. Assim, por exemplo, a
influência do Common Law inglês em Goa incide
predominantemente sobre a disciplina de matérias de Direito
Público, bem como sobre as questões relativas à organização
judiciária e à actividade comercial; já o Direito de origem
portuguesa abrange aí sobretudo a disciplina das relações
entre privados e, em especial, o estatuto pessoal das
pessoas singulares. Este padrão repete-se no Brasil, onde,
pese embora o acolhimento na Constituição de 1988 de certas
regras e institutos oriundos da lei fundamental portuguesa,
é sobretudo no Direito Civil que se nota a influência da
cultura jurídica lusitana.
III
A
família jurídica romano-germânica e os ramos em que se
divide
11. Uma
ideia de Direito comum. – De quanto dissemos até aqui
resulta já que entre os sistemas jurídicos que integram a
família romano-germânica existem certos traços comuns, que,
no seu conjunto, revelam uma específica ideia de Direito
– hoc sensu, um modo particular de conceber o Direito,
as suas funções e os fins últimos ao serviço dos quais ele
se encontra.
Com efeito,
o Direito (e não a religião ou as directrizes emanadas de um
partido político) é nesses sistemas jurídicos o meio por
excelência de regulação da vida social. Ele é, além disso,
tido como um instrumento de reforma da sociedade, e não
(consoante sucede no Common Law) como a mera
expressão normativa das necessidades sociais, tal como estas
são interpretadas pelos tribunais. Por outro lado, a fonte
primordial do Direito é aí a lei, e não a jurisprudência ou
o costume. Contêm-se nos códigos – i. é, as leis que
sistematizam, à luz de certos princípios, determinados
sectores da ordem jurídica – as expressões mais apuradas das
normas legais. O Estado detém o monopólio da função
jurisdicional, sendo a arbitragem e os outros meios de
resolução extrajudicial de litígios tidos como excepções a
esse monopólio. O método de descoberta da solução dos casos
singulares é fundamentalmente dedutivo, e não indutivo,
partindo-se, para este efeito, da norma para o caso. Os
juristas são uma classe profissional autónoma e obtêm o
essencial da sua formação nas Universidades. O sistema
jurídico encontra-se subordinado, entre outros, aos valores
do personalismo ético, subjacente ao reconhecimento a
todas as pessoas humanas de um círculo de direitos de
personalidade, e da solidariedade, expresso,
designadamente, nas limitações à autonomia da vontade
resultantes da consagração do princípio da boa fé e da
proibição do abuso de direito.
12. Sistemas de matriz francesa e sistemas de matriz
germânica. – Pese embora este tronco comum de
ideias fundamentais, a família jurídica romano-germânica
compreende diversos ramos, que correspondem a outras tantas
concretizações dessas ideias. Entre eles destacam-se os
sistemas jurídicos de matriz francesa (que
compreendem, além do Direito francês, o belga, o espanhol e
os dos países sul-americanos de língua castelhana) e os de
matriz germânica (em que pontificam o Direito alemão,
o suíço e o austríaco).
As
expressões legislativas mais emblemáticas destes dois ramos
da família romano-germânica são seguramente os Códigos Civis
francês e alemão.
O primeiro,
datado de 1804,
encontra-se estreitamente ligado à revolução francesa, cujo
ideário adoptou na regulação das matérias de que se ocupa.
A revolução, como se sabe, proclamou como princípios
fundamentais a igualdade civil, a liberdade individual, a
separação de poderes e a garantia da propriedade privada.
Daqui fluíram o primado da lei entre as fontes de Direito e
a elevação a princípios fundamentais do Direito Civil da
inviolabilidade da propriedade privada, da liberdade
contratual e da igualdade sucessória, que o Código acolheu.
Um dos
traços distintivos do Código é o acolhimento nele dado ao
dogma da vontade, que o art. 1134, 1.º parágrafo,
consagrou, ao dispor:
«Les conventions légalement formées
tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faites.»
Em França, os contratos civis
valem, portanto, como leis entre aqueles que os fizeram. A
modificação e a resolução do contrato em caso de alteração
anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a
decisão de contratar só são permitidas neste país pelo que
respeita aos contratos administrativos.
Contrato é, todavia, nos termos do art. 1101 do Código,
apenas a convenção de que nascem obrigações: «Le contrat»,
diz esse preceito, «est une convention par laquelle une ou
plusieurs personnes s’obligent, envers une ou plusieurs
autres, à donner, ou à faire ou à ne pas faire quelque
chose». Consagra-se assim neste diploma legal um conceito
restrito de contrato, que contrasta, como veremos, com o
da lei alemã.
Outro ex
libris do Código francês é o regime da responsabilidade
civil extracontratual. O princípio geral sobre esta matéria
consta do art. 1382, segundo o qual:
«Tout fait quelconque de l'homme, qui cause à autrui un
dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé, à
le réparer.»
A
isto acrescenta o art. 1383 :
«Chacun est responsable du dommage qu'il a causé non
seulement par son fait, mais encore par sa négligence ou par
son imprudence.»
A
cláusula geral assim acolhida no Código constituiu um
progresso significativo relativamente ao sistema da
tipicidade dos factos indutores de responsabilidade civil
extracontratual (que o Direito inglês ainda consagra), pela
superação que possibilita do casuísmo inerente a este.
Envolve, todavia, o risco de um alargamento excessivo da
responsabilidade, pois que, literalmente entendida,
permitiria ligar a toda a causação negligente de um dano de
qualquer espécie a obrigação de indemnizar. A delimitação
das interferências na esfera jurídica alheia geradoras de
responsabilidade extracontratual – em particular mediante a
concretização do conceito de faute – é, assim,
fundamentalmente cometida aos tribunais. Esta a razão por
que o Direito delitual francês é hoje essencialmente de
fonte jurisprudencial, apenas podendo ser compreendido o
alcance dos referidos preceitos à luz das decisões dos
tribunais superiores que se ocuparam deles. O sistema
francês é, neste particular, potencialmente gerador de
alguma insegurança.
De França,
o Código irradiou para outros países, sobretudo aqueles em
que se fez sentir mais duradouramente a influência política
e cultural francesa. Estão neste caso os Países Baixos, a
Itália e a Espanha, que se dotaram, respectivamente, em
1838, 1865 e 1889, de códigos civis de matriz francesa.
A
codificação francesa colocou a Alemanha perante a questão da
oportunidade de uma codificação do seu próprio Direito
Civil. A orientação favorável à codificação viria a
triunfar, mas só muito mais tarde. Ao que não foi alheia a
circunstância de apenas em 1871 se ter consumado a
unificação da Alemanha, sob a égide de Bismarck.
Os
trabalhos preparatórios do Código Civil alemão (Bürgerliches
Gesetzbuch ou BGB) iniciaram-se em 1873, tendo sido
elaborados três projectos. O último deles, publicado em
1896, entrou em vigor em 1900.
A sistematização e o aparato
conceptual do Código são essencialmente os da Ciência das
Pandectas, tal como esta havia sido exposta, entre
outros, por Windscheid, que integrara a comissão redactora
do primeiro projecto e exercera sobre ela grande influência.
O Código Civil alemão reflecte, nesta medida, como já foi
muitas vezes notado, um «Professorenrecht».
O Código
compreende uma Parte Geral, na qual se contêm regras comuns
a todas as categorias de relações jurídicas. Seguem-se-lhe
quatro livros, dedicados, respectivamente, ao Direito das
Obrigações, ao Direito das Coisas, ao Direito da Família e
ao Direito das Sucessões.
Esta sistematização, e em
particular a autonomização de uma Parte Geral, funda-se num
princípio de economia, de acordo com o qual o sistema
jurídico deve ser integrado pelo menor número possível de
normas.
Em lugar de estabelecer normas próprias para cada categoria
de situações típicas da vida (como fizera o Allgemeine
Landesrecht prussiano de 1794), o BGB propôs-se estender
as mesmas normas ao maior número possível de situações. O
que impôs que se generalizasse ao máximo cada uma delas. Vem
daqui a tendência do Código germânico para a abstracção, que
o distingue do seu homólogo francês.
Manifestações por excelência
dessa tendência são os conceitos de negócio jurídico («Rechtsgeschäft»)
e de declaração de vontade («Willenserklärung»), em
que assenta boa parte do regime normativo dos contratos no
BGB.
Reflecte-a igualmente a concepção ampla de contrato
acolhida no Código, conforme a qual este é um acordo de
vontades tendente à produção de efeitos jurídicos, qualquer
que seja a sua natureza – i. é, um negócio jurídico
bilateral.
Tendo evidentes vantagens sob o
ponto de vista da economia dos preceitos legais, esta
técnica legislativa torna contudo muito complexa a resolução
dos casos singulares e requer uma preparação técnica
especial naqueles que hajam de aplicar os preceitos legais.
Ao contrário da codificação francesa, o BGB não se quis,
manifestamente, acessível aos leigos.
Outra consequência da técnica
legislativa adoptada na redacção do Código alemão e do alto
grau de abstracção dos preceitos que o integram é o relevo
conferido à subsunção do caso concreto sob os conceitos
gerais e abstractos que delimitam o âmbito das regras
potencialmente aplicáveis, das quais se deduz depois a
solução daquele. Uma vez que ao juiz é em princípio vedada a
criação de Direito, a sua tarefa centrar-se-á muitas vezes
nessa operação, sem olhar às finalidades sociais visadas
pelas normas em causa. Ficam assim um tanto na sombra os
valores e interesses em jogo, bem como as circunstâncias do
caso concreto. Não falta, por isso, quem veja na Parte Geral
do Código alemão o triunfo do formalismo jurídico.
Mas o Código consagrou um
considerável número de cláusulas gerais, que permitiram à
jurisprudência alemã, ao longo do século XX, adaptar o
Direito Civil às novas necessidades sociais e aos sistemas
de valores imperantes na comunidade. Entre elas avulta a boa
fé (Treu und Glauben), consignada no § 242.
Foi a partir desta que os tribunais germânicos edificaram,
por exemplo, o regime da culpa in contrahendo,
assente na ideia – sem paralelo no Direito francês – de que
se constitui na fase pré-contratual uma relação obrigacional
integrada exclusivamente por deveres de protecção, cuidado e
lealdade, cuja violação importa a responsabilidade civil do
infractor.
E foi também com referência a essa cláusula geral que a
doutrina e a jurisprudência alemãs desenvolveram a figura da
«base do negócio» (Geschäftsgrundlage), que se tem
por prejudicada quando ocorra, em consequência de uma
alteração imprevista de circunstâncias, uma perturbação da
equivalência das prestações contratuais.
Esta confere à parte lesada, em determinadas condições, um
direito à adaptação do contrato, algo que, como dissemos,
não é admitido em França em matéria civil.
Igualmente
distinta da do Código francês é a orientação adoptada pelo
BGB em matéria de responsabilidade civil extracontratual.
O primeiro
projecto do Código Civil alemão continha ainda uma cláusula
geral de responsabilidade civil, de estilo francês.
Fundava-se ela na preocupação em assegurar uma protecção
suficiente contra actos ilícitos, que um dever de
indemnização restrito a delitos enunciados de modo não
exaustivo seria insusceptível de levar a efeito. Essa
solução foi, porém, afastada no segundo projecto, por não
corresponder à concepção dominante na Alemanha acerca da
função judicial e também a fim de evitar os excessos
cometidos em certas decisões dos tribunais franceses. O
texto aprovado pela comissão revisora do Código visou, por
isso, fornecer ao juiz um critério objectivo de apreciação
dos pressupostos do dever de indemnizar, precisando as
modalidades de ilicitude determinantes de responsabilidade e
enunciando os direitos através dela protegidos.
Foi esta orientação fundamental
que veio a triunfar no BGB. Este estabelece em matéria
delitual três «pequenas cláusulas gerais»:
o § 823 (1), que responsabiliza aquele que, com dolo ou
negligência, lesar ilicitamente a vida, o corpo, a saúde, a
liberdade, a propriedade ou outro direito alheio; o § 823
(2), que responsabiliza aquele que viole uma disposição
legal destinada à protecção de outrem; e o § 826, que
responsabiliza quem, dolosamente, provoque danos a alguém
atentando contra os bons costumes.
O Direito delitual germânico é
assim marcado por uma atitude de prudência em matéria de
ressarcimento de danos: estes ou atingem bens jurídicos
essenciais da pessoa – a vida, a integridade física, a
propriedade – e geram responsabilidade extracontratual; ou
resultam da violação de obrigações preexistentes, originando
então responsabilidade contratual. O dano patrimonial puro,
que não resulte da violação de obrigações, não é em
princípio ressarcível.
Com isto pretende-se limitar o número de potenciais credores
de indemnização e garantir a liberdade de acção de cada um.
IV
Os
sistemas jurídicos lusófonos e o seu lugar entre as famílias
jurídicas
13.
Traços de união entre os sistemas jurídicos lusófonos. –
Caracterizadas que estão as principais famílias jurídicas
contemporâneas, importa agora determinar, por referência a
elas, onde se situam os sistemas jurídicos lusófonos.
Estes
apresentam, inequivocamente, certos traços de união, que
permitem configurá-los como um grupo dotado de certa
autonomia e coesão.
Esses
traços decorrem, desde logo, do facto de o mesmo Direito ter
vigorado (e em parte ainda vigorar) neles, bem como de as
suas fontes legais se exprimirem numa língua comum e de os
juristas formados nesses sistemas partilharem, em larga
medida, os mesmos quadros mentais.
No Direito Privado, não será
demais sublinhar a este respeito a circunstância, já
mencionada, de o Código Civil português ser aplicável nos
países africanos de língua oficial portuguesa, excepto em
matéria de Direito da Família: a Constituição Civil
destes países (como já se lhe chamou) é, pois, ainda hoje
fundamentalmente a mesma. Além disso, o Código português
serviu de base ao Código Civil de Macau e ao projecto de
codificação civil timorense. No Brasil, o Código Civil de
2002 recebeu também do Código português importantes
elementos de inspiração: é ver, por exemplo, o relevo dado
na Parte Geral à tutela dos direitos de personalidade,
ao negócio jurídico
e à representação,
figuras que o Código de 1916 não disciplinava autonomamente;
atente-se ainda no acolhimento nele reservado à boa fé como
cânone hermenêutico dos negócios jurídicos e como regra de
conduta que se impõe aos contraentes,
na proscrição do abuso de direito
e na inserção do enriquecimento sem causa entre as fontes
das obrigações.
Mas importa referir que também o Direito português se tem
mostrado permeável à influência brasileira. Esta pode ser
detectada, por exemplo, no Anteprojecto de Código do
Consumidor,
que é tributário de várias soluções consignadas no Código
brasileiro de Defesa do Consumidor – a vários títulos
pioneiro –, desde a própria opção pela codificação (que não
é pacífica em Portugal e noutros países europeus)
até à consagração, no plano organizatório, de um «sistema
nacional de defesa do consumidor».
No Direito Público, tem sido
salientada a afinidade entre a Constituição portuguesa e as
dos países africanos de língua portuguesa e de Timor-Leste,
patente, designadamente, na consagração do princípio
republicano, com a eleição directa do Chefe de Estado, do
princípio do Estado unitário, com a rejeição do federalismo,
e do princípio do Estado social, com a atribuição de um
relevante papel ao Estado na organização social e económica.
Igualmente significativo é o acolhimento dado em vários
daqueles países ao sistema de Governo semi-presidencialista,
posto que o mesmo assuma neles diferentes cambiantes.
Não menos relevantes são as semelhanças entre os regimes
constitucionais desses países em matéria de actos
legislativos, particularmente em virtude da centralidade
conferida ao Governo neste particular.
Por seu turno, a Constituição brasileira, pese embora o
arrimo já referido ao modelo norte-americano, consagra
também certas regras e institutos oriundos da lei
fundamental portuguesa. Sobressaem, a este propósito, a
disposição que define a República Federativa do Brasil como
Estado Democrático de Direito e as que acolhem certos
direitos fundamentais, como os direitos à segurança social e
à protecção da saúde, a fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão e os limites materiais à
revisão constitucional.
14.
Factores de diferenciação desses sistemas. – Não
obstante o exposto, fazem-se sentir hoje, tanto em Portugal
como nos demais países e territórios lusófonos, poderosas
forças centrífugas, que operam no sentido de uma
diferenciação dos respectivos sistemas jurídicos.
Entre elas avultam, em
Portugal, a integração na União Europeia (pese embora o
interesse que os actos de Direito Comunitário têm suscitado
nos demais países de língua oficial portuguesa e a
repercussão que têm tido nos Direitos locais); no Brasil, a
integração no Mercosul e a proximidade geográfica, económica
e jurídica relativamente aos Estados Unidos (particularmente
sentida, como notámos, no Direito Público); nos países
africanos de língua oficial portuguesa, a integração na
Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO),
de que são membros Cabo Verde e a Guiné-Bissau, na
Organização Para a Unificação do Direito dos Negócios em
África (OHADA), cujos actos uniformes são hoje directamente
aplicáveis em dezasseis países deste continente, incluindo a
Guiné-Bissau,
na União Económica e Monetária Oeste-Africana (UEMOA), de
que é também parte a Guiné-Bissau, e na Comunidade de
Desenvolvimento do África Austral (SADC), a que pertencem
Angola e Moçambique; em Goa, a integração na República da
Índia, posto que como Estado dotado de autonomia
legislativa; em Macau, a integração como Região
Administrativa Especial na República Popular da China; e em
Timor-Leste, a projectada adesão deste país à Associação de
Nações do Sudeste Asiático
(ASEAN), na
qual já possui o estatuto de observador.
Por outro lado, nos países
africanos de língua oficial portuguesa e em Timor-Leste o
Direito consuetudinário assume – por força até de
disposições constitucionais
– uma importância sem paralelo em Portugal, sendo muitas
vezes observado (sobretudo nos meios rurais) em detrimento
do Direito de fonte oficial.
A efectividade do Direito formal é, por isso, muito menor
nesses sistemas jurídicos.
Não menos
relevante é o surgimento nestes países de codificações
autóctones, que procuram atender a necessidades particulares
da vida jurídica local. Algumas dessas codificações (como o
Código da Família de Angola e a Lei da Família
de Moçambique) são, aliás, manifestações da resistência que
as matérias integradas no estatuto pessoal das pessoas
singulares sempre opuseram à recepção de Direitos
estrangeiros.
A tudo isto
acresce a circunstância de estes países se encontrarem em
estádios muito diferentes de desenvolvimento económico e de
institucionalização da democracia e do Estado de Direito; e
de certas concepções políticas europeias – como as que se
prendem com o papel reservado ao Chefe de Estado – se
mostrarem inadequadas à cultura e à tradição africanas.
15. Caracterização dos sistemas jurídicos lusófonos. –
A esta luz, que conclusão pode formular-se acerca do
lugar dos sistemas jurídicos lusófonos entre as famílias
jurídicas?
Quanto ao
Direito português, é a nosso ver inequívoco que ele se
integra na família romano-germânica. Desde logo, pela sua
matriz histórica: o Direito Romano vigorou em Portugal como
Direito subsidiário até ao séc. XIX (posto que a partir da
Lei da Boa Razão, de 1769, apenas na medida em que se
mostrasse conforme com a recta ratio); e influenciou
decisivamente o Direito Privado português. Depois, pelo seu
sistema de fontes, em que avulta a lei. Finalmente, pelo
método segundo o qual nele são predominantemente resolvidos
os casos concretos, isto é, a partir de regras gerais e
abstractas, e não de precedentes.
Pode, no entanto, perguntar-se
a qual dos ramos em que se divide essa família pertence o
Direito português. Para alguns autores, seria ao que
designam por domínio, família, grupo ou círculo
romanístico (romanischer Gebiet, famille de droits
romanistes, romanische Gruppe, romanischer
Rechtskreis).
Há muito, porém, que a Ciência
Jurídica portuguesa assimilou os quadros mentais do
pandectismo germânico.
E desde a entrada em vigor do Código Civil de 1966 o Direito
Privado português está muito mais próximo do alemão do que
do francês.
Neste sentido depõem, nomeadamente: a adopção nesse Código
da sistematização germânica do Direito Civil; a
inclusão na Parte Geral dele de uma regulamentação minuciosa
do negócio jurídico e da declaração negocial,
claramente tributária da dogmática germânica e da concepção
abstracta do Direito que a inspira;
o regime da formação dos contratos, nomeadamente no que
respeita à perfeição da declaração negocial
e à revogabilidade da proposta,
o qual provém do Direito alemão;
o regime da culpa in contrahendo,
que, embora recebido do Código Civil italiano, se filia na
doutrina alemã da relação obrigacional sem deveres primários
de prestação constituída com a entrada em negociações;
o regime da interpretação e da integração dos negócios
jurídicos, assente no binómio declarante-declaratário;
as múltiplas referências feitas no Código à boa fé,
tributárias do labor da doutrina e da jurisprudência alemãs
ao longo do séc. XX e da concepção social do Direito que as
inspirou;
a distinção entre a representação e o mandato,
que o Direito francês desconhece; o regime da modificação ou
resolução do contrato por alteração de circunstâncias,
igualmente sem paralelo no Código francês; a regulação entre
as fontes das obrigações da gestão de negócios e do
enriquecimento sem causa,
a respeito do qual o
Código Civil francês não contém qualquer disposição genérica;
e a regra
geral sobre a responsabilidade civil extracontratual,
que procura delimitar as factispécies geradoras do dever de
indemnizar, definindo como tais apenas as violações de
direitos absolutos e de disposições legais de protecção de
interesses alheios, o que importa a rejeição de uma cláusula
geral de estilo francês.
O Código Civil português
apresenta, é certo, alguns traços de originalidade
relativamente ao alemão, entre os quais sobressaem a
inclusão do Direito Internacional Privado na Parte Geral,
bem como a regulação nela dos direitos de personalidade e
das provas. Mas isso não prejudica a sua filiação na técnica
e na cultura jurídica germânicas – aliás, bem evidente nas
regras gerais de Direito Internacional Privado, com destaque
para a que respeita à qualificação,
a qual exprime toda uma concepção acerca da coordenação
entre sistemas jurídicos nacionais, que tem na sua génese o
pensamento de Wilhelm Wengler e Leo Raape.
De resto, essa filiação não
resulta apenas do Código Civil, antes se revela também em
outros diplomas legais posteriores a ele, que adoptaram a
técnica legislativa e conceitos jurídicos de matriz
germânica: é o caso, por exemplo, do Regime Jurídico das
Cláusulas Contratuais Gerais
e do Código das Sociedades Comerciais.
No Direito Público, é muito
mais mitigada a influência alemã. A Constituição portuguesa,
por exemplo, recebeu essencialmente o modelo francês.
Não obstante isso, ela aproxima-se em alguns aspectos do
sistema germânico. É o que sucede, v.g., no regime da
eficácia em relação a terceiros («Drittwirkung»)
dos direitos liberdades e garantias
e da fiscalização da constitucionalidade.
Se atentarmos agora nas
tendências dominantes do pensamento jurídico, é também
inegável a influência alemã, v.g., no acolhimento
dado em Portugal à jurisprudência dos valores e ao
pensamento sistemático.
O Direito
Privado português insere-se hoje, por isso, no ramo alemão
da família romano-germânica.
Não falta, é certo, quem veja
no Direito português um sistema jurídico híbrido,
situado entre o alemão e o francês. Tal a conclusão
fundamental de uma recente monografia de Jens Müller.
Esta baseia-se, contudo, exclusivamente na análise do regime
de duas matérias: por um lado, os negócios celebrados por
menores, que o autor considera mais próximo do modelo
francês, na medida em que a incapacidade dos menores é feita
valer em Portugal numa acção judicial tendente à anulação
dos negócios por si celebrados, o que confere a estes uma
eficácia mais forte do que a que possuem na Alemanha, e
também porque não existe na Alemanha a figura da
emancipação; e, por outro lado, a formação do contrato, em
que o autor considera dominante a influência do BGB,
mormente no tocante à eficácia da declaração negocial e à
revogabilidade da proposta.
Supomos que
não é possível extrair do regime destas matérias uma
conclusão genérica sobre a inserção do Direito português
entre as famílias jurídicas. Acresce que as soluções
consignadas na lei portuguesa para os negócios celebrados
por menores se explicam, a nosso ver, pelo facto de, em
regra, nos países latinos os jovens atingirem a maturidade
física mais cedo do que nos países nórdicos e também porque
nos meios rurais a economia depende muito mais
acentuadamente do seu trabalho do que no Norte da Europa.
Não terá sido, nesta medida, a adesão ao modelo francês que
motivou a regulação portuguesa dessa matéria.
Não negamos, evidentemente, que
existam na família romano-germânica sistemas híbridos, como
o italiano, que combinam os modelos francês e alemão com
elementos originais.
Mas é notório que nesses sistemas a influência germânica é
muito mais ténue do que no Direito português.
De todo o
modo, também os Direitos francês e alemão podem, em certo
sentido, considerar-se híbridos, dada a importância que os
costumes germânicos tiveram na formação do moderno Direito
francês e atenta a relevância que a recepção do Direito
Romano assumiu na conformação do sistema jurídico alemão. O
que nos revela que, em rigor, não há sistemas jurídicos
«puros»: todos são em alguma medida tributários de
influências externas.
E quanto
aos demais sistemas lusófonos?
As
manifestações da cultura jurídica portuguesa no Brasil, nos
países africanos de língua oficial portuguesa e em
Timor-Leste, de que demos conta acima, revelam, a nosso ver,
a adesão dos respectivos sistemas jurídicos não apenas à
técnica jurídica, mas também a muitos dos valores que
inspiram o Direito português.
Em virtude da comunhão assim
forjada entre estes sistemas jurídicos,
e também graças à cooperação nos domínios da produção
legislativa, do ensino universitário do Direito e da
formação dos magistrados, é hoje manifesta a facilidade de
comunicação entre os juristas oriundos dos países e
territórios mencionados; em muitos casos, verifica-se até
que um jurista formado num daqueles sistemas jurídicos se
encontra apto, sem grande esforço, a exercer a sua profissão
nos demais.
Mas bastará
isso para admitirmos a autonomização de uma família
jurídica lusófona?
À luz do critério atrás
enunciado, a resposta a este quesito deve, quanto a nós, ser
negativa. Os Direitos vigentes nos países lusófonos, ainda
que possuam características particulares comuns a todos
eles, não reflectem um conceito próprio do Direito –
o que constitui, de acordo com aquele critério, um requisito
imprescindível a fim de se poder autonomizar uma família
jurídica.
Nesta medida, os sistemas
lusófonos não podem ser colocados no mesmo plano que a
família jurídica romano-germânica, antes se integram nela.
Mas isso não quer dizer –
cumpre sublinhá-lo – que não se possa falar, a respeito dos
países e territórios de língua portuguesa, de uma
comunidade jurídica, entendida como uma realidade
simultaneamente mais restrita e mais profunda do que uma
família jurídica. Mais restrita, porque se trata aqui de uma
comunhão de institutos, valores e soluções para determinados
problemas, que não corresponde a um particular conceito de
Direito, distinto do que informa os demais sistemas
jurídicos. Mais profunda, porque ela reflecte laços
históricos, culturais, sociais e afectivos mais intensos do
que aqueles que muitas vezes existem entre os membros das
famílias jurídicas.
Sobre o tema, vide Andreas Schwartz, «La
réception et l’assimilation des droits étrangers»,
in AAVV, Introduction à l’étude du droit
comparé. Recueil d’Études en l’honneur d’Édouard
Lambert, vol. I, Paris, 1938, pp. 581 ss.; Imre
Zajtay, «La réception des droits étrangers et le
droit comparé», Revue Internationale de Droit
Comparé, 1957, pp. 686 ss.; Franz Wieacker,
História do Direito Privado Moderno, trad.
port., Lisboa, 1980, pp. 129 ss.; Manfred Rehbinder,
«Die Rezeption fremden Rechts in Soziologischer
Sicht», Rechtstheorie, 1983, pp. 305 ss.;
António Menezes Cordeiro, Da boa fé no
Direito Civil, vol.
I, Coimbra, 1985,
pp. 25 ss.; idem, Tratado de Direito
Civil português, tomo I, 3.ª ed., Coimbra, 2005,
p. 61; Eric Agostini, Droit comparé, Paris,
1988, pp. 245 ss.; Alan Watson, Legal Transplants.
An
Approach to Comparative Law,
2.ª ed., Atenas/Londres, 1993; idem, Comparative
Law: Law, Reality and Society, s.l., 2007, pp. 5
ss ; e Michele Graziadei, «Comparative Law as the
Study of Transplants and Receptions», in
Mathias Reimann/Reinhard Zimmermann (orgs.), The
Oxford Handbook of Comparative Law, Oxford,
2006, pp. 441 ss.
Vide
o art. 8
desse diploma legal, segundo o qual: «As leis, os
decretos-leis, os regulamentos administrativos e
demais actos normativos previamente vigentes em
Macau mantêm-se, salvo no que contrariar esta Lei ou
no que for sujeito a emendas em conformidade com os
procedimentos legais, pelo órgão legislativo ou por
outros órgãos competentes da Região Administrativa
Especial de Macau».
Nesta linha
fundamental de orientação, vide, por exemplo,
René David, «The International Unification of
Private Law», in International Encyclopedia of
Comparative Law, vol.
II,
cap. 5.
Também esta
figura, cuja elaboração se deve originariamente a
Paul Oertmann (cfr. Die Geschäftsgrundlage. Ein
neuer Rechtsbegriff, Leipzig/Erlangen, 1921),
foi acolhida no Código alemão pela referida lei de
2001 (cfr. o § 313).
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