O Regime dos Direitos Sociais
Jorge Miranda
Nesta exposição, começarei por
considerações de carácter geral sobre os direitos
fundamentais no Estado social – que é hoje o Estado
de Direito democrático ou Estado democrático de
Direito – e depois exporei o regime dos direitos
sociais, tomando como referência a Constituição
portuguesa, mas com aspectos facilmente
transponíveis para o Direito constitucional
brasileiro.
Para mais desenvolvimento da
matéria, sugiro o IV volume do meu Manual de
Direito Constitucional dedicado aos direitos
fundamentais (4ª ed., Coimbra, 2008) e autores aí
citados.
I
Os direitos sociais no âmbito
dos direitos fundamentais
1. A evolução dos direitos
fundamentais
I — Tal como o
conceito de Constituição, o conceito de direitos
fundamentais surge indissociável da ideia de Direito
liberal. Daí que se carregue das duas
características identificadoras da ordem liberal: a
postura individualista abstracta de (no dizer de Radbruch)
um «indivíduo sem individualidade»; e o primado da
liberdade, da segurança e da propriedade,
complementadas pela resistência à opressão.
Apesar de todos os
direitos serem ou deverem ser (por coerência)
direitos de todos, alguns (maxime o sufrágio)
são, no século xix,
denegados aos cidadãos que não possuam determinados
requisitos económicos; outros (v. g., a
propriedade) aproveitam sobretudo aos que pertençam
a certa classe; e outros ainda (o direito de
associação, em particular de associação sindical)
não é sem dificuldade que são alcançados.
Contrapostos aos
direitos de liberdade são, nesse século e no século
xx reivindicados (sobretudo, por movimentos de trabalhadores)
e sucessivamente obtidos, direitos económicos,
sociais e culturais — direitos económicos para
garantia da dignidade do trabalho, direitos sociais
como segurança na necessidade e direitos culturais
como exigência de acesso à educação e à cultura e em
último termo de transformação da condição operária.
Nenhuma Constituição posterior à primeira guerra
mundial deixa de os outorgar, com maior ou menor
ênfase e extensão.
Sabe‑se, porém,
que são diversas — muito mais diversas de que os do
Estado liberal — as configurações do Estado social.
Os antagonismos ideológicos, os desníveis de
estádios de desenvolvimento e as diferenças de
culturas e de práticas sociais não só subjazem aos
contrastes de tipos constitucionais como explicam
realizações e resultados variáveis de país para
país.
II — Num resumo da
evolução dos direitos fundamentais, indicam‑se,
correntemente, três ou quatro gerações: a dos
direitos de liberdade; a dos direitos sociais; a dos
direitos ao ambiente, à autodeterminação, aos
recursos naturais e ao desenvolvimento; e, ainda, a
dos direitos relativos à bioética, á engenharia
genética, à informática e a outras utilizações das
modernas tecnologias, ligados à sociedade de
informação e à sociedade de risco.
Conquanto esta
maneira de ver possa ajudar a apreender os
diferentes momentos históricos de aparecimento dos
direitos, o termo geração, geração de
direitos, afigura‑se enganador por sugerir uma
sucessão de categorias de direitos, umas
substituindo‑se às outras — quando, pelo contrário,
o que se verifica em Estado social de direito é um
enriquecimento crescente em resposta às novas
exigências das pessoas e das sociedades.
Nem se trata de um
mero somatório, mas sim de uma interpenetração
mútua, com a consequente necessidade de harmonia e
concordância prática. Os direitos vindos de certa
época recebem o influxo dos novos direitos, tal como
estes não podem deixar de ser entendidos em
conjugação com os anteriormente consagrados: algumas
liberdades e o direito de propriedade não possuem
hoje o mesmo alcance que possuíam no século
xix, e
os direitos sociais adquirem um sentido diverso
consoante os outros direitos garantidos pelas
Constituições.
Tão pouco as
pretensas gerações correspondem a direitos com
estruturas contrapostas: um caso paradigmático é o
do direito à intimidade ou à privacidade só
plenamente consagrado no século
xx. E
há direitos inseridos numa geração que ostentam uma
estrutura extrema complexa: é o caso do direito ao
ambiente.
Finalmente,
direitos como os direitos à autodeterminação, aos
recursos naturais e ao desenvolvimento nem sequer
entram no âmbito dos direitos fundamentais, porque
pertencem a outra área — a dos direitos dos
povos. Eis o que adiante se mostrará.
III — Nos séculos
xviii e
xix dir‑se‑ia
existir somente uma concepção de direitos
fundamentais, a liberal. Não obstante as críticas —
legitimistas, socialistas, católicas — era o
liberalismo (então, cumulativamente, filosófico,
político e económico) que prevalecia em todas as
Constituições e declarações; e, não obstante a
pluralidade de escolas jurídicas — jusnaturalista,
positivista, histórica — era a ele que se
reportavam, duma maneira ou doutra, as
interpretações da liberdade individual.
A situação muda no século
xx: não
tanto por desagregação ou dissociação das três
vertentes liberais (em especial, por o liberalismo
político deixar de se fundar, necessariamente, no
liberalismo filosófico) quanto por todas as grandes
correntes — religiosas, culturais, filosóficas,
ideológicas, políticas — se interessarem pelos
direitos do homem e quase todas se afirmarem
empenhadas na sua promoção e na sua realização. O
tema dos direitos do homem cessou de ser, nessa
altura, uma exclusiva aspiração liberal.
2. Os direitos
fundamentais no Estado social de Direito
I — A passagem
para o Estado social de Direito irá reduzir ou mesmo
eliminar o cunho classista que, por razões
diferentes, ostentavam antes os direitos de
liberdade e os direitos sociais. A transição do
governo representativo clássico para a democracia
representativa irá reforçar ou introduzir uma
componente democrática que tenderá a fazer da
liberdade tanto uma liberdade — autonomia como uma
liberdade — participação (fechando‑se, assim, o
ciclo correspondente à contraposição de Constant).
Por um lado, não
só os direitos políticos são paulatinamente
estendidos até se chegar ao sufrágio universal como
os direitos económicos, sociais e culturais, ou a
maior parte deles, vêm a interessar á generalidade
das pessoas. Por outro lado, o modo como se
adquirem, em regime liberal ou pluralista, alguns
dos direitos económicos, sociais e culturais a
partir do exercício da liberdade sindical, da
formação de partidos, da greve e do sufrágio mostra
que os direitos da liberdade se não esgotam num mero
jogo de classes dominantes.
II — Independentemente
das divergências a nível de formulações, teorizações
e fundamentações, ressaltam algumas tendências
comuns:
— A
diversificação do catálogo, muito para lá das
declarações clássicas;
— A
consideração do homem situado, traduzida na
relevância dos grupos e das pessoas colectivas e na
conexão com garantias institucionais;
— A acentuação
da dimensão objectiva e a irradiação para todos os
ramos de Direito;
— A aceitação
da natureza de princípios da maior parte das normas
de direitos fundamentais;
— O
reconhecimento da complexidade de estrutura;
— A dimensão
plural e poligonal das relações jurídicas;
— A produção de
efeitos não só verticais (frente ao Estado) mas
também horizontais (em relação aos particulares);
— A dimensão
participativa e procedimental, levando a falar em
status activus processualis (Häberle);
— A ideia de
aplicabilidade directa;
— A
interferência não apenas do legislador mas também da
Administração na concretização e na efectivação dos
direitos;
— O
desenvolvimento dos meios de garantia e a sua
ligação aos sistemas de fiscalização da legalidade e
da constitucionalidade;
— O enlace com
o Direito internacional.
3. Direitos de
liberdade e direitos sociais
I — Não faltam
Autores que somente tomam como direitos fundamentais
as liberdades e que relegam os direitos sociais para
a zona das imposições dirigidas ao legislador ou
para a das garantias institucionais. Assim como há
aqueles que não admitem verdadeiras liberdades à
margem da consecução dos factores de exercício só
propiciados pela realização dos direitos sociais.
Mas, da óptica do Estado social de Direito, sejam
quais forem as interpretações ou subsunções
conceituais, não pode negar‑se a uns e outros
direitos a natureza de direitos fundamentais.
Como escrevi
noutra altura, já há muito tempo, em Contributo
para uma teoria de inconstitucionalidade,
Lisboa, 1968, págs. 70‑71:
Tanto na concepção
liberal como na concepção social, deparam‑se a
liberdade e a igualdade; porém, na primeira,
igualdade é a titularidade dos direitos e demanda
liberdade para todos, ao passo que, na segunda, a
igualdade é a concreta igualdade de agir e a
liberdade a própria igualdade puxada para acção. Na
concepção liberal, a liberdade de cada um tem como
limite a liberdade dos outros; na concepção social,
esse limite prende‑se com a igualdade material e
situada. Os direitos constitucionais de índole
individualista podem resumir‑se num direito geral de
liberdade, os direitos de índole social num direito
geral à igualdade.
Sabemos que esta
igualdade material não se oferece, cria‑se; não se
propõe, efectiva‑se; não é um princípio, mas uma
consequência. O seu sujeito não a traz como
qualidade inata que a Constituição tenha de
confirmar e que requeira uma atitude de mero
respeito; ele recebe‑a através de uma série de
prestações, porquanto nem é inerente às pessoas, nem
preexistente ao Estado. Onde bastaria que o cidadão
exercesse ou pudesse exercer as próprias faculdade
jurídicas, carece‑se doravante de actos públicos em
autónoma discricionariedade. Onde preexistiam
direitos, imprescindíveis, descobrem‑se condições
externas que se modificam, se removem ou se
adquirem. Assim, o conteúdo do direito à igualdade
consiste sempre num comportamento positivo, num
facere ou num dare.
II — Para o Estado
social de Direito, a liberdade possível — e,
portanto, necessária — do presente não pode
ser sacrificada em troca de quaisquer metas, por
justas que sejam, a alcançar no futuro. Há que criar
condições de liberdade — de liberdade de
facto, e não só jurídica; mas a sua
criação e a sua difusão somente têm sentido em
regime de liberdade. Porque a liberdade (tal
como a igualdade) é indivisível, a diminuição
da liberdade — civil ou política — de alguns (ainda
quando socialmente minoritários), para outros (ainda
quando socialmente maioritários) acederem a novos
direitos, redundaria em redução da liberdade de
todos.
O resultado
almejado há‑de ser uma liberdade igual para
todos, construída através da correcção das
desigualdades e não através de uma igualdade sem
liberdade; sujeita às balizas materiais e
procedimentais da Constituição; e susceptível, em
sistema político pluralista, das modulações que
derivem da vontade popular expressa pelo voto.
III — Nos direitos
de liberdade ou, mais amplamente, nos direitos,
liberdades e garantias, parte‑se da ideia de que as
pessoas, só por o serem, ou por terem certas
qualidades ou por estarem em certas situações ou
inseridas em certos grupos ou formações sociais,
exigem respeito e protecção por parte do Estado e
dos demais poderes. Nos direitos sociais, parte‑se
da verificação da existência de desigualdades e de
situações de necessidade — umas derivadas das
condições físicas e mentais das próprias pessoas,
outras derivadas de condicionalismos exógenos
(económicos, sociais, geográficos, etc.) — e da
vontade de as vencer para estabelecer uma relação
solidária entre todos os membros da mesma comunidade
política.
A existência das
pessoas é afectada tanto por uns como por outros
direitos. Mas em planos diversos: com os direitos,
liberdades e garantias, é a sua esfera de
autodeterminação e expansão que fica assegurada, com
os direitos sociais é o desenvolvimento de todas as
suas potencialidades que se pretende alcançar; com
os primeiros, é a vida imediata que se defende do
arbítrio do poder, com os segundos é a esperança
numa vida melhor que se afirma; com uns, é a
liberdade actual que se garante, com os outros é uma
liberdade mais ampla e efectiva que se começa a
realizar.
Os direitos,
liberdades e garantias são direitos de libertação
do poder e, simultaneamente, direitos à
protecção do poder contra outros poderes (como
se vê, quanto mais não seja, nas garantias de
intervenção do juiz no domínio das ameaças à
liberdade física por autoridades administrativas).
Os direitos sociais são direitos de libertação da
necessidade e, ao mesmo tempo, direitos de
promoção. O escopo irredutível daqueles é a
limitação jurídica do poder, o destes é a
organização da solidariedade.
Liberdade e libertação não se
separam, pois; entrecruzam‑se e completam‑se; a
unidade da pessoa não pode ser truncada por causa de
direitos destinados a servi‑la; e também a unidade
do sistema jurídico impõe a harmonização constante
dos direitos da mesma pessoa e de todas as pessoas.
IV — Sustenta a
doutrina dominante que os direitos, liberdades e
garantias têm um conteúdo essencialmente determinado
(ou determinável) ao nível das normas
constitucionais, os direitos sociais têm um conteúdo
determinado, em maior ou menor medida, por opções do
legislador ordinário. Donde, uma mais vincada
densidade constitucional dos primeiros do que
dos segundos.
Mas essa maior ou menor
determinação ou determinabilidade do conteúdo dos
direitos, como base de distinção, deve ser
relativizada, desde logo porque deve ser sempre
possível apurar o lugar, a projecção e o sentido
essencial de quaisquer direitos dentro do sistema e,
depois, porque há graus diferentes quer nos
direitos, liberdades e garantias quer nos direitos
sociais. É o que pode ver‑se à face de alguns
preceitos da Constituição portuguesa.
Há direitos, liberdades e
garantias que não possuem ou só possuem em pequeno
grau a característica de determinabilidade
constitucional. É o que sucede com o direito à
identidade genética (art. 26.º, n.º 3), com o
direito à objecção de consciência (art. 41.º, n.º
6), com o direito de manifestação (art. 44.º, n.º
2), com o direito de autogestão (art. 61.º, n.º5),
com o direito de participação de trabalhadores na
gestão das unidades de produção do sector público
(art. 89.º), com o direito de participação dos
administrados nos procedimentos administrativos
(art. 267.º, n.º 5) e, de certo modo, com o direito
a indemnização em caso de responsabilidade civil das
entidades públicas (art. 22.º), com o direito de
acção popular (art. 52.º, n.º3) e com o direito à
segurança no emprego (art. 53.º).
Em contrapartida, há direitos
sociais determináveis, como o de acesso aos
tribunais, independentemente de insuficiência de
meios económicas (art. 20.º, n.º 1, 3a
parte), o direito a um limite máximo da jornada de
trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas
pagas [art. 59.º, n.º 1, alínea d)], o
direito a que todo o tempo de trabalho contribua
para o cálculo das pensões de velhice e invalidez,
independentemente do sector de actividade em que
tenha sido prestado (art. 63.º, n.º 4), o direito
das mulheres trabalhadoras a dispensa de trabalho,
durante a gravidez e após o parto, por período
adequado, sem perda da retribuição e de quaisquer
regalias (art. 68.º, n.º 3), o direito das mães e
dos pais a dispensa de trabalho por período
adequado, de acordo com os interesses da criança e
as necessidades do agregado familiar (art. 68.º, n.º
4), o direito ao ensino básico universal,
obrigatório e gratuito [art. 74.º, n.º 2, alínea
a)] e a proibição de trabalho de menores em
idade escolar (art. 69.º, n.º 3).
Repare-se, além
disso, em direitos – como o de protecção da saúde
(art. 64.º), o direito à habitação (art. 65.º), os
direitos dos deficientes (art. 71.º), os das pessoas
idosas (art. 72.º) ou o direito à fruição cultural
(art. 78.°) – em que, através das incumbências do
Estado destinadas à sua efectivação, se capta, com
relativa nitidez, o conteúdo que a Constituição lhes
pretende assinalar.
V — A Constituição portuguesa
trata em títulos separados os direitos a que chama
direitos, liberdades e garantias (e que
correspondem aos clássicos direitos de liberdade e a
garantia de Direito e processo penais) e os
direitos económicos, sociais e culturais. Mas a
contraposição pode e deve ser atenuada por haver
princípios comuns e por o art. 17.º mandar aplicar o
regime dos direitos, liberdades e garantias aos
direitos de natureza análoga.
4. Os princípios
constitucionais
I — Princípios comuns a todos os
direitos são, na Constituição portuguesa:
a) O princípio da
universalidade (art. 12.º), com extensão de
direitos aos portugueses no estrangeiro (art. 14.º)
e aos estrangeiros em Portugal (art. 15.º);
b) O princípio da
igualdade (art. 13.º);
II — Princípios comuns com
variações ou diferenciações vêm a ser:
a) O princípio da
protecção da confiança com toda a amplitude
inerente ao Estado de Direito e conexo com o dever
ou o princípio da boa fé na actuação do Estado e das
demais entidades públicas (art. 266.º, n.º 2);
b) O princípio da
proporcionalidade (arts. 2.º, 18.º, n.º 2, 19,
n.ºs 4 e 8, 30.º, n.º 5, 50.º, n.º 3, 65.º, n.º 4,
266.º, n.º 2, 270.º, 272.º, n.º 2), com base no qual
hão‑de ser resolvidas as colisões de direitos e
entre direitos e deveres, apuradas as restrições
constitucionalmente admissíveis a direitos
fundamentais, ou a sua suspensão e (de certo modo)
feitas as opções relativas à efectivação dos
direitos económicos, sociais e culturais;
c) O princípio da
eficácia jurídica dos direitos fundamentais,
envolvendo a aplicação imediata, directa ou
indirecta, dos direitos fundamentais, a
vinculatividade das entidades públicas e a
vinculatividade das entidades privadas (art. 18.º,
n.º 1), bem como a limitação recíproca dos direitos
com vista à sua optimização (art. 29.º, n.º 2 da
Declaração Universal) e a garantia do seu conteúdo
essencial (art. 19.º, n.º 3);
d) O princípio da
tutela jurídica, através dos tribunais (arts.
20.º, 202.º, 268.º, n.ºs 4 e 5 e 280.º, n.ºs 1 e 2),
do Provedor de Justiça (art. 23.º) e do exercício de
direito de petição (art. 52.º, n.º 1);
e) O princípio da
responsabilidade civil das entidades públicas e dos
titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes
em caso de violação de direitos (arts. 22.º e 269.º,
n.º 1).
Por outro lado, os direitos,
liberdades e garantias, de forma explícita, e os
direitos económicos, sociais e culturais, de forma
implícita, entram nos limites materiais de
revisão constitucional.
III — Princípios específicos do
regime dos direitos, liberdades e garantias são, por
seu turno:
a) O princípio de
reserva de lei (art. 18.º, n.ºs 2 e 3,
designadamente);
b) O princípio do
carácter restritivo das restrições (art. 18.º,
n.ºs 2 e 3), conexo com o princípio da afectação
individual de direitos apenas verificados os
pressupostos e as garantias da Constituição e da lei;
c) O princípio do
carácter excepcional da suspensão (art. 11.º);
d) O princípio da
afectação individual apenas verificados os
pressupostos e as garantias da Constituição e da lei
(arts. 27.º, n.ºs 2 e 3, 36.º, n.º 6, etc.);
f) O princípio da
autotutela através do direito de resistência
(arts. 21.º e 103.º, n.º 3);
e) O princípio da
responsabilidade criminal em caso de violação
pelos titulares dos órgãos de poder político e pelos
funcionários e agentes do Estado e das demais
entidades públicas (arts. 117.º, n.º 1 e 269.º).
Depois, os direitos, liberdades
e garantias entram na reserva de competência da
Assembleia da República, seja reserva legislativa
absoluta [art. 164.º, alíneas a), e),
h), i), j) e p)] e
relativa [art. 165.º, n.º 1, alínea b)], seja
reserva de aprovação de convenções internacionais
[art. 161.º, alínea i)]; e sobre eles está
vedada, em princípio, aos órgãos das regiões
autónomas legislar [arts. 112.º, n.º 4 e 227.º, n.º
1, alínea e)].
IV — Princípios específicos do
regime dos direitos económicos, sociais e culturais
são:
a) O princípio da
participação dos interessados na sua concretização
[arts. 2.º, in fine, 54.º,
n.º 5, alínea e), 59.º, n.º 2, alínea d),
63.º, n.º 3, 64.º, n.º 3, alínea d), 65.º,
n.º 2, alíneas c) e d), 66.º, n.º 2,
67.º, n.º 2, alínea c), 70.º, n.º 3, 71.º,
n.º 3, 73.º, n.º 3, 74.º, n.º 2, alínea f),
75.º, n.º 2, 78.º, n.º 2, 79.º, n.º 2, 97.º, n.º 2,
alínea d)];
b) O princípio da
dependência da realidade constitucional ou das
condições económicas, sociais e culturais para a sua
efectivação [art. 9.º, alínea d)];
c) O princípio da
repartição dos custos em razão das condições
económicas dos beneficiários [arts.
20.º, n.º 1, in fine, e 64.º,
n.º 2, alínea a)].
Na reserva de competência
legislativa da Assembleia da República entram apenas
as bases do sistema de ensino, com reserva absoluta
[art. 164.º, alínea i)]; e, com reserva
relativa, as bases do sistema de segurança social,
do serviço nacional de saúde, do sistema de
protecção da natureza, do equilíbrio ecológico e do
património cultural e do ordenamento do território e
do urbanismo [art. 165.º, n.º 2, alíneas f),
g) e z)].
V — Diversas são,
outrossim, as sedes constitucionais:
a)
Quanto aos regimes comuns a todos os direitos,
quanto ao regime comum com variações e quanto ao
regime material dos direitos, liberdades e
garantias, o título
i da parte i;
b)
Quanto ao regime orgânico, o capítulo
ii do título
iii da parte iii,
sobre competência da Assembleia da República;
c)
Quanto à revisão constitucional, o título
ii da parte
iv.
VI — Os princípios
e regras enunciados têm diversas origens:
a)
Remontam ao constitucionalismo liberal o princípio
da universalidade, a extensão dos direitos aos
portugueses no estrangeiro e aos estrangeiros em
Portugal, o princípio da tutela graciosa, a
limitação recíproca dos direitos, a autotutela
através do direito de resistência, e a reserva de
competência do Parlamento sobre direitos, liberdades
e garantias;
b)
Remonta ao constitucionalismo liberal, se bem que
enriquecido e transformado pelo Estado social, o
princípio da igualdade;
c)
Traduzem progressos no sentido do aprofundamento do
Estado de Direito os princípios da protecção da
confiança e da proporcionalidade, os princípios do
acesso ao direito e da tutela jurisdicional, o
princípio da responsabilidade civil do Estado e das
demais entidades públicas, alguns aspectos da
reserva de lei sobre direitos, liberdades e
garantias e a restrição, a suspensão ou a privação
de direitos, liberdades e garantias de qualquer
pessoa apenas nos casos e com as garantias previstas
na Constituição e na lei;
d)
São recentes aquisições, nuns casos, ou
explicitações e desenvolvimentos, noutros casos, do
Estado de Direito, a aplicação directa dos preceitos
respeitantes aos direitos fundamentais, com
vinculação das entidades públicas e privadas, o
carácter restritivo das restrições dos direitos,
liberdades e garantias e o serem os direitos,
liberdades e garantias limite material da revisão
constitucional;
e)
São também recentes aquisições — agora do Estado
social de Direito — os princípios sobre direitos
económicos, sociais e culturais;
f) Revelam originalidade
marcantes da Constituição portuguesa a insistência
nas formas de participação ou de democracia
participativa (art. 2.º) e a fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão (art. 283.º).
II
O regime dos direitos sociais
5. A conexão com
tarefas e incumbências do Estado
I — O primeiro
princípio específico do regime dos direitos
económicos, sociais e culturais prende‑se com a
«tarefa fundamental», de carácter geral, do Estado
de promover a efectivação dos direitos económicos,
sociais, culturais e ambientais [art. 9.º, alínea
d), da Constituição] e com as incumbências do
Estado e de outras entidades em especial (arts.
63.º, n.º 2, 64.º, n.º 3, etc.).
Tarefas
equivalem a
fins do Estado manifestados em certo tempo
histórico, em certa situação
político‑constitucional, em certo regime, em certa
Constituição em sentido material. Traduzem um
determinado enlace entre o Estado e a sociedade.
Entre elas e as
funções ou actividades específicas ou típicas do
poder situam‑se as incumbências, que são, ao
mesmo tempo, metas e acções a que o Estado fica
constitucionalmente adstrito — o mais das vezes
através de normas programáticas — em face dos
direitos, interesses ou instituições que lhe cabe
garantir, promover ou tomar efectivos; e as
incumbências traduzem‑se em «imposições
constitucionais» designadamente em «imposições
legiferantes».
II — Aquela tarefa
e essas incumbências aparecem estreitamente
correlacionadas. Com a Constituição económica, desde
logo porque a efectivação dos direitos se faz
«mediante, a transformação e modernização das
estruturas económicas e sociais».
E aqui sobressaem,
em geral, directamente, as incumbências de promover
o aumento do bem‑estar social e económico e da
qualidade de vida das pessoas, em especial, das mais
desfavorecidas, de promover a justiça social,
assegurar a igualdade de oportunidades e de operar
as necessárias correcções das desigualdades na
distribuição da riqueza e do rendimento, de eliminar
progressivamente as diferenças económicas e sociais
entre a cidade e o campo e entre o litoral e o
interior, de promover a correcção das desigualdades
derivadas da insularidade, eliminar os latifúndios e
reordenar o minifúndio [art. 81.º, alíneas a),
b), d), 2.ª parte, e) e h)].
Em particular, no
domínio da política agrícola, avultam os objectivos
de promover a melhoria da situação económica, social
e cultural dos trabalhadores rurais e dos
agricultores, o desenvolvimento do mundo rural, a
racionalização das estruturas fundiárias e o acesso
à propriedade ou à posse da terra e demais meios de
produção directamente utilizados na sua exploração
por parte daqueles que a trabalham, e de criar as
condições necessárias para atingir a igualdade
efectiva dos que trabalham na agricultura com os
demais trabalhadores [art. 93.º, n.º 1, alíneas b)
e c)].
Os planos de
desenvolvimento económico e social têm por
objectivo, promover, além do crescimento económico e
do desenvolvimento harmonioso e integrado de
sectores e regiões, a justa repartição individual e
regional do produto nacional, a coordenação da
política económica com as políticas social,
educativa e cultural, a defesa do mundo rural, a
preservação do equilíbrio ecológico, a defesa do
ambiente e a qualidade de vida do povo português
(art. 90.º).
Mas a Constituição
parece apostar muito mais no sistema fiscal [art.
81.º, alínea d), in fine], destinado
tanto à satisfação das necessidades financeiras do
Estado e de outras entidades públicas como a uma
repartição justa dos rendimentos e da riqueza
(art. 103.º, n.º 1). Por isso, o imposto sobre o
rendimento pessoal visa a diminuição das
desigualdades e será único e progressivo, tendo em
conta as necessidades e os rendimentos do agregado
familiar [arts. 104.º, n.º 1 e 67.º, n.º 2, alínea
f)]; a tributação do consumo visa adaptar a
estrutura do consumo à evolução das necessidades do
desenvolvimento económico e da justiça social,
devendo onerar os consumos de luxo (art. 104.º, n.º
4), e, finalmente, o regime das finanças regionais
assenta nos princípios de efectiva solidariedade
nacional [art. 227.º, n.º 1, alínea j)], e o
das finanças locais visa a justa repartição dos
recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a
necessária correcção de desigualdades entre
autarquias do mesmo grau (art. 238.º, n.º 2).
III — Estas
tarefas e incumbências concretizam‑se:
— Pela garantia
da igualdade de oportunidades entre os cidadãos [arts.
58.º, n.º 2, alínea b), 64.º, n.º 3, alínea
a), 73.º, n.º 2, 74.º, n.º 2, alínea d),
76.º, n.º 1, 78.º, n.º 2, alínea a), e 81.º,
alínea b)];
— Pela previsão
de prestações pecuniárias [arts. 59.º, n.º 1,
alíneas e) e f), 63.º, n.ºs 3 e 4, e Lei n.º 45/2005, sobre
rendimento social de reinserção];
— Pela criação de
instituições, sistemas e serviços [arts. 59.º,
n.º 2, 63.º, n.os 2 e 3, 64.º, n.º 2,
alínea a), e n.º 4, 67.º, n.º 2, alínea b),
74.º, n.º 2, alínea b), e 75.º, n.º 1];
— Pelo
estabelecimento de políticas [arts. 58.º, n.º 1,
alínea a), 64.º, n.º 3, alínea f),
65.º, n.º 3, 66.º, n.º 2, 67.º, n.º 2, alínea h),
70.º, n.º 2, 71.º, n.º 2, 77.º, n.º 2, e 78.º, n.º
2, alínea e)];
— Pela previsão
de condições [arts.
59.º,
n.º 2, alínea c), 64.º, n.º 2, alínea b),
65.º, n.º 1, 71.º, n.º 1];
— Por medidas
legislativas, pura e simplesmente [arts. 59, n.º 3,
63.º, n.º 4, 64.º, n.º 3, alíneas d) e e),
67.º, n.º 2, alíneas e) e f), 68.º,
n.º 4, 69.º, n.º 3].
IV — De qualquer
sorte, nem as tarefas do art. 9.º, nem as
incumbências dos arts. 58.º, 81.º, 227.º, etc.,
envolvem um programa de governo. Este tem de ser
muito mais do que isso — um conjunto de orientações
políticas e medidas a adoptar ou a propor nos
diversos domínios da actividade governamental, como
se lê no art. 188.º; e as tarefas situam‑se a um
nível diferente e superior, necessariamente
normativo. Nem se conceberia em democracia
pluralista (arts. 2.º, 10.º, etc.) que fossem outra
coisa senão princípios ou limites (que, de resto,
não só o Governo como os demais órgãos do Estado,
das regiões autónomas e do poder local têm de
respeitar).
Há um conteúdo
essencial também das tarefas e das incumbências que
o intérprete deve desvendar e o aplicador da
Constituição preservar. Para além disso, é o
contraditório político — marcado por diferentes
opções em contraste e por conjunturas variáveis —
que imprime os ritmos, os graus e os modos de
realização.
6. A participação
dos interessados imediatos e da sociedade civil
I — Para a
Constituição não importa qualquer efectivação dos
direitos económicos, sociais e culturais. Importa,
por coerência com os princípios fundamentais da
liberdade, do pluralismo e da participação [arts.
2.º e 9.º, alíneas b) e c), entre
tantos], uma efectivação não autoritária e não
estatizante, aberta à promoção pelos próprios
interessados e às iniciativas vindas da sociedade
civil.
Não se trata
apenas de criar serviços ou concretizar prestações,
pecuniárias ou outras; trata‑se também, por um lado,
de dar lugar e voz aos destinatários e beneficiários
segundo a Constituição e a lei e, por outro lado, de
admitir formas de complementaridade ou de
concorrência entre as intervenções do Estado e das
demais entidades públicas e as iniciativas das
pessoas e dos grupos existentes na sociedade civil.
Assim se espera optimizar as condições de realização
dos direitos e aprofundar a própria democracia.
II — A
democracia participativa [arts. 2.º, in fine,
e 9.º, alínea c), 2.ª parte] traduz‑se,
por seu turno, na atribuição aos cidadãos enquanto
administrados, de específicos direitos de
participação no exercício de função administrativa
de Estado — maxime quando estejam em causa
direitos económicos, sociais e culturais — e na
relevância de grupos de interesses, de associações e
de instituições em processos de decisão a nível do
Estado.
A Administração
pública será estruturada de modo a aproximar os
serviços das populações e a assegurar a participação
dos interessados na sua gestão efectiva (art. 267.º,
n.º 1), para esse efeito, estabelecendo a lei
adequadas formas de descentralização e
desconcentração, sem prejuízo da necessária eficácia
e unidade de acção e dos poderes de direcção e
superintendência do Governo (art. 267.º, n.º 2). E,
desde logo, administração participada e
descentralizada encontra‑se na saúde (art. 64.º, n.º
4) e no ensino universitário público (art. 76.º); e
administração participada e desconcentrada na
segurança social (art. 63.º, n.º 2), noutras
organizações que visem satisfazer os interesses dos
trabalhadores [art. 56.º, n.º 2, alínea b)] e
no ensino não universitário público (art. 77.º, n.º
1).
Para além disso,
são muito variados os direitos de participação de
grupos nas decisões, inclusive legislativas, que
directamente os afectem, com incidência em direitos
económicos, sociais e culturais: direito das
comissões de trabalhadores de participar na
elaboração da legislação do trabalho e dos planos
económico‑sociais que contemplem o respectivo sector
[art. 54.º, n.º 5, alínea d)]; direito das
associações sindicais de participar na elaboração da
legislação de trabalho e no controlo da execução dos
planos económico‑sociais [art. 56.º, n.º 2, alíneas
a) e c)], bem como de se fazer
representar nos organismos de concertação social
[art. 56.º, n.º 2, alínea d)]; direito das
associações de consumidores e das cooperativas de
consumo de serem ouvidas sobre as questões que digam
respeito à defesa dos consumidores (art. 60.º, n.º
3); direito dos interessados de participação no
planeamento urbanístico (art. 65.º, n.º 4); direito
das associações representativas das famílias de
serem ouvidas na definição da política de família
[art. 67.º, n.º 2, alínea b)]; direito de
participação das associações de professores, de
alunos e de pais, das comunidades e das instituições
de carácter científico na definição da política de
ensino (art. 77.º, n.º 2); direito de participação
das organizações representativas de trabalhadores e
das organizações representativas das actividades
económicas na definição, na execução e no controlo
das principais medidas económicas e sociais [arts.
80.º, alínea g), e 92.º, n.º 2].
III — Em vez do
exclusivismo do Estado no desenvolvimento de
actividades que conduzam à efectivação de direitos
económicos, sociais e culturais, a Constituição
pressupõe ou faz apelo à colaboração de entidades da
sociedade civil, de entidades privadas ou afins.
Assim: realização
de obras sociais nas empresas, com a participação
das comissões de trabalhadores [art. 54.º, n.º 5,
alínea e)]; cooperação das organizações
sociais no desenvolvimento sistemático de uma sede
de centros de repouso e de férias [art. 59.º, n.º 2,
alínea d)]; apoio às instituições
particulares de solidariedade social (art. 63.º, n.º
3); articulação das formas empresariais e privadas
de medicina com o serviço nacional de saúde
[art. 64.º, n.º 3, alínea d)]; estímulo à
construção privada e incentivo e apoio às
iniciativas das comunidades locais e das populações
tendentes a resolver os respectivos problemas
habitacionais, fomento da criação de cooperativas de
habitação e da autoconstrução [art. 65.º, n.º 2,
alíneas c) e d)]; envolvimento dos
cidadãos na defesa do ambiente (art. 66.º, n.º 2);
cooperação com os pais na educação dos filhos [art.
67.º, n.º 2, alínea c)]; fomento e
apoio das organizações juvenis (art. 70.º, n.º 3);
apoio às associações de cidadãos portadores de
deficiência (art. 71.º, n.º 3); colaboração dos
órgãos de comunicação social, das associações e
fundações de fins culturais, das colectividades de
cultura e recreio, das associações de defesa do
património cultural, das organizações de moradores e
de outros agentes culturais na democratização da
cultura e no fomento e na criação culturais (arts.
73.º, n.º 3, e 78.º, n.º 2); inserção das escolas
nas comunidades que servem [art. 74.º, n.º 2, alínea
f)]; reconhecimento do ensino particular e
cooperativo (art. 75.º, n.º 2, conexo com o art.
43.º, n.º 4); colaboração das escolas e das
associações e colectividades desportivas na promoção
da cultura física e do desporto (art. 79.º, n.º 2);
estímulo do associativismo dos trabalhadores rurais
e dos agricultores [art. 97.º, n.º 2, alínea d)].
7. A dependência
da realidade constitucional
I — A realização
dos direitos económicos, sociais e culturais não
depende apenas da aplicação das normas
constitucionais. Depende também, e sobretudo, de
condições económico‑financeiras, administrativas,
institucionais e socioculturais (entrando nestas a
sedimentação, na consciência jurídica geral a que,
por vezes, se apela).
Não por acaso o
art. 22.º da Declaração Universal liga os direitos
económicos, sociais e culturais «ao esforço nacional
e à cooperação internacional, de harmonia com a
organização e os recursos de cada povo». E a
doutrina fala no ajustamento do socialmente
desejável ao economicamente possível, na
subordinação da efectividade concreta a uma
reserva do possível, na raridade material do
objecto da pretensão como limite real ou na reserva
financeira do possível.
II — A apreciação
dos factores económicos para uma tomada de decisão
quanto às possibilidades e aos meios de efectivação
dos direitos cabe aos órgãos políticos e
legislativos — não aos da Administração. Não
corresponde a uma simples operação hermenêutica, mas
a um confronto complexo das normas com a realidade
circundante.
De resto, sendo
abundantes as normas e escassos os recursos, dessa
apreciação poderá resultar a conveniência de
estabelecer diferentes tempos, graus e modos de
efectivação dos direitos. Se nem todos os direitos
económicos, sociais e culturais puderem ser tornados
plenamente operativos em certo momento ou para todas
as pessoas, então haverá que determinar com que
prioridade e em que medida o deverão ser. O
contrário redundaria na inutilização dos comandos
constitucionais: querer fazer tudo ao mesmo tempo e
nada conseguir fazer.
Todavia, por regra
(insista‑se), o conteúdo essencial de todos os
direitos deverá sempre ser assegurado, e só o que
estiver para além dele poderá deixar ou não de o ser
em função do juízo que o legislador vier a emitir
sobre a sua maior ou menor relevância dentro do
sistema constitucional e sobre as suas condições de
efectivação.
Vale isto dizer
que também aqui se justifica e se impõe uma tarefa
de harmonização e concordância prática. Não se
tratará, como nos direitos, liberdades e garantias,
de colisões ou conflitos de direitos (ou dos seus
conteúdos potenciais máximos). Tratar‑se‑á, sim, de
uma avaliação simultânea (ou dialéctica) dos
direitos a efectivar e dos recursos, humanos e
materiais, disponíveis e adequados para o efeito.
Nesta apreciação,
os órgãos de decisão política hão‑de gozar, por
certo, de uma relativa margem de liberdade — da
liberdade de conformação a eles inerente e postulada
pelo pluralismo democrático e pela alternância. Não
de uma total liberdade. Não pode ser obliterado o
princípio da proporcionalidade (lato sensu),
aferido por padrões de justiça social, solidariedade
e «igualdade real entre os Portugueses» [art. 9.º,
alínea d), da Constituição]; e aos tribunais
em geral e ao Tribunal Constitucional em especial
competirá descobrir eventuais
inconstitucionalidades.
Mas perante uma alteração
substancial de todos aqueles condicionalismos, não
deve ter‑se por legítima, ou até por necessária, a
própria revogação das normas legais concretizadoras?
Eis o problema habitualmente debatido como problema
do retrocesso ou de proibição do retrocesso social.
8. O não retorno da
concretização
I — Entendo hoje que um
princípio de não retorno de concretização das normas
de direitos económicos, sociais e culturais não tem
autonomia, por estar conexo com o princípio da
tutela da confiança e, sobretudo, ser uma
decorrência do princípio da eficácia jurídica dos
direitos fundamentais. E, por outro lado, deixo de o
ligar à proibição de retrocesso social, pelos
equívocos que a ideia tem gerado.
A despeito disso, mantenho, no
essencial, o que disse em escritos e palestras
anteriores.
II — Assim, quando as normas
legais vêm concretizar normas constitucionais não
exequíveis por si mesmas, não fica apenas cumprido o
dever de legislar como o legislador fica adstrito a
não as suprimir, abrindo ou reabrindo uma omissão.
Exige‑o a própria força normativa da Constituição.
Não se visa com
isso revestir as normas legais concretizadoras da
força jurídica própria das normas constitucionais ou
elevar os direitos derivados a prestações a
garantias institucionais. Essas normas continuam
modificáveis como quaisquer outras normas
ordinárias, sujeitas a controlo da
constitucionalidade e susceptíveis de caducidade em
caso de revisão constitucional (sem prejuízo de
limites materiais). Nem sequer vêm a prevalecer
sobre outras normas ordinárias; como tais, nenhuma
consistência específica adquirem.
O que se pretende é, na vigência
de certas normas constitucionais, impedir a
abrogação pura e simples das normas legais que com
elas formam uma unidade de sistema. O legislador, de
acordo com os critérios provenientes do eleitorado,
pode adoptar outros modos e conteúdos de
concretização. Nada obriga, por exemplo, a que o
serviço nacional de saúde (art. 64.º) ou o sistema
de ensino (arts. 74.º, 75.º e 76.º) tenham de
obedecer sempre aos mesmos paradigmas: podem ser,
ora mais centralizados ora mais descentralizados,
ora mais socializantes ora mais liberalizantes. O
que não pode é o legislador deixar de prever e
organizar tal serviço e tal sistema.
Todavia, porque os direitos
económicos, sociais e culturais estão sujeitos à
reserva do possível, as respectivas normas
concretizadoras, por seu turno, estão sujeitas a uma
reserva geral imanente de interpretação,
traduzida nos seguintes pontos:
1.º) Quando se verifiquem
condições económicas favoráveis, essas normas devem
ser interpretadas e aplicadas de modo a de delas
extrair o máximo de satisfação das necessidades
sociais e a realização de todas as prestações;
2.º) Ao invés, não ocorrendo
tais condições — em especial por causa de recessão
ou de crise financeira — as prestações têm de ser
adequadas ao nível de sustentabilidade existente,
com eventual redução dos seus beneficiários ou dos
seus montantes;
3.º) Situações de extrema
escassez de recursos ou de excepção constitucional
(estado de sítio ou de emergência) podem provocar a
suspensão destas ou daquelas normas, mas elas hão‑de
retomar a sua efectividade, a curto ou a médio
prazo, logo que restabelecida a normalidade da vida
colectiva — o que não se justifica, em caso algum, é
uma leitura a contrario do art. 19.º da Constituição quer
no sentido da impossibilidade de suspensão dos
direitos económicos, sociais e culturais, quer no
sentido de uma eventual suspensão não ter de
observar quaisquer regras ou limites, designadamente
o respeito da reserva de competência legislativa
parlamentar;
4.º) Mesmo nestes casos a
dignidade da pessoa humana postula a garantia de um
conteúdo mínimo dos direitos ou de um mínimo
material de subsistência.
Há uma relação necessária
constante entre a realidade constitucional e o
estádio de efectividade das normas, uma relação
necessária constante entre a capacidade do Estado e
da sociedade e os direitos derivados a prestações,
uma relação necessária constante entre os bens
económicos disponíveis e os bens jurídicos deles
inseparáveis. E, por tudo isso, só é obrigatório
o que seja possível, mas o que é possível torna‑se
obrigatório.
9. A repartição
dos custos em razão das condições económicas dos
titulares
I — Os direitos
económicos, sociais e culturais são, no contexto do
Estado de Direito democrático, direitos universais e
não direitos de classe. Tal não obsta a que, por
ancorados na ideia de uma igualdade real a
construir, as incumbências públicas correlativas da
sua realização consintam alguma adequação em função
das condições concretas dos seus titulares ou
beneficiários.
Direitos de
libertação de necessidade e expressão de
solidariedade organizada, como já disse, são
direitos de todos — porque todos fazem parte de uma
só comunidade e porque todos, conforme as suas
circunstâncias e vicissitudes, podem vir carecer dos
correspondentes bens. Porém, precisamente porque há
desigualdades de facto, as prestações em se
projectam hão‑de tomá‑las em conta, podem ser
diferenciadas e hão‑de ser suportadas desigualmente
de acordo com as capacidades económicas.
É o próprio
princípio de igualdade que o exige assim como,
consoante acabámos de ver — em face de insuperáveis
limites financeiros — a efectividade das normas
constitucionais em relação aos direitos derivados a
prestações, no seu conjunto.
II — Sobre o
problema de saber como devem ser encaradas e
suportadas as despesas inerentes à satisfação das
necessidades colectivas, há três linhas possíveis e
bem demarcadas:
a)
A do Estado mínimo, que tende a atribuir
todos ou quase todos esses encargos aos indivíduos
ou a grupos privados;
b)
A do Estado assistencial, que tende, pelo
contrário, a confiá‑los ao Estado;
c)
E a do Estado social, que aceita
assumir os custos de satisfação de necessidades
básicas, embora não os das demais necessidades a não
ser na medida do indispensável para assegurar aos
que não podem pagar as prestações os mesmos direitos
a que têm acesso aqueles que as podem pagar.
Se, obviamente, a
Constituição rejeita o Estado mínimo, tão pouco se
compadece com o Estado assistencial (em face da soma
de tarefas e incumbências que atribui às entidades
públicas, à luz do desígnio de «uma sociedade mais
solidária» do art. 1.º).
Não se conforma
com este por causa de todo o relevo que confere à
intervenção de grupos, associações e instituições
existentes na sociedade civil na efectivação dos
direitos sociais. Depois, por causa da garantia da
propriedade e da iniciativa económica privada
(reforçada em sucessivas revisões). Enfim, porque,
expressamente, ao considerar o acesso à justiça
alude à «insuficiência de meios económicos» (art.
20.º, n.º 1, atrás considerado) e declara o serviço
nacional de saúde tendencialmente gratuito
«tendo em conta as condições económicas e sociais
dos cidadãos» [art. 64.º, n.º 2, alínea c),
na versão de 1989].
III — Por um lado,
recai sobre o Estado assegurar, por meio de
impostos, a assistência materno‑infantil, os
cuidados primários de saúde, o ensino básico e o
secundário obrigatórios, o apoio no desemprego, a
integração dos deficientes e dos marginalizados, o
auxílio material às vítimas de crimes e de
calamidades naturais, etc. A essencialidade dos bens
ou a universalidade justificam‑no.
Por outro lado,
quanto às restantes necessidades – ou porque não
afectam identicamente todos os cidadãos, ou porque
não revestem para todos o mesmo significado ou
porque dependem de circunstâncias nem sempre
previsíveis – pode justificar‑se uma partilha dos
custos da sua satisfação (até porque se verifica uma
partilha de benefícios). O Estado deve pagar uma
parte, os próprios outra parte e até onde possam
pagar.
Os que podem
pagar, devem pagar.
E é preferível que paguem em parte (até certo limite
do custo real) o serviço ou o bem, directamente, por
meio de taxas, e não indirectamente, mediante
impostos, por três motivos: 1) porque assim tomam
consciência do seu significado económico e social e
das consequências de aproveitarem ou não os
benefícios ou alcançarem ou não os resultados
advenientes; 2) porque, em muitos casos, podem
escolher entre serviços ou bens em alternativa; 3)
porque mais de perto podem controlar a utilização do
seu dinheiro e evitar ou atenuar o peso do aparelho
burocrático.
Diversamente,
os que não podem pagar, não devem pagar (ou
devem receber prestações pecuniárias — bolsas,
pensões, subsídio de desemprego — para poderem
pagar).
Mas a fronteira
entre necessidades básicas e outras necessidades não
é nunca rígida, nem definitiva. Depende dos estágios
de desenvolvimento económico, social e cultural e da
situação do país. E é também o sufrágio universal
que, em cada momento, a traça, através das políticas
públicas adoptadas pelos órgãos nele baseados.
10. A adequação
das formas de tutela
As normas que
consagram direitos económicos, sociais e culturais
são quase todas normas programáticas, conforme se
sabe, e a inconstitucionalidade por omissão (art.
283.º da Constituição) é a sua violação mais
característica.
Não deixa, porém,
de se registar inconstitucionalidade por acção na
hipótese de normas legais contrárias, designadamente
por desvio de poder legislativo e por preterição do
princípio da igualdade – podendo chegar o Tribunal
Constitucional a emitir sentenças aditivas. Assim
como na já apontada hipótese de revogação (não,
logicamente, de declaração de inconstitucionalidade)
de normas legais destinadas a conferir
exequibilidade às normas constitucionais, sem que
elas sejam substituídas por outras com a consequente
necessária sujeição a fiscalização.
Afora isso, os
direitos derivados a prestações seguem o regime
comum de tutela jurisdicional, de tutela através do
Provedor de Justiça e dos restantes meios de
protecção assegurados aos cidadãos. Inclusive,
enquanto com estrutura aproximável da dos direitos,
liberdades e garantias, poderão beneficiar das
providências judiciais prioritárias e céleres
previstas no art. 20.º, n.º 5 da Constituição) e
traduzidas no instituto da intimação dos arts. 109.º
e segs. do
Código de Processo nos
Tribunais Administrativos e
Tributários.