01/11/2012

NOTÍCIA DE MEMBRO DA CJLP - BRASIL
"Opus Dei foi maior influência depois de meu pai"

Por Ives Gandra Martins

Li todos os livros de Josemaria Escrivá, que foi o homem que mais influenciou na minha vida depois do meu pai. Conheço toda a sua obra e tenho uma carta dele. Estive em sua beatificação e canonização, em Roma. Ele recuperou um conceito do Cristianismo dos primeiros séculos, quando os cristãos eram conhecidos pela profissão que exerciam, mesmo no Evangelho. São José era o carpinteiro, o pai de Jesus Cristo, chamado de filho do carpinteiro. Nos 300 anos de perseguição ao Cristianismo, todos eram conhecidos pela profissão. O Cristianismo era viver santamente a vida ordinária, como pai de família e como profissional. Dar o exemplo do modelo.

São Josemaria Escrivá, quando fundou a Opus Dei, em 1928, perguntou: "Por que, depois de o Cristianismo ter se tornado religião oficial, só pode ser cristão perfeito quem viver fora do mundo?" Cristão perfeito é aquele que vive dentro do mundo. Há duas vocações: a vocação do cidadão ordinário, e os cidadãos vocacionados para serem contemplativos. Mas cidadão comum pode ser contemplativo no meio do mundo. E o símbolo da ordem que ele criou [Opus Dei] era uma circunferência com uma cruz dentro, ou seja, a cruz de Cristo encravada no mundo. E houve uma perseguição monumental na própria igreja, porque todos entendiam que o leigo só poderia ser um auxiliar de sacerdotes.

Conheci a obra [Opus Dei] em 1963, e o fundador [Josemaria Escrivá] pessoalmente em 1974, quando ele comemorou 50 anos de sacerdócio. Mandei um livro que eu publiquei e ele me mandou uma carta. Assisto a missa todo dia e sou da obra desde 1971. Comecei a frequentar em 1963.

Aprendi com ele que se há um baú de ressentimentos, não tem que ter fundos. É preciso saber conviver com as pessoas que pensam diferentemente e procurar na vida familiar, profissional e social viver valores éticos. Isso é a santificação do trabalho ordinário.

 

Primeiras letras
Desde cedo, meu pai procurou incutir em todos os quatro filhos o amor à literatura, o amor à cultura, o amor à arte. Éramos obrigados a ler livros de formação moral. No caso, o autor do meu pai era Orison Swet Marden [1850-1924 EUA], que publicava somente livros de natureza moral. E tínhamos que fazer resumo desses livros.

Todos nós começamos a ler romances com 10 ou 11 anos. Li a obra completa de Julio Verne, José de Alencar e Machado de Assis antes de completar 15 anos. Vale dizer que essa influência era grande. Íamos a espetáculos artísticos e todos nós estudávamos piano.

O Julio Verne fazia o papel daqueles filmes de hoje, como Star Trek — tenho 700 episódios, as cinco séries e mais os onze longa metragem. Desde criança, eu usava uma parte da mesada para montar a biblioteca. Meu pai incentivava.

Vinte mil léguas submarinas é um livro fantástico para a época. Todos falam: “Ele pensou no submarino.” Mas e toda a filosofia que há no livro? Por que esse cidadão resolveu fugir do mundo? Porque ele não estava satisfeito com as guerras no mundo. Era uma espécie de cético desiludido por não poder fazer nada. O próprio nome dele — Nemo — diz: não sou ninguém.

Pode-se tirar grandes conclusões desses livros de ficção científica. Por exemplo, quando os EUA invadiram o Iraque e disseram que iriam levar a democracia para o Iraque, foi imediato pensar no primeiro comando de Star Trek, que é respeitar os costumes alheios, por mais que isso seja estranho, e tentar influenciar, mas não impor.

Comecei a fazer poesia aos 13 anos. Era sobre Camões. Individualmente, já publiquei mais de oitenta livros entre Direito e poesia. Em 2010, uma amiga minha fez uma agenda muito bonita e fiz um soneto para cada dia do ano. Isso entrou no Livro de Recordes.

Dos românticos, gosto especialmente da linha indianista do Gonçalves Dias, mas ficava mais nos parnasianos. Martins Fontes, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e, principalmente, Emilio de Menezes. Gosto de sonetos até hoje por causa de Camões, Bocage, Antero De Quental e Olavo Bilac. Foram os quatro grandes sonetistas.

A biblioteca do escritório ocupa dois andares e meio, mais a que eu tenho em casa. São quase 30 mil livros. Mais da metade é dos jurídicos. A minha mulher contratou uma decoradora para arrumá-los na casa sem quebrar a harmonia dos ambientes. Gosto de todas as áreas. Não só de Direito, mas também Filosofia — sou da Academia Brasileira de Filosofia. Também sou da Academia Paulista de História. Gosto também de Sociologia e Política. Na área cultural, artes plásticas, música, literatura, poesia, romances, novelas. E também a crítica literária. Ainda hoje tenho o vício de comprar livros, mas já não tenho mais lugar para guardá-los. Costumo ir à Livraria Cultura.

 

Clássicos do XIX
Eu não evoluo. Quanto mais leio os mais novos, mais gosto dos clássicos. Há muita repetição. Nos clássicos, há conceitos sobre a existência de Deus. Por exemplo, em Os Irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski. Hoje em dia, há um lixo de novela, com tudo de ruim para a sociedade. Lá em casa, felizmente, as crianças nunca assistiram novela. De repente, os jornais publicam algo sobre o ultimo capítulo da Avenida Brasil e um leitor diz: “Que saudade das novelas da Janete Clair.” Nem sei como eram as novelas da Janete Clair, mas deviam ser bem melhores do que essas.

Dos russos, Leon Tolstoi, Dostoiévski, Boris Pasternak e Soljenitsin. Obras como Doutor Jivago, Um dia na vida de Ivan Denisovich, O Pavilhão dos Cancerosos. É uma literatura sólida, mas cansativa em alguns aspectos, porque os russos colocam 200 personagens em uma história. O livro Os Irmãos Karamazov me impressionou muito. Há um pai que não tem escrúpulos de qualquer espécie e um filho que diz o seguinte: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. São conflitos próprios dos verificados em família e em sociedade.

Dos franceses, também tive muita influência. Victor Hugo tem um romance não muito lembrado, mas que me impressionou muito: Noventa e Três. É uma revolução dos monarquistas em plena Revolução Francesa, no ano de 1793, quando eles tentaram derrubar Robespierre. Os Trabalhadores do Mar também é impressionante, especialmente a cena final, com a água subindo. Li diversas novelas do Honoré de Balzac, da Comédia Humana, edição da Pleyade, mas não continuei.

 

Contemporâneos
Do século XX nenhum me impressionou, mas gostava do Menotti Del Pichia. Ele tem um romance ao qual não dão muito valor: A Filha do Inca ou República Três Mil, que é um livro futurista. Da Lygia Fagundes Telles eu gosto muito. Não gosto do Prêmio Nobel português [José Saramago]. Ele ganhou a dimensão que tem por ser um homem de esquerda, mas os dramas que ele apresenta são de natureza íntima, pessoal e dão a impressão mais de uma explosão de recalques. Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo você percebe todo o problema de complexo que ele guarda da família quando criança. Embora reconheça que escreve muito bem. De Jorge Luis Borges eu gosto. Pablo Neruda também, apesar de ele ser um homem de esquerda, muitas vezes deixando a ideologia influenciar a arte.

Literatura inglesa também só dos clássicos. Todas as irmãs Brontë. As três. (Emmilly, Charlotte e Anne). Charles Dickens. Dos Estados Unidos, o William Faulkner. De James Joyce eu não gosto. Ulisses nunca me impressionou. Comecei e não terminei.

Dos poetas brasileiros do XX, gosto muito de Paulo Bonfim, Mário Chamie, Geraldo Vidigal, Péricles Eugênio, Domingos Carvalho da Silva, Cyro Pimentel e Geraldo Pinto Rodrigues. O livro do Geraldo Vidigal que dá início à geração de 45 é muito bom. Chama-se Predestinação. Foi prefaciado pelo Mário de Andrade.

Do Harry Potter os filhos e os netos gostaram. Assisti um ou dois filmes da série com eles, mas não me apaixonei. Pelo Senhor dos Anéis [de J. R. R. Tolkien], sim. O meu filho, o Ives [Gandra Martins Filho], é um especialista em Senhor dos Anéis. Ele leu a obra completa. Eu li O Mundo do Senhor dos Anéis.

Normalmente eu tenho uma leitura obrigatória de pelo menos 15 minutos por dia. Leio como disciplina.

 

Humanidades
No século XX, o maior historiador foi o Arnold J. Toynbee. Apesar de ele não acreditar em Deus, ele se revolta por não poder provar que Deus não existe. Ele tem um livro de história que é um monumento. Fala sobre as 20 civilizações da humanidade até hoje.

Há também um autor moderno interessante, porque faz uma história palatável para qualquer pessoa do povo. É o Geoffrey Blainey.

Em filosofia, Immanuel Kant. Apesar de não ser favorável a todas as suas teorias, a Paz Perpétua foi uma interpretação poderosa, que eu até cito em meus livros, embora utópica. Na Paz Perpétua ele dizia que quando caíssem todas as monarquias não haveria mais guerra no mundo, porque a guerra não é o povo que escolhe, mas os governos. Contudo, a visão dele era contemporânea da Revolução Francesa e ele nunca saiu de sua cidade. Ele acreditava que os ideais da Revolução Francesa nunca mais seriam esquecidos. E realmente os princípios da fraternidade, liberdade e igualdade estão aí até hoje.

Sempre gostei de filosofia. Mas parto do seguinte princípio: Depois dos três gregos — Sócrates, Platão e Aristóteles—, todo o resto é periferia filosófica. Os Diálogos de Platão, por exemplo — Eutífron, Apologia, Crito e Fedon — são uma lição de Direito até hoje. Em Eutifron, Sócrates diz o seguinte a um amigo que tinha medo de ser submetido às leis da cidade: “Você tem de respeitar as leis da sua cidade, você tem de acreditar nos julgadores”. É toda uma justificativa para fazer com que as leis da sociedade sejam respeitadas em Atenas. Ele é condenado na Apologia, e faz uma defesa monumental. Em Crito, os julgadores dele sabiam que estavam sendo injustos. Eram inimigos que queriam apenas afastá-lo. E Crito, que era o discípulo dele, tenta convencê-lo a fugir. E Sócrates diz: “Por que vou fugir? Sempre defendi que nós tínhamos de respeitar o Direito, as leis. Minha condenação foi injusta, mas o que vão dizer de mim depois do que eu sempre ensinei? Que eu não tive coragem de enfrentar as condenações das leis da minha cidade? O que dirão os meus discípulos? Sócrates, depois de velho, renegou tudo o que ensinou? Eu vou cumprir a lei até o final, não vou fugir.” E ele termina o diálogo dizendo: “Deixe-me, que agora quero enfrentar a morte com o silêncio próprio”. No último, Fedon, ele está reunido com os discípulos lamentando a condenação à morte e faz considerações sobre o que ela representa como libertação. São quatro diálogos sobre o que é o ser humano, o que é viver em sociedade, o que é respeitar as instituições, o que é injustiça de julgamentos e como um homem deve enfrentar o seu destino e a morte. O que se escreve depois sobre isso é periferia.

 

Letras jurídicas
No quinto ano da faculdade de Direito deixei de trabalhar com meu pai em perfumaria e comecei a advogar. Eu fui aluno do Miguel Reale, o maior jurista do Brasil, o maior filósofo. Fundamos juntos a Academia Internacional de Direito em Economia. Eu o sucedi na Academia Brasileira de Filosofia. Ele votou em mim para entrar na Academia Paulista de Letras e esteve também na minha entrada na Academia Paulista de História. E fizemos alguns livros juntos. Foi, de longe, o professor que mais me influenciou na vida.

Comecei na área tributária em 1958, quando houve uma mudança na Lei do Imposto de Consumo, com a introdução do princípio da não cumulatividade. Todo mundo tinha que começar da estaca zero. Os nomes que me impressionaram foram Rubens Gomes de Souza, Gilberto de Ulhoa Canto e Carlos da Rocha Guimarães, os autores do Código Tributário Nacional. Além deles, Alcides Jorge Costa.

Fui da Academia de Letras da Faculdade de Direito. Ocupei a cadeira Julio de Mesquita. Há 25 lugares, 25 patronos, e, à época, tínhamos pessoas como Mário Chamie e Lygia Fagundes Telles.

 

Música
Toquei piano, mas hoje em dia não mais. Tenho artrite. Do século XIX, gosto de quase todos os compositores, mas começo em Bach no século XVIII. Eu gosto de Vivaldi, eu gosto dos anteriores, como Pergolese. Mas a genialidade do Bach, principalmente os Concertos de Brandenburgo. Mas não gosto muito de coral. Por exemplo, óperas. Ópera alemã eu gosto, mas a ópera Italiana é muito demorada como teatro. À época, a sociedade burguesa tinha tempo de ficar 4 horas assistindo.

Já a composição orquestral do Wagner é incomensuravelmente mais completa do que as árias dos Italianos. Todo ano há o Festival de Beyreuth, que é a cidade em que foi construído o teatro para a obra de Wagner. Gosto muito mais de música orquestral. Solo também. Beethoven, Brahms, Bruckner e Mahler. Gosto de concertos para violino, especialmente.

 

Musa inspiradora
Quando criança, estudei no Bandeirantes durante 8 anos. Fui estudar perfumaria na França com 18 anos. Meu pai trabalhava nisso. Fiquei um ano. Voltei, prestei o vestibular e entrei na faculdade. Foi quando conheci a Ruth, minha mulher.

Quando eu cheguei da França, o professor do cursinho fez uma apresentação: “Meninas, tomem cuidado com ele. Ele vem da França”. E minha mulher comentou com uma amiga: “Que sujeito pedante. É o tipo de rapaz que eu nunca namoraria na vida”. Fiz três meses de cursinho e eram poucas as meninas que estudavam Direito. Tentei me aproximar dela durante uns dois meses e não consegui. Até que no dia 14 de dezembro de 1953 eu recebi um prêmio, entregue pelo Guilherme de Almeida. Era como um prêmio Esso para um trabalho sobre a história de São Paulo. Eu tinha escrito como estudante do Bandeirantes, mas o trabalho foi desclassificado porque eu era do colegial e o prêmio era para universitários. Também escrevi um número de páginas maior. Mesmo assim, eles me deram o segundo prêmio.

Falei ao Guilherme que fazia poesias então ele pediu-me para aparecer em seu escritório. No dia seguinte eu estava lá. Levei os poemas e ele gostou. Nisso tive uma idéia e disse pra ele: “Olha, doutor Guilherme, se o senhor concordar, eu gostaria de trazer aqui alguns colegas que, como eu, estão se preparando para o vestibular, porque o senhor é tema de literatura.” Ele disse que não tinha nenhum problema. Na classe, avisei os colegas, chamei uma amiga da Ruth e sugeri a ela convidar a Ruth. Foi a primeira vez que consegui conversar com ela, na Rua São Bento, do cursinho, até a Barão de Itapetininga, onde era o escritório do Guilherme. A conversa quebrou o gelo e, no dia 24 de dezembro, dez dias depois de eu ter recebido o prêmio, estávamos namorando e estamos juntos até hoje. São 59 anos de namoro. Praticamente todos os meus poemas são para ela.

 

*Depoimento concedido a Alessandro Cristo e Elton Bezerra.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 1º de novembro de 2012
Divulgação: CIC – CENTRO INTERNACIONAL DE CULTURA