RECURSOS EM PROCESSO CIVIL:

ABORDAGEM CRÍTICA DA ÚLTIMA REFORMA ([1])

 

Lisboa, 27-5-10

António Santos Abrantes Geraldes

  

Sumário:

 

1. Introdução. 2. Aplicação da lei no tempo. 3. Impugnação da decisão da matéria de facto. 4. Monismo recursório: vantagens e inconvenientes. 5. Regime da dupla conforme conexo com a revista excepcional. 6. Conclusão.

 

 

1. Introdução

1.1. A reforma do regime dos recursos não constituía uma prioridade, tendo em conta que, no campo da simplificação e da celeridade, as modificações já tinham sido empreendidas com a Reforma de 1996, com resultados bem visíveis, ainda que pouco divulgados.

Para além de algumas alterações menores, as modificações de ordem substancial traduziram-se essencialmente na abolição do agravo e na racionalização do acesso ao Supremo através do aumento do valor das alçadas e da consagração da “dupla conforme”.

 

1.2. Num Colóquio sobre a Abordagem Crítica da Reforma dos Recursos em Processo Civil muitos temas poderiam ser escolhidos.

Optei por incidir sobre quatro temas de entre os que me pareceram mais relevantes.

1º - Aplicação da lei no tempo;

2º - Recurso da decisão da matéria de facto;

3º - Monismo recursório;

4º - Regime da dupla e revista excepcional.

 

2. Aplicação da lei no tempo

2.1. A primeira objecção que pode ser feita à reforma está ligada ao regime que foi instituído quanto à sua aplicação temporal.

Em divergência com o princípio da aplicação imediata da lei processual ou com uma solução transitória como a que foi adoptada na Reforma de 1996, o legislador optou pela cisão total de processos, distinguindo os que se encontravam pendentes em 31-12-07 dos que foram instaurados a partir de 1-1-08, de modo que o novo regime apenas se aplica aos recursos interpostos nestes novos processos (solução posteriormente replicada na reforma do Código de Processo do Trabalho introduzida pelo Dec. Lei nº 295/09, de 13-10).

O resultado está à vista. Há dois anos e meio que todos os intervenientes processuais têm que lidar com a aplicação de dois regimes diversos, situação que perdurará se e enquanto não se extinguir a instância em todos os processos anteriores.

 Ora, entre esta opção e a aplicação imediata da nova lei processual a todos os processos seria mais ajustada uma solução intermédia. Sem embargo de se respeitar, até por razões de ordem constitucional, o regime anterior relativamente ao direito de interposição de recurso, maxime no que concerne à atendibilidade do valor das alçadas vigente à data da instauração da acção, teria sido mais adequada uma solução que permitisse a aplicação do novo regime aos processos anteriores, com ganhos de eficácia e de simplicidade e com redução dos riscos que decorrem da coexistência de dois regimes diversos.

Sem embargo dos efeitos da mudança de paradigma dos recursos que são transversais a todos os intervenientes, são as partes (rectius, os respectivos advogados) que fundamentalmente são afectadas pela persistência de dois regimes processuais diversos, tendo em conta a diversidade de prazos de interposição de recurso (10 dias no termos do anterior art. 685º, nº 1, e 30 dias ou 15 dias de acordo com o que actualmente se prescreve nos arts. 685º, nº 1, 691º, nº 5, e 724º, nº 1, do CPC[2]) e a regra sobre a apresentação das alegações que, nos termos do novo regime (art. 684º-B, nº 2), implica a sua junção em simultâneo com o requerimento de interposição de recurso, sob pena de deserção (art. 291º, nº 2). 

 

2.2. Se a solução é criticável quando aplicada aos recursos ordinários, revela-se ainda mais incompreensível quando repercutida nos recursos extraordinários, maxime no recurso para uniformização de jurisprudência regulado nos arts. 763º e segs. do CPC.

Sem embargo das críticas que possam ser dirigidas à opção pela reintrodução, na prática, do antigo recurso para o Pleno que fora abolido, o certo é que se trata de recurso que incide sobre decisões transitadas em julgado e em que, tendo em conta a diversidade de respostas do próprio Supremo Tribunal de Justiça sobre a mesma questão fundamental de direito, o valor principal a preservar deveria ser o da resolução de divergências jurisprudenciais relevantes, sendo relativamente indiferente se as mesmas se verificam em relação a processos instaurados antes ou depois de 1-1-08.

Assim, não encontra qualquer justificação racional a opção pela não aplicação do novo regime aos processos instaurados antes de 1-1-08 e que terminem com acórdão do STJ contraditório com outro acórdão do STJ sobre a mesma questão de direito.

Uma vez que o regime da revista ampliada introduzido na anterior reforma (arts. 732º-A e 732º-B) não produziu um número significativo de acórdãos de uniformização de jurisprudência, a possibilidade de interposição de recurso extraordinário no âmbito de processos iniciados antes de 1-1-08 constituiria um instrumento eficaz que, dependendo unicamente da iniciativa da parte (ou do Ministério Público), como direito de natureza potestativa, sem margem de discricionariedade para o Presidente do STJ, permitiria estabilizar a jurisprudência em relação a uma série de questões objecto de decisões contraditórias.

É verdade que a admissão imediata de recursos extraordinários poderia determinar a revogação e substituição de decisões transitadas em julgado, acabando por prevalecer a decisão com efeitos uniformizadores da jurisprudência (arts. 770º, nº 2, e 776º).

Mas para além de ser discutível se e em que medida a matéria da recorribilidade das decisões constitui um factor que deva manter-se inalterado ao longo de toda a instância processual,[3] em relação aos recursos extraordinários os interesses de ordem pública ligados à certeza jurídica deveriam prevalecer sobre os interesses das partes relacionados com a persistência do regime de recursos. Assim, apesar de na reforma de 1997 ter sido extinto o recurso para o Pleno, não era obrigatório que fossem tuteladas expectativas das partes, devendo estas ceder perante interesses de ordem geral ligados à fixação de jurisprudência com os inerentes reflexos extraprocessuais.

Mesmo dentro do actual regime admite-se como possível uma interpretação restritiva que reserve a aplicação do art. 11º do Dec. Lei nº 303/07 para os recursos ordinários.

Tal como também é defendido pelo Prof. Teixeira de Sousa,[4] com recurso ao elemento racional e teleológico e com ponderação da função desempenhada pelo STJ no que concerne à uniformização de jurisprudência, seria legítima uma interpretação restritiva de tal preceito, reservando-o para os recursos ordinários.[5]

Não vou, no entanto, insistir, nesta ocasião, sobre esta solução alternativa que, aliás, tem sido recusada uniformemente pelo Supremo Tribunal de Justiça,[6] órgão jurisdicional que sobre a matéria acaba por ter a palavra definitiva.

 

3. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

3.1. A modificação do regime de impugnação da decisão da matéria de facto ocorreu com a revisão processual de 1997, revelando-se essencialmente através da ampliação das atribuições dos Tribunais da Relação no que concerne à reapreciação dos meios de prova oralmente produzidos cuja gravação tenha sido assegurada. A reforma de 2007 praticamente se limitou a reafirmar tal regime, nos termos que agora constam do art. 685º-B, no que concerne aos ónus das partes, e do art. 712º, a respeito dos deveres da Relação.

Sem embargo do que se dirá sobre o modo como tem sido cumprido o ónus de instrução de tais recursos e tem sido acatado o dever de reapreciação da matéria de facto, estranha-se, antes de mais, que no Relatório de Avaliação que precedeu a reforma do regime dos recursos cíveis elaborado pelo Ministério da Justiça 10 anos depois da entrada em vigor do Dec. Lei nº 329-A/95, de 12-12, não se encontre uma única linha sobre o assunto.

Também desconheço qualquer estudo que, com rigor e objectividade, tenha incidido sobre os resultados e tenha ponderado os custos e benefícios emergentes daquela modificação, tanto na perspectiva de quem recorre e tem o ónus de instruir as alegações, como na de quem julga e tem o dever de cumprir o que o legislador determinou.

Como vem acontecendo com outras medidas legislativas, também a gravação das audiências, com que se visou atenuar o princípio da oralidade pura e ampliar as garantias das partes no que concerne ao julgamento da matéria de facto, foi lançada de forma deficiente, quer em termos de formulação normativa, quer da disponibilização dos meios humanos e materiais.

Quanto à formulação normativa, foi agora desperdiçada uma oportunidade para clarificar algumas dúvidas que os textos legais suscitam e, designadamente, esclarecer o âmbito dos poderes do Tribunal da Relação, consignando, de modo inequívoco, que os recursos da matéria de facto implicam a reapreciação dos meios de prova concretizados pelo recorrente, reassumindo a Relação, quanto aos pontos especificamente impugnados, poderes decisórios semelhantes aos exercidos pelo tribunal recorrido. Nessa medida, se afastariam de vez argumentos que continuam a usar-se em alguns acórdãos em redor de uma intervenção minimalista da Relação traduzida no mero controlo formal da convicção e da motivação expressa pelo tribunal recorrido, apostando essencialmente em considerações de pendor abstracto em redor dos princípios da imediação ou da livre apreciação das provas.[7]

 

3.2. Não tenho quaisquer dúvidas de que para corresponder ao regime actual de impugnação da decisão da matéria de facto não basta que o Tribunal da Relação teça considerações de ordem abstracta, implicando que proceda à efectiva reapreciação dos pontos de facto expressamente impugnados a partir da reapreciação dos meios de prova indicados ou de outros que se mostrem acessíveis.

É esta, aliás, a solução que o Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando de forma consistente em múltiplos os acórdãos divulgados (www.dgsi.pt) e em que tal doutrina é exposta para justificar a anulação de acórdãos da Relação.

Efectivamente, para responder e corresponder aos objectivos do recurso da matéria de facto nos moldes instituídos em 1997 não basta ao Tribunal da Relação quedar-se pela exposição de juízos em redor da motivação da decisão apresentada pelo tribunal de 1ª instância, com exponenciação da diversidade de circunstâncias que rodeiam a apreciação do recurso, em comparação com as que estavam presentes aquando da realização da audiência de julgamento em 1ª instância.

Afinal, o legislador, conhecedor dessa diversidade circunstancial, previu a possibilidade de serem corrigidos erros de julgamento a partir da reponderação dos meios de prova oralmente produzidos, em conjugação com os demais elementos constantes dos autos.

Por isso, importa acentuar que desde que não existam motivos para rejeitar o recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art. 685º-B, e desde que o recorrente cumpra os seus ónus processuais com especificação cabal dos pontos de facto controvertidos e concretização dos motivos por que, em seu entender, deve ser modificada a decisão do tribunal de 1ª instância, o Tribunal da Relação, procedendo à apreciação crítica dos meios de prova, deve assumir-se como tribunal de instância, procedendo a uma efectiva sindicância do julgamento da matéria de facto relativamente aos pontos impugnados.

Ainda que em termos sintéticos, para responder aos objectivos projectados pelo legislador deve o Tribunal da Relação:

a) Reapreciar os meios de prova especificados pelo recorrente, através da audição das gravações e/ou da leitura das transcrições porventura apresentadas, conjugando-os com outros meios de prova indicados pelo recorrido ou que constem dos autos, incluindo toda a gravação da audiência de julgamento;

b) Formar a sua convicção com autonomia em relação à matéria de facto impugnada, introduzindo na decisão as modificações que forem julgadas pertinentes;

c) Sem embargo da ponderação da diversidade das circunstâncias em que é feita a reapreciação da decisão da matéria de facto, em comparação com as que rodearam a audiência de discussão e julgamento (com destaque para a ausência de imediação), a Relação goza dos mesmos poderes atribuídos ao tribunal a quo, sem exclusão dos que decorrem do princípio da livre apreciação genericamente consagrado no art. 655º;

d) Apesar dos naturais condicionalismos que rodeiam a tarefa de reapreciação de meios de prova oralmente produzidos, desde que a Relação forme uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados deve reflectir esse resultado em nova decisão.

 

3.3. Algumas vozes vêm reclamando o reforço dos mecanismos que permitam uma efectiva reapreciação da matéria de facto. Para o efeito, invoca-se a insuficiência da gravação áudio das audiências, e reclama-se a gravação também em imagem.

Trata-se de uma maneira muito própria dos juristas de enfrentar os problemas.

Com efeito, sem que tenham sido esgotadas as potencialidades do sistema instituído, sem que se mostre um generalizado cumprimento quer do ónus de alegação das partes, quer do dever de reapreciação das Relações e sem que seja conhecida qualquer avaliação dos custos e dos benefícios do sistema vigente reclamam-se medidas mais avançadas e também mais onerosas, com manutenção dos problemas situados a montante.

Contra essa tendência, não me parece que deva avançar-se para a gravação vídeo das audiências antes se fazer o balanço do sistema em vigor e de se esgotarem as potencialidades que o mesmo já contém.

Ora, a aplicação do regime de recursos assente em gravação áudio das audiências debate-se com diversos problemas carecidos de resolução sem o que não é legítimo, nem razoável reclamar soluções mais avançadas:

a) A introdução de equipamentos de gravação digital que proporcionam melhor qualidade da gravação e tornam mais acessível a localização dos depoimentos, ainda não foi generalizada a todos os tribunais.

b) Persiste a deficiente monitorização das gravações das audiências, sem observância de um controlo da sua qualidade e sem uniformidade de metodologias quanto à fixação na acta ou nos suportes de gravação dos elementos relevantes, o que vem gerando dificuldades quanto ao exercício do direito de impugnação e quanto à apreciação dos recursos da matéria de facto, determinando escusadas anulações de julgamentos.

Ora, se tal vem sucedendo com o uso de equipamentos de fácil manuseamento, maiores complicações advirão com a introdução de equipamentos de gravação de som e de imagem, como o demonstra a aplicação do regime de prestação de depoimentos por teleconferência, nos termos do art. 623º.

c) São frequentíssimas as situações em que da parte dos recorrentes se revela o deficiente cumprimento dos ónus em redor do recurso da matéria de facto, designadamente no que concerne à apreciação crítica dos meios de prova com referência aos depoimentos gravados e demais elementos que constam dos autos, apostando frequentemente em considerações de ordem genérica reveladoras de mera discordância em relação ao decidido. Também são comuns os recursos da matéria de facto que se traduzem em meras pretensões de natureza genérica, sem suficiente concretização dos pontos de facto que se pretendem impugnar.

d) Apesar da persistente jurisprudência do Supremo no sentido de impender sobre os Tribunais da Relação um efectivo dever de reapreciação dos meios de prova invocados para sustentar a impugnação, ainda persiste uma tendência, posto que minoritária, que encara os recursos da matéria de facto sob uma perspectiva eminentemente formal, sem efectivo confronto entre as alegações e os meios de prova que foram produzidos e que se encontram gravados.

Ainda que em termos empíricos, estas serão algumas das circunstâncias que explicarão o reduzido número de recursos de impugnação da matéria de facto que obtém sucesso.

 

4. Monismo recursório

4.1. A opção pelo monismo recursório constitui uma das mais emblemáticas medidas introduzidas pelo novo regime dos recursos cíveis.

A mesma já fora discutida em anteriores comissões de revisão do CPC, mas nunca avançou. Ainda assim, a solução não saiu da agenda, mais não seja pela necessidade de aproximação aos sistemas jurídico-processuais congéneres.

 

4.2. Tradicionalmente o processo civil nacional sempre foi marcado pela existência de duas espécies de recursos ordinários: apelação e agravo ou revista e agravo em 2ª instância. Tanto a apelação como a revista tinham em vista decisões de mérito nas acções ou nas fases declaratórias das execuções, de tal modo que todas as demais decisões deveriam ser impugnadas através dos recursos de agravo ou de agravo em 2ª instância.

O regime primitivo já fora amplamente modificado em 1997.

Em relação a qualquer decisão passível de recurso de agravo, ainda que com subida diferida, este deveria ser logo interposto no curto prazo de 10 dias previsto no art. 685º, nº 1, sob pena de caso julgado formal.

O estabelecimento do ónus adicional de o recorrente apresentar alegações de recurso, mesmo quando o agravo tinha subida diferida, transmitia ao recurso um factor de seriedade, já que sendo fácil a sua interposição, se mostrava mais difícil a sua sustentação.

Por outro lado, prevendo-se a emissão de despacho de sustentação ou de reparação do agravo, permitia-se que decisões eivadas de erro pudessem ser reformadas pelo próprio juiz.

De qualquer maneira, a subida do agravo e a intervenção do tribunal superior ficava ainda condicionada pelo resultado final da acção, pois se o agravante acabasse por sair vencedor ficaria prejudicado, em regra, o interesse na manutenção do agravo com subida diferida.

A estas vantagens do regime correspondiam inconvenientes que se manifestavam através de uma sucessão de recursos sujeitos a tramitação incidental dispersando a atenção que deveria centrar-se no objecto do processo, sendo que uma parte dos recursos e a correspondente tramitação ficava prejudicada pelo resultado final da acção.

Acrescia ainda que quando fosse concedido provimento ao agravo com subida diferida tal poderia afectar a decisão final, com eventuais reflexos na tramitação processual anterior.

 

4.3. A primeira observação que pode fazer-se em relação à mudança de paradigma operada em 2007 é a de que a mesma não veio responder a qualquer necessidade imposta pela análise dos resultados que antes se obtinham.

Com efeito, o sistema anterior já possibilitava uma efectiva celeridade na resposta judiciária bem reflectida pelos dados referentes à duração dos processos em sede de recurso nas Relações e no STJ.

Como segundo aspecto, a ideia de que o novo regime reduziu o número de recursos é enganadora.

Com efeito, quanto à generalidade dos agravos que antes subiam imediatamente, nos próprios autos ou em separado, a recorribilidade continua a ser assegurada através do recurso das decisões interlocutórias, como o revela, quanto à apelação, o art. 691º, nº 2, que integra ainda - e bem - o recurso dos despachos sobre a admissão ou rejeição de meios de prova (al. i)).

Quanto aos agravos que antes estavam sujeitos ao regime de subida em diferido, corresponde-lhes agora a possibilidade de impugnação com o recurso da decisão final na acção, nos termos do art. 691º, nº 3, ou depois de esta transitar em julgado (art. 691º, nº 4).

Pode, assim, antecipar-se o aumento do grau de complexidade dos recursos de apelação das decisões finais e a ocorrência mais frequente de situações em que, por motivos puramente formais, acabará por ser determinada a anulação do processado, com prejuízo para as decisões de mérito entretanto proferidas.[8]

Basta para o efeito que a parte vencida, insatisfeita com o resultado final, cuja modificação ou revogação não possa, no entanto, obter a partir da invocação de razões substanciais, encontre na anterior tramitação processual algum erro decisório com implicações na anulação do processado posterior, incluindo o julgamento e a sentença.

Trata-se de um risco que não deve ser desprezado. O novo regime potencia a utilização ilegítima dos meios processuais com o objectivo de pôr em causa, por razões puramente formais ou instrumentais, decisões de mérito de que a parte discorda.

A atenuação de tal risco exigia que uma tal opção fosse compensada por outras medidas, entre as quais:

- A forte restrição na impugnabilidade de decisões interlocutórias de natureza meramente formal, dando coerência interna ao poder de direcção atribuído ao juiz nos termos do art. 265º do CPC;

- O aumento das decisões sujeitas a apelação interlocutórias (v.g. decisão de qualquer excepção dilatória no despacho saneador, à semelhança do que agora se prevê no CPT);

- Ao menos, a possibilidade de dedução de reclamação dirigida ao próprio juiz (em termos semelhantes ao que se prescreve para a enunciação dos factos assentes e base instrutória, nos termos do art. 511º), permitindo que fossem imediatamente corrigidos erros decisórios, evitando os efeitos negativos sequenciais a uma eventual anulação do processado.

 

5. Dupla conforme e revista excepcional

5.1. Uma das coordenadas do novo regime de recursos que foi objecto de mais discussão consta do art. 721º, nº 3, norma que veda o recurso de revista quando a Relação confirme, sem voto de vencido e ainda que com fundamento diverso, a decisão da 1ª instância: a chamada “dupla conforme”.

O juízo de confirmação deve incidir sobre a decisão, isto é, sobre o resultado declarado na sentença de 1ª instância, em comparação com o que decorre do acórdão da Relação, sendo indiferente a via trilhada para confirmar o que fora declarado na sentença recorrida.

Em tais circunstâncias, só a existência de voto de vencido justifica a desobstrução no acesso geral ao 3º grau de jurisdição através do recurso de revista “normal”.

O regime estabelecido acabou por resultar de um compromisso entre as duas tendências: mantendo, como regra geral, a inadmissibilidade de recurso em situações de “dupla conforme”, admite-se o recurso de revista em três situações enunciadas no art. 721º-A, nº 1.

Creio que se trata de um regime equilibrado.

Com efeito, para a generalidade dos casos, não há razões para, apesar da confirmação total pela Relação da decisão do tribunal de 1ª instância, sem voto de vencido, se admita indiscriminadamente o acesso ao 3º grau de jurisdição.

A solução visa compatilizar os diversos interesses, contrapondo a um generalizado direito de interposição de recurso a necessidade de uma racional e equilibrada gestão dos meios humanos e materiais.

Com efeito, se, em abstracto, a multiplicidade de graus de jurisdição constitui elemento potenciador de segurança jurídica, os meios disponíveis para a tarefa de administração da justiça são naturalmente limitados, e a necessidade de alcançar uma decisão definitiva em tempo razoável não é compatível com o esgotamento da multiplicidade de recursos.

 

5.2. A tal regra se interpõem algumas excepções:[9]

a) O 3º grau de jurisdição mantém-se intacto nos casos do art. 678º, nº 2, norma que admite “sempre” recurso nas seguintes situações: violação das regras da competência, ofensa de caso julgado e desrespeito por acórdão de uniformização de jurisprudência.

b) Outra excepção está relacionada com o relevo jurídico da questão, sendo aberto o 3º grau de jurisdição quando o próprio STJ considere que o mesmo deve ser garantido para preservar interesses de ordem geral ligadas à boa aplicação do direito, designadamente em face do carácter paradigmático da situação que extravase os limites do caso concreto.

Como é natural, tal hipótese estará afastada sempre que a decisão da Relação se inscreva numa corrente jurisprudencial consolidada, não podendo reclamar-se a intervenção do Supremo com base no mero inconformismo relativamente ao resultado declarado.

A intervenção do Supremo apenas se justificará em face de uma questão cujo relevo jurídico seja indiscutível, o que tanto pode ocorrer quando se esteja em face de legislação nova passível de sérias divergências (efeito preventivo) como de questão que tenha sido resolvida ao arrepio do entendimento uniforme da jurisprudência ou da doutrina (efeito reparador), garantindo o princípio da igualdade da aplicação da lei. A intervenção do Supremo pode ainda justificar-se para assegurar uma solução tendencialmente uniforme em situações de lacuna legis, nos termos do art. 10º do CC.

c) Não será fácil a delimitação dos casos derivados do direito civil e comercial que mereçam o 3º grau de jurisdição em face do relevo social da questão, requisito que faz apelo a questões que interfiram com interesses importantes da comunidade ou ligadas aos direitos dos consumidores, ambiente, ecologia, qualidade de vida, saúde ou património histórico e cultural.

Naturalmente que não será o maior ou menor “ruído” feito pelos órgãos de comunicação social em redor de determinados casos que justificará o acesso excepcional ao Supremo.

d) Maior objectividade se encontra na última excepção que abarca os casos em que a Relação tenha divergido de acórdão de outra Relação ou do STJ sobre a mesma questão essencial de direito.

Está implícito em tal excepção o objectivo de preservar a uniformidade na aplicação e interpretação da lei. Mas constituirá também uma forma indirecta de motivar o STJ a proferir acórdãos de uniformização de jurisprudência, pois que quanto maior for o número de questões jurídicas pacificadas menores serão as possibilidades de, por esta via excepcional, se alcançar o 3º grau de jurisdição.

No actual contexto jurisprudencial torna-se fácil aceder ao Supremo com este fundamento, tendo em conta a multiplicidade de questões que continuam marcadas pela divergência jurisprudencial e o facto de poderem ser invocados como fundamento da revista excepcional não apenas acórdãos do Supremo como ainda acórdãos de qualquer das Relações, em qualquer caso, sem limitação de datas. Importante é que incidam sobre a mesma questão fundamental de direito e se mantenha na substância o mesmo regime jurídico.

 

 

 

6. Balanço conclusivo

6.1. Sem embargo das críticas que podem ser feitas a uma ou outra solução e da discussão da verdadeira necessidade de alterar a estrutura dos recursos em matéria cível, abandonando o dualismo recursório, creio que ainda está por fazer a verdadeira reforma que, em sede de recursos, poderia dar coerência às modificações substanciais que ocorrerem em 1997.

Tal reforma passaria pela valorização da função do juiz no processo civil, por forma a potenciar mais eficácia e celeridade dos mecanismos processuais, passando de mero gestor da conflitualidade para verdadeiro promotor da resolução dos litígios.

Ou seja, a verdadeira reforma do regime de recursos não deveria tanto operar-se ao nível da estrutura e tramitação do modo de impugnação de decisões recorríveis, antes da ampliação do leque de decisões irrecorríveis ou de decisões inimpugnáveis, dando ao juiz efectivo poder de direcção do processo.

 

6.2. Explicando melhor.

O art. 265º atribui ao juiz o poder de direcção do processo que implica o dever de promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção ou o de recusar o que for impertinente ou meramente dilatório.

Porém, a eficácia de um tal poder é imediatamente cerceada pela concreta previsão da possibilidade de serem impugnadas quaisquer decisões que não sejam de qualificar como despachos de mero expediente ou decorrentes de poderes discricionários, nos termos do art. 679º.

O facto de toda e qualquer decisão (salvo as que notoriamente não têm qualquer relevo procedimental) ser passível de recurso autónomo ou, como decorre do art. 691º, nº 3, ser susceptível de impugnação com o recurso da decisão final, leva a que exista uma natural tendência para a passividade do juiz, com reflexos na morosidade da resposta judiciária.

Na base deste regime continua a lavrar a indefinição do legislador acerca dos valores que devem ser preservados.

Acusam-se os tribunais de não darem resposta célere às solicitações que lhes são dirigidas. Mas eleva-se a um tal ponto o garantismo processual e a um nível tão reduzido a confiança depositada nos juízes que, a todo o custo, se acautela a possibilidade de impugnar as suas decisões, ainda que estas se revelem meramente instrumentais em relação ao objecto central da lide.

Um sistema processual civil moderno e ajustado à realidade deveria passar pela atribuição ao juiz de um verdadeiro poder de direcção que, sem as limitações decorrentes da constante impugnação de qualquer decisão interlocutória de natureza instrumental, apenas permitisse submeter à apreciação de um tribunal superior decisões de natureza substancial (com destaque para as integradas no despacho saneador ou na sentença) ou em que fossem postos em causa princípios fundamentais como o do contraditório ou da igualdade.

Era nesta área que efectivamente se impunha uma intervenção do legislador que moderasse os efeitos negativos da morosidade judicial e conferisse ao sistema verdadeira eficácia.

Estranhamente não se observam reivindicações nesse sentido, seja da parte da advocacia seja, essencialmente, da parte da Magistratura cuja imagem acaba por ser afectada pelas críticas que justificadamente se apontam à ineficiência e morosidade na resposta judiciária.

Lisboa, 27-5-10

António Santos Abrantes Geraldes


 

[1] O texto serviu de base à intervenção no “Colóquio Sobre Processo Civil” promovido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27-5-2010.

[2] São do Código de Processo Civil, na actual redacção, as normas que forem indicadas sem qualquer outra referência.

[3] Vide Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, tomo I.

[4] Reflexões sobre a reforma dos recursos em processo civil, em Cadernos de Direito Privado, nº 20, pág. 4.

[5] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil - Novo Regime, 3ª ed., págs. 17 e 18 e 507, com menção da doutrina e jurisprudência sobre a matéria.

[6] Ver por todos o Ac. do STJ, de 5-2-09, www.dgsi.pt.

[7] Sobre a matéria e com mais desenvolvimentos cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil - Novo Regime, 3ª ed., anot. aos arts. 685-B e 712º, onde são indicados elementos jurisprudenciais e doutrinais.

[8] Para mais desenvolvimentos cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil - Novo Regime, 3ª ed., anot. ao art. 691º.

[9] Para mais desenvolvimentos, cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., anot. aos arts. 721º e 721º-A.