Lisboa,
27-5-10
António
Santos Abrantes Geraldes
3.1.
A modificação do regime de impugnação da decisão da matéria
de facto ocorreu com a revisão processual de 1997,
revelando-se essencialmente através da ampliação das
atribuições dos Tribunais da Relação no que concerne à
reapreciação dos meios de prova oralmente produzidos cuja
gravação tenha sido assegurada. A reforma de 2007
praticamente se limitou a reafirmar tal regime, nos termos
que agora constam do art. 685º-B, no que concerne aos ónus
das partes, e do art. 712º, a respeito dos deveres da
Relação.
Sem embargo
do que se dirá sobre o modo como tem sido cumprido o ónus de
instrução de tais recursos e tem sido acatado o dever de
reapreciação da matéria de facto, estranha-se, antes de
mais, que no Relatório de Avaliação que precedeu a reforma
do regime dos recursos cíveis elaborado pelo Ministério da
Justiça 10 anos depois da entrada em vigor do Dec. Lei nº
329-A/95, de 12-12, não se encontre uma única linha sobre o
assunto.
Também
desconheço qualquer estudo que, com rigor e objectividade,
tenha incidido sobre os resultados e tenha ponderado os
custos e benefícios emergentes daquela modificação, tanto na
perspectiva de quem recorre e tem o ónus de instruir as
alegações, como na de quem julga e tem o dever de cumprir o
que o legislador determinou.
Como vem
acontecendo com outras medidas legislativas, também a
gravação das audiências, com que se visou atenuar o
princípio da oralidade pura e ampliar as garantias das
partes no que concerne ao julgamento da matéria de facto,
foi lançada de forma deficiente, quer em termos de
formulação normativa, quer da disponibilização dos meios
humanos e materiais.
Quanto à formulação normativa,
foi agora desperdiçada uma oportunidade para clarificar
algumas dúvidas que os textos legais suscitam e,
designadamente, esclarecer o âmbito dos poderes do Tribunal
da Relação, consignando, de modo inequívoco, que os recursos
da matéria de facto implicam a reapreciação dos meios de
prova concretizados pelo recorrente, reassumindo a Relação,
quanto aos pontos especificamente impugnados, poderes
decisórios semelhantes aos exercidos pelo tribunal
recorrido. Nessa medida, se afastariam de vez argumentos que
continuam a usar-se em alguns acórdãos em redor de uma
intervenção minimalista da Relação traduzida no mero
controlo formal da convicção e da motivação expressa pelo
tribunal recorrido, apostando essencialmente em
considerações de pendor abstracto em redor dos princípios da
imediação ou da livre apreciação das provas.
3.2.
Não tenho quaisquer dúvidas de que para corresponder ao
regime actual de impugnação da decisão da matéria de facto
não basta que o Tribunal da Relação teça considerações de
ordem abstracta, implicando que proceda à efectiva
reapreciação dos pontos de facto expressamente impugnados a
partir da reapreciação dos meios de prova indicados ou de
outros que se mostrem acessíveis.
É esta,
aliás, a solução que o Supremo Tribunal de Justiça vem
afirmando de forma consistente em múltiplos os acórdãos
divulgados (www.dgsi.pt) e em que tal doutrina é
exposta para justificar a anulação de acórdãos da Relação.
Efectivamente, para responder e corresponder aos objectivos
do recurso da matéria de facto nos moldes instituídos em
1997 não basta ao Tribunal da Relação quedar-se pela
exposição de juízos em redor da motivação da decisão
apresentada pelo tribunal de 1ª instância, com exponenciação
da diversidade de circunstâncias que rodeiam a apreciação do
recurso, em comparação com as que estavam presentes aquando
da realização da audiência de julgamento em 1ª instância.
Afinal, o
legislador, conhecedor dessa diversidade circunstancial,
previu a possibilidade de serem corrigidos erros de
julgamento a partir da reponderação dos meios de prova
oralmente produzidos, em conjugação com os demais elementos
constantes dos autos.
Por isso,
importa acentuar que desde que não existam motivos para
rejeitar o recurso de impugnação da decisão da matéria de
facto, nos termos do art. 685º-B, e desde que o recorrente
cumpra os seus ónus processuais com especificação cabal dos
pontos de facto controvertidos e concretização dos motivos
por que, em seu entender, deve ser modificada a decisão do
tribunal de 1ª instância, o Tribunal da Relação, procedendo
à apreciação crítica dos meios de prova, deve assumir-se
como tribunal de instância, procedendo a uma efectiva
sindicância do julgamento da matéria de facto relativamente
aos pontos impugnados.
Ainda que
em termos sintéticos, para responder aos objectivos
projectados pelo legislador deve o Tribunal da Relação:
a)
Reapreciar os meios de prova especificados pelo recorrente,
através da audição das gravações e/ou da leitura das
transcrições porventura apresentadas, conjugando-os com
outros meios de prova indicados pelo recorrido ou que
constem dos autos, incluindo toda a gravação da audiência de
julgamento;
b)
Formar a sua convicção com autonomia em relação à matéria de
facto impugnada, introduzindo na decisão as modificações que
forem julgadas pertinentes;
c)
Sem embargo da ponderação da diversidade das circunstâncias
em que é feita a reapreciação da decisão da matéria de
facto, em comparação com as que rodearam a audiência de
discussão e julgamento (com destaque para a ausência de
imediação), a Relação goza dos mesmos poderes atribuídos ao
tribunal a quo, sem exclusão dos que decorrem
do princípio da livre apreciação genericamente consagrado no
art. 655º;
d)
Apesar dos naturais condicionalismos que rodeiam a tarefa de
reapreciação de meios de prova oralmente produzidos, desde
que a Relação forme uma diversa convicção sobre os pontos de
facto impugnados deve reflectir esse resultado em nova
decisão.
3.3.
Algumas vozes vêm reclamando o reforço dos mecanismos que
permitam uma efectiva reapreciação da matéria de facto. Para
o efeito, invoca-se a insuficiência da gravação áudio das
audiências, e reclama-se a gravação também em imagem.
Trata-se de
uma maneira muito própria dos juristas de enfrentar os
problemas.
Com efeito,
sem que tenham sido esgotadas as potencialidades do sistema
instituído, sem que se mostre um generalizado cumprimento
quer do ónus de alegação das partes, quer do dever de
reapreciação das Relações e sem que seja conhecida qualquer
avaliação dos custos e dos benefícios do sistema vigente
reclamam-se medidas mais avançadas e também mais onerosas,
com manutenção dos problemas situados a montante.
Contra essa
tendência, não me parece que deva avançar-se para a gravação
vídeo das audiências antes se fazer o balanço do sistema em
vigor e de se esgotarem as potencialidades que o mesmo já
contém.
Ora, a
aplicação do regime de recursos assente em gravação áudio
das audiências debate-se com diversos problemas carecidos de
resolução sem o que não é legítimo, nem razoável reclamar
soluções mais avançadas:
a)
A introdução de equipamentos de gravação digital que
proporcionam melhor qualidade da gravação e tornam mais
acessível a localização dos depoimentos, ainda não foi
generalizada a todos os tribunais.
b)
Persiste a deficiente monitorização das gravações das
audiências, sem observância de um controlo da sua qualidade
e sem uniformidade de metodologias quanto à fixação na acta
ou nos suportes de gravação dos elementos relevantes, o que
vem gerando dificuldades quanto ao exercício do direito de
impugnação e quanto à apreciação dos recursos da matéria de
facto, determinando escusadas anulações de julgamentos.
Ora, se tal
vem sucedendo com o uso de equipamentos de fácil
manuseamento, maiores complicações advirão com a introdução
de equipamentos de gravação de som e de imagem, como o
demonstra a aplicação do regime de prestação de depoimentos
por teleconferência, nos termos do art. 623º.
c)
São frequentíssimas as situações em que da parte dos
recorrentes se revela o deficiente cumprimento dos ónus em
redor do recurso da matéria de facto, designadamente no que
concerne à apreciação crítica dos meios de prova com
referência aos depoimentos gravados e demais elementos que
constam dos autos, apostando frequentemente em considerações
de ordem genérica reveladoras de mera discordância em
relação ao decidido. Também são comuns os recursos da
matéria de facto que se traduzem em meras pretensões de
natureza genérica, sem suficiente concretização dos pontos
de facto que se pretendem impugnar.
d)
Apesar da persistente jurisprudência do Supremo no sentido
de impender sobre os Tribunais da Relação um efectivo dever
de reapreciação dos meios de prova invocados para sustentar
a impugnação, ainda persiste uma tendência, posto que
minoritária, que encara os recursos da matéria de facto sob
uma perspectiva eminentemente formal, sem efectivo confronto
entre as alegações e os meios de prova que foram produzidos
e que se encontram gravados.
Ainda que
em termos empíricos, estas serão algumas das circunstâncias
que explicarão o reduzido número de recursos de impugnação
da matéria de facto que obtém sucesso.
4.
Monismo recursório
5.1.
Uma das coordenadas do novo regime de recursos que foi
objecto de mais discussão consta do art. 721º, nº 3, norma
que veda o recurso de revista quando a Relação confirme, sem
voto de vencido e ainda que com fundamento diverso, a
decisão da 1ª instância: a chamada “dupla conforme”.
O juízo de
confirmação deve incidir sobre a decisão, isto é, sobre o
resultado declarado na sentença de 1ª instância, em
comparação com o que decorre do acórdão da Relação, sendo
indiferente a via trilhada para confirmar o que fora
declarado na sentença recorrida.
Em tais
circunstâncias, só a existência de voto de vencido justifica
a desobstrução no acesso geral ao 3º grau de jurisdição
através do recurso de revista “normal”.
O regime
estabelecido acabou por resultar de um compromisso entre as
duas tendências: mantendo, como regra geral, a
inadmissibilidade de recurso em situações de “dupla
conforme”, admite-se o recurso de revista em três
situações enunciadas no art. 721º-A, nº 1.
Creio que
se trata de um regime equilibrado.
Com efeito,
para a generalidade dos casos, não há razões para, apesar da
confirmação total pela Relação da decisão do tribunal de 1ª
instância, sem voto de vencido, se admita
indiscriminadamente o acesso ao 3º grau de jurisdição.
A solução
visa compatilizar os diversos interesses, contrapondo a um
generalizado direito de interposição de recurso a
necessidade de uma racional e equilibrada gestão dos meios
humanos e materiais.
Com efeito,
se, em abstracto, a multiplicidade de graus de jurisdição
constitui elemento potenciador de segurança jurídica, os
meios disponíveis para a tarefa de administração da justiça
são naturalmente limitados, e a necessidade de alcançar uma
decisão definitiva em tempo razoável não é compatível com o
esgotamento da multiplicidade de recursos.
5.2.
A tal regra se interpõem algumas excepções:
a)
O 3º grau de jurisdição mantém-se intacto nos casos do art.
678º, nº 2, norma que admite “sempre” recurso nas
seguintes situações: violação das regras da competência,
ofensa de caso julgado e desrespeito por acórdão de
uniformização de jurisprudência.
b)
Outra excepção está relacionada com o relevo jurídico
da questão, sendo aberto o 3º grau de jurisdição quando o
próprio STJ considere que o mesmo deve ser garantido para
preservar interesses de ordem geral ligadas à boa aplicação
do direito, designadamente em face do carácter paradigmático
da situação que extravase os limites do caso concreto.
Como é
natural, tal hipótese estará afastada sempre que a decisão
da Relação se inscreva numa corrente jurisprudencial
consolidada, não podendo reclamar-se a intervenção do
Supremo com base no mero inconformismo relativamente ao
resultado declarado.
A
intervenção do Supremo apenas se justificará em face de uma
questão cujo relevo jurídico seja indiscutível, o que tanto
pode ocorrer quando se esteja em face de legislação nova
passível de sérias divergências (efeito preventivo)
como de questão que tenha sido resolvida ao arrepio do
entendimento uniforme da jurisprudência ou da doutrina (efeito
reparador), garantindo o princípio da igualdade da
aplicação da lei. A intervenção do Supremo pode ainda
justificar-se para assegurar uma solução tendencialmente
uniforme em situações de lacuna legis, nos termos do
art. 10º do CC.
c)
Não será fácil a delimitação dos casos derivados do direito
civil e comercial que mereçam o 3º grau de jurisdição em
face do relevo social da questão, requisito que faz
apelo a questões que interfiram com interesses importantes
da comunidade ou ligadas aos direitos dos consumidores,
ambiente, ecologia, qualidade de vida, saúde ou património
histórico e cultural.
Naturalmente que não será o maior ou menor “ruído” feito
pelos órgãos de comunicação social em redor de determinados
casos que justificará o acesso excepcional ao Supremo.
d)
Maior objectividade se encontra na última excepção que
abarca os casos em que a Relação tenha divergido de acórdão
de outra Relação ou do STJ sobre a mesma questão essencial
de direito.
Está
implícito em tal excepção o objectivo de preservar a
uniformidade na aplicação e interpretação da lei. Mas
constituirá também uma forma indirecta de motivar o STJ a
proferir acórdãos de uniformização de jurisprudência, pois
que quanto maior for o número de questões jurídicas
pacificadas menores serão as possibilidades de, por esta via
excepcional, se alcançar o 3º grau de jurisdição.
No actual
contexto jurisprudencial torna-se fácil aceder ao Supremo
com este fundamento, tendo em conta a multiplicidade de
questões que continuam marcadas pela divergência
jurisprudencial e o facto de poderem ser invocados como
fundamento da revista excepcional não apenas acórdãos do
Supremo como ainda acórdãos de qualquer das Relações, em
qualquer caso, sem limitação de datas. Importante é que
incidam sobre a mesma questão fundamental de direito e se
mantenha na substância o mesmo regime jurídico.
Porém, a
eficácia de um tal poder é imediatamente cerceada pela
concreta previsão da possibilidade de serem impugnadas
quaisquer decisões que não sejam de qualificar como
despachos de mero expediente ou decorrentes de
poderes discricionários, nos termos do art. 679º.
O facto de
toda e qualquer decisão (salvo as que notoriamente não têm
qualquer relevo procedimental) ser passível de recurso
autónomo ou, como decorre do art. 691º, nº 3, ser
susceptível de impugnação com o recurso da decisão final,
leva a que exista uma natural tendência para a passividade
do juiz, com reflexos na morosidade da resposta judiciária.
Na base
deste regime continua a lavrar a indefinição do legislador
acerca dos valores que devem ser preservados.
Acusam-se
os tribunais de não darem resposta célere às solicitações
que lhes são dirigidas. Mas eleva-se a um tal ponto o
garantismo processual e a um nível tão reduzido a confiança
depositada nos juízes que, a todo o custo, se acautela a
possibilidade de impugnar as suas decisões, ainda que estas
se revelem meramente instrumentais em relação ao objecto
central da lide.
Um sistema
processual civil moderno e ajustado à realidade deveria
passar pela atribuição ao juiz de um verdadeiro poder de
direcção que, sem as limitações decorrentes da constante
impugnação de qualquer decisão interlocutória de natureza
instrumental, apenas permitisse submeter à apreciação de um
tribunal superior decisões de natureza substancial (com
destaque para as integradas no despacho saneador ou na
sentença) ou em que fossem postos em causa princípios
fundamentais como o do contraditório ou da igualdade.
Era nesta
área que efectivamente se impunha uma intervenção do
legislador que moderasse os efeitos negativos da morosidade
judicial e conferisse ao sistema verdadeira eficácia.
Estranhamente não se observam reivindicações nesse sentido,
seja da parte da advocacia seja, essencialmente, da parte da
Magistratura cuja imagem acaba por ser afectada pelas
críticas que justificadamente se apontam à ineficiência e
morosidade na resposta judiciária.
Lisboa,
27-5-10
António
Santos Abrantes Geraldes
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