O
Princípio da Eficácia Jurídica
dos
Direitos Fundamentais
por Jorge Miranda
1. A aplicação imediata
I — Os
preceitos constitucionais respeitantes aos direitos,
liberdades e garantias são directamente aplicáveis —
reza a 1.ª parte do art. 18.º da Constituição de 1976. Não
são os únicos preceitos nessas condições, bem pelo
contrário, pois, em Constituição normativa, é
postulado geral que as suas normas são aplicáveis, ou
susceptíveis de ser aplicáveis, directamente nas situações
da vida.
Nisto
consiste aquilo a que pode chamar‑se a revolução copernicana
do Direito público europeu das últimas décadas, ligada
à Constituição alemã de 1949 (art. 1.º, n.º 3) e, entre nós,
à de 1976 ().
Enquanto que antes o exercício dos direitos dependia da sua
regulamentação, hoje as normas constitucionais adstringem os
comportamentos de todos os órgãos e agentes do poder e
conformam as suas relações com os cidadãos sem necessidade
de mediatização legislativa.
Na
expressão bem conhecida de
Herbert Krüger,
não são os direitos fundamentais que agora se movem no
âmbito da lei, mas a lei que deve mover‑se no âmbito dos
direitos fundamentais ().
Ou, na fórmula de Louis Favoreau: no Estado legal, a constitucionalidade era
uma componente de legalidade; no Estado de Direito, a
legalidade é uma componente de constitucionalidade ().
Donde, a estrita sujeição do legislador controlado pela
justiça constitucional, entretanto largamente desenvolvida
(como se sabe), aos meios e aos fins constitucionalmente
estabelecidos.
II — Nem
todas as normas sobre direitos, liberdades e garantias são
imediatamente exequíveis. Não o são, por exemplo, as
relativas às garantias contra a utilização abusiva de
informações pessoais (arts. 26.º, n.º 2 e 35.º), ao direito
de antena (art. 40.º), à objecção de consciência (art. 41.º,
n.º 6), e até ao próprio direito de sufrágio (art. 49.º). E
deles se aproximam as normas sobre direitos económicos,
sociais e culturais (arts. 58.º e segs.), essas quase todas
programáticas.
Mas tanto
as normas preceptivas não exequíveis como as programáticas
são também, em certo sentido, directamente aplicáveis:
a) Enquanto
proíbem a emissão de normas legais contrárias ou a prática
de comportamentos que tendam a impedir a produção de actos
por elas impostos — como, por exemplo, a negação de objecção
de consciência por parte dos médicos em caso de interrupção
voluntária da gravidez (art. 44.º n.º 6), a abolição do
limite máximo da jornada de trabalho [art. 59.º, n.º 1,
alínea d)], a privação de retribuição e de regalias
sociais da mulher trabalhadora durante a dispensa após o
parto (art. 68.º, n.º 3) ou a não gratuitidade do ensino
básico [art. 74.º, n.º 2, alínea a)];
b) Enquanto
só por constarem da Constituição contam para a
interpretação sistemática e, através da analogia, podem
contribuir para a integração de lacunas;
c) Enquanto
fixam critérios para o legislador nos domínios sobre que
versam.
Não há,
pois, que circunscrever o art. 18.º, n.º 1 aos direitos,
liberdades e garantias, nem a violação das normas não
exequíveis por si mesmas a inconstitucionalidade por
omissão.
III —
Naturalmente, se as normas constitucionais forem exequíveis
por si mesma, o sentido específico do art. 18.º, n.º 1,
consistirá na possibilidade imediata de invocação dos
direitos por força da Constituição, ainda que haja falta ou
insuficiência da lei ().
A regulamentação legislativa, se se der, nada acrescentará
de essencial: apenas poderá ser útil (ou, porventura,
necessária), pela certeza e segurança que criar quanto às
condições de exercício dos direitos ou quanto à delimitação
frente a outros direitos.
Pelo
contrário, se as normas não forem exequíveis por si mesmas
os direitos apenas poderão ser tornados plenamente
efectivos com as providências legislativas subsequentes e,
no caso das normas programáticas, observados os
condicionalismos económicos indispensáveis.
O
legislador ordinário regulamenta simplesmente as
normas constitucionais auto‑exequíveis e concretiza
as normas não exequíveis. Mas concretiza estas de modo
diferente, consoante os direitos sejam direitos materiais ou
procedimentais segundo a classificação atrás apresentada.
Por outro
lado, também é diversa a sua liberdade dispositiva consoante
se trate de normas preceptivas e de normas programáticas.
Desde a entrada em vigor das normas preceptivas não
exequíveis ou, se for caso disso, desde o termo do prazo
assinado pela Constituição para feitura da lei, o legislador
encontra-se juridicamente obrigado a publicar normas
legislativas. Já quanto às normas programáticas, poderá ter
de se lhe reconhecer alguma margem de manobra sobre o tempo
e as circunstâncias da legiferação.
IV — Os preceitos constitucionais atinentes a
deveres fundamentais não podem deixar de ser também
directamente aplicáveis, mas havendo que atender à distinção
proposta em capítulo anterior entre deveres de âmbito ou
alcance genérico e deveres de âmbito ou alcance específico.
Pertencem à primeira categoria os deveres dos
pais em relação aos filhos (arts. 36.º, n.ºs 5 e 6) e dos
pais ou dos tutores para com as pessoas com deficiência
(art. 71.º, n.º 2), o dever de defender e promover a saúde
(art. 64.º, n.º 1), o dever de defender o ambiente (art.
66.º, n.º 1), o dever de preservar e defender o património
cultural (art. 78.º, n.º 1), o dever de defesa da Pátria
(art. 276.º, n.º 1). Pertencem à segunda todos os demais. E
ao passo que, para o cumprimento da primeira não é
necessária lei — tudo depende do sentido de responsabilidade
humana, cultural ou cívica das pessoas — dos segundos — até
porque muitos envolvem restrições a direitos — sem lei não
podem ser exigíveis.
Donde, a natureza de normas exequíveis por si
mesmas dos preceitos relativos aos deveres de âmbito
genérico e a de normas não exequíveis dos preceitos
relativos aos deveres de âmbito específico, com a
consequente inconstitucionalidade por omissão (porque os
deveres integram o sistema constitucional tanto quanto os
direitos) na falta dessa lei regulamentadora.
2. A vinculação das entidades públicas
I — Em
correlação com a aplicabilidade imediata dos preceitos
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, a 2.ª
parte do art. 18.º, n.º 1, da Constituição estabelece a quem
se dirigem.
São
destinatárias dessas normas, estão vinculadas aos direitos,
liberdades e garantias, antes de mais, as entidades
públicas ()
seja qual for a sua natureza e seja qual for a sua forma de
actuação, e não apenas o Estado. E são destinatários todos
os órgãos do poder, e não apenas os de um dos poderes do
Estado, o poder legislativo.
A
vinculação dos órgãos do poder pelas normas constitucionais
torna‑se patente em dois planos ou momentos:
a)
Em relação a cada norma constitucional e a cada lei ou outro
acto do Estado que com esse preceito venha a ser confrontado
e que lhe deve ser conforme (art. 3.º, n.º 2, da
Constituição);
b)
Em relação ao conjunto dos preceitos constitucionais e ao
conjunto dos actos jurídico‑públicos, os quais devem tender
a criar condições objectivas capazes de permitir aos
cidadãos usufruírem efectivamente dos seus direitos ()
no âmbito do Estado de Direito democrático.
Em qualquer
caso e em qualquer circunstância, qualquer acto de poder
público deve tomá‑las como fundamento e como referência; e
deve tender a conferir‑lhes (e aos princípios que lhes
subjazem) a máxima eficácia possível.
II — Os
órgãos da função política stricto sensu estão
vinculados, na prática de actos dessa função, ao respeito
dos direitos, liberdades e garantias.
Assim, por
exemplo, o Governo não deve negociar, a Assembleia da
República não deve aprovar e o Presidente da República não
deve ratificar um tratado que os ofenda — que ofenda os
«direitos do homem» (art. 7.º, n.º 1); e, na falta de leis
que confiram exequibilidade a normas constitucionais, deve o
Presidente da República requerer ao Tribunal Constitucional
a verificação da inconstitucionalidade por omissão. Nem o
princípio é infirmado por nem sempre sobre estes
comportamentos incidir uma fiscalização jurídica adequada.
III — A
vinculação do legislador pela Constituição é absoluta no
domínio dos direitos, liberdades e garantias; não admite
excepções; e significa (como é óbvio), por um lado, que a
regulamentação legislativa deve ser conforme com as
correspondentes normas constitucionais ()
e, por outro lado, que as normas constitucionais não
exequíveis por si mesmas devem ser concretizadas nos termos
por elas próprias previstas e, quanto aos direitos
económicos, sociais e culturais, logo que reunidas as
condições de efectivação.
Mesmo
quando a Constituição parece devolver para a lei a
regulamentação de certos direitos ou institutos, como na
objecção de consciência (art. 41.º, n.º 6) ou na protecção
dos representantes eleitos dos trabalhadores (art. 55.º, n.º
6), o legislador não é livre de lhe emprestar qualquer
conteúdo; a norma legislativa (insistimos) tem, na
perspectiva global da Constituição, de possuir um sentido
que seja conforme com o sentido objectivo da norma
constitucional ().
Fórmulas
como «nos termos da lei» (aliás, em número bastante reduzido
na Constituição de 1976) ou equivalentes apenas podem
indiciar que se trata de normas constitucionais não
exequíveis por si mesmas.
IV — A
vinculação dos órgãos legislativos aos direitos fundamentais
não é apenas negativa, não consiste somente em eles não
contrariarem o sentido das normas constitucionais. É também
positiva e não consiste apenas no dever de regulamentar ou
concretizar normas não exequíveis. Abrange ainda o dever de
emitir normas ou outras providências de protecção de deveres
fundamentais.
Trata‑se de
um dever geral, que se reporta aos direitos, liberdades e
garantias e, na sua vertente negativa, igualmente aos
direitos económicos, sociais e culturais. Quanto a alguns
direitos ele consta mesmo de preceitos expressos, a alguns
dos quais já aludimos a propósito do princípio da
proporcionalidade ().
Ainda por
aplicação imediata, agora do princípio da igualdade, podem
ser juridicamente obrigatórias intervenções legislativas
destinadas a suprimir privilégios, discriminações e
diferenciações infundadas ou a concretizar discriminações
positivas.
Na escolha
das providências, o legislador goza de variável margem de
conformação em correspondência com os bens jurídicos
subjacentes aos direitos. O grau máximo de protecção é a
qualificação como crime da acção ou omissão ofensiva desses
bens, observado o princípio da proporcionalidade.
V — Constitui atributo da função legislativa a liberdade de
iniciativa e de conformação, pelo que o legislador de certo
momento pode interpretar, modificar, suspender ou revogar a
lei anterior. Porém, quando estejam em causa direitos
fundamentais impõem‑se limites a essa sua
discricionariedade.
Em primeiro
lugar, não parece poder aceitar‑se, como dissemos atrás, que
um direito fundamental implícito ou um direito fundamental
novo criado por lei anterior possa ser, pura e simplesmente,
extinto por outra lei ordinária – pois, sendo dotado de
fundamentalidade por se inserir no sentido da Constituição
material, ele fique fazendo corpo com os demais direitos
fundamentais. Pelo menos, como, com alguma prudência se
pronunciou o Tribunal Constitucional, teria de haver uma
motivação particularmente exigente para isso suceder ().
Em segundo
lugar, se uma norma atributiva de um direito não é
imediatamente exequível e se, depois, vem a receber
exequibilidade através de uma norma legal, tão pouco esta
poderá ser abrogada a ponto de se voltar à situação de
inconstitucionalidade por omissão (art. 283.º), porque assim
o reclamava a realização da Constituição e o próprio
funcionamento das instituições.
Pense‑se
só, a título de exemplo, no que seria o legislador revogar,
sem mais, uma da leis eleitorais, tornando inviável a
renovação, nos prazos constitucionais ou por virtude de
dissolução, do órgão correspondente e até o exercício de
poderes de outros órgãos ().
Ou revogar, sem a substituir por outra, a legislação sobre
habeas corpus ou sobre objecção de consciência. Ou a
legislação de segurança social. Seriam tão pesadas as
consequências em qualquer dos casos que quase parecem
inverosímeis as hipóteses.
Quanto a
normas de direitos, liberdades e garantias, não se vê grande
dificuldade em acolher este entendimento. O problema está
todo nas normas de direitos sociais, por causa da sua
dependência de factores económicos, financeiros e
administrativos e de, por isso, ser à volta deles e da sua
concretização que se joga o contraditório político.
VI — A
subordinação da Administração à Constituição é afirmada como
princípio geral no art. 266.º, n.º 2, e tem um afloramento
de grande importância, no que tange aos direitos, liberdades
e garantias, no art. 272.º, n.º 3 (o qual sublinha que a
prevenção dos crimes contra a segurança do Estado só pode
fazer‑se com respeito pelos direitos, liberdades e
garantias).
Na
Administração compreendem‑se todas as suas modalidades,
incluindo a Administração sob formas jurídico‑privadas (como
a de sociedade de capitais total ou maioritariamente
públicos), e também qualquer pessoa colectiva de direito
privado quando nas suas relações com os particulares
disponha de poderes públicos, de faculdades de imperium ().
E actividade vinculada é não só a actividade de Direito
público (regulamentos, instruções, actos, contratos
administrativos) mas igualmente a actividade de Direito
privado das pessoas colectivas públicas (ainda que,
eventualmente, com graduações e especialidades).
Em geral, a
subordinação à Constituição significa o dever de conformação
da actividade administrativa (tenha conteúdo normativo ou
não) pelas normas constitucionais, procurando conferir a
máxima efectividade possível aos direitos fundamentais.
Em
especial, significa que, em caso de inércia do órgão
competente para dar exequibilidade a uma norma sobre
direitos fundamentais, é de admitir que tal omissão seja
superada por outro órgão a título de substituição; e que são
nulos e não anuláveis (portanto, não sanáveis e impugnáveis
a todo o tempo) os actos administrativos ofensivos do
conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias
[art. 133.º, n.º 2, alínea d), do Código do
Procedimento Administrativo] ().
VII — Ora,
se os actos administrativos ofensivos do conteúdo essencial
de direitos, liberdades e garantias são nulos, quer isto
dizer que a Administração pública pode (ou deve) não
os praticar, mesmo se impostos pela lei? Ou seja: podem os
órgãos e agentes administrativos recusar‑se a aplicar normas
legais contrárias a normas constitucionais atributivas de
direitos, liberdades e garantias?
Não se
afigura fácil responder.
Por um
lado, os órgãos e agentes administrativos não se encontram
em plano homólogo ao dos tribunais e o princípio da estrita
legalidade administrativa é um dos esteios básicos do Estado
de Direito. Em contrapartida, a Administração pública
também está subordinada à Constituição (art. 266.º, n.º 2) e
pode haver violações legais de direitos, liberdades e
garantias de tal sorte graves ou manifestas que mal se
compreenderia, em face dos princípios da proporcionalidade
ou da evidência, que os orgãos e agentes administrativos
fossem obrigados a praticar actos destinados à sua execução
para serem objecto, de seguida, de impugnação contenciosa ou
até de resistência por parte dos cidadãos.
Mantemos a
opinião ()
adversa ao reconhecimento aos órgãos da Administração de
qualquer faculdade de fiscalização da constitucionalidade
pelas diferentes características da função jurisdicional e
da função administrativa, pela necessidade de evitar a
concentração de poder no Governo que daí adviria (pois o
Governo é o órgão superior da Administração pública) e por
imperativos de certeza e de segurança jurídica. Aos agentes
administrativos é sempre possível a representação às
entidades hierarquicamente superiores das consequências da
aplicação das leis, mas até a uma possível decisão judicial
de inconstitucionalidade permanecerão vinculados às leis e
às ordens concretas de aplicação dos órgãos colocados em
grau superior da hierarquia; e não poderão então ser
civilmente responsabilizados por violações de direitos,
liberdades e garantias decorrentes dessa aplicação
(a responsabilidade será apenas do Estado, de acordo com os
arts. 22.º e 271.º, n.º 2).
Não adoptamos, no entanto, uma visão
fechada, porque reconhecemos depararem-se hipóteses –
extremas ou muito especiais – em que os órgãos
administrativos hão-de gozar de um poder de recusa de
aplicação.
Além de leis juridicamente inexistentes
será assim, sem dúvida quando estiverem em causa direitos
insusceptíveis de suspensão mesmo em estado de sítio (art.
19.°, n.º 6) e cuja especial valorização constitucional (e
não um poder autónomo de garantia da constitucionalidade) se
vem projectar sobre a actuação dos órgãos e agentes
administrativos; ou quando, sem revisão constitucional, seja
reproduzida norma declarada inconstitucional com força
obrigatória geral (art. 282.°).
Poderá ser assim, quando estejam em causa
leis vetustas, muito anteriores à Constituição e, de todo em
todo, desconformes com a sua ideia de Direito. Pelo
contrário, é, no mínimo duvidoso, que também possa ser assim
quando se trate de leis sobre as quais o Tribunal
Constitucional se haja pronunciado no sentido de
inconstitucionalidade em fiscalização preventiva, mas que,
apesar disso, tenham sido confirmadas e promulgadas (art.
279.°, n.º 2).
VIII — A
vinculação dos tribunais aos preceitos constitucionais sobre
direitos fundamentais traduz‑se:
a)
Positivamente, na interpretação, na integração e na
aplicação de modo a conferir‑lhes a máxima eficácia
possível, dentro do sistema jurídico;
b) Negativamente, na
não aplicação dos preceitos legais que os não respeitem
(art. 204.º), com os instrumentos e técnicas da apreciação
da inconstitucionalidade material mais exigentes.
3. A vinculação das entidades privadas
I — O art.
18.º, n.º 1, estipula ainda a vinculação das entidades
privadas aos preceitos constitucionais respeitantes aos
direitos, liberdades e garantias. E por isso, como já
dissemos, o Provedor de Justiça pode actuar nas relações
entre particulares que impliquem uma “especial relação de
domínio”; e como vai ver‑se em breve, pode também haver
intimação contra particulares para protecção de direitos,
liberdades e garantias.
Não estão
em causa aqui direitos nas relações entre particulares, só
elevados a direitos fundamentais por virtude da sua conexão
com certos princípios constitucionais ou por virtude dos
cumulativos deveres de protecção dos correspondentes bens
jurídicos pelo Estado — assim, os direitos dos cônjuges
(art. 36.º, n.os 3 e 4), o direito de intervenção
editorial dos jornalistas [art. 38.º, n.º 2, alínea a),
2.ª parte] (),
o direito de tendência sindical [art. 55.º, n.º 2,
alínea e)], a actividade sindical na empresa [art.
55.º, n.º 2, alínea d)] ()
e as garantias de protecção das crianças na família e nas
demais instituições (art. 69.º, n.º 2).
Nem, ao
invés, direitos que apenas podem ter por destinatário
passivo o Estado, como as garantias de Direito e de processo
penal, os direitos políticos e alguns dos direitos sociais.
Trata‑se,
sim, de direitos que incidem ou podem incidir tanto nas
relações com entidades públicas quanto nas relações com
particulares — como os que resultam da reserva da intimidade
da vida privada (art. 26.º, n.º 2), da proibição de acesso
de terceiros aos ficheiros de dados pessoais (art. 35.º, n.º
4), o direito de rectificação, de resposta e a indemnização
por danos sofridos através da imprensa (art. 37.º, n.º 4),
os direitos de autor (art. 42.º, n.º 2, in fine), a
liberdade negativa de associação (art. 46.º, n.º 3), o
direito de acção colectiva para defesa de interesses difusos
(art. 52.º, n.º 3), a segurança no emprego (art. 53.º), o
controlo de gestão [art. 54.º, n.º 5, alínea b)], a
independência das associações sindicais (art. 55.º, n.º 4),
a protecção dos representantes dos trabalhadores (art. 55.º,
n.º 6), a proibição do lock‑out (art. 57.º, n.º 4) ou
os direitos dos consumidores à informação, à protecção da
saúde e dos seus interesses económicos e à reparação de
danos (art. 60.º, n.º 1).
E trata‑se
depois de direitos que, tendo surgido historicamente frente
ao Estado, podem adquirir também sentido frente a
particulares — como a presunção de inocência dos arguidos
(art. 32.º, n.º 2), o sigilo de correspondência (art. 34.º,
n.º 1), a liberdade de consciência e de religião (art.
41.º), a liberdade de deslocação (art. 44.º), a liberdade de
reunião (art. 45.º), a liberdade de associação (art. 46.º),
a liberdade de profissão (art. 47.º, n.º 1) ou a liberdade
sindical (art. 55.º).
É sobretudo
a propósito destes últimos direitos que se fala em eficácia
horizontal, ou perante terceiros, dos direitos,
liberdades e garantias (Drittwirkung) — em
contraposição à mera eficácia externa, equivalente ao
dever universal de respeito que recai sobre quaisquer
cidadãos em face dos direitos dos outros. Enquanto que, na
eficácia externa, tudo está em não interferir no exercício
dos direitos de outros, na eficácia horizontal há relações
bilaterais sobre as quais se projectam ou em que podem ser
afectados especificamente certos e determinados direitos,
liberdades e garantias.
II — Uma
fórmula como a do nosso art. 18.º, n.º 1 (),
quase não tem paralelo noutras Constituições. Nem por isso,
na ausência de disposição constitucional expressa, a
jurisprudência, a prática legislativa e a doutrina têm
deixado, nas últimas décadas, por toda a parte, de colocar o
problema — subjacente ao estádio actual de intercomunicação
de Estado e sociedade, de alargamento da Constituição
material e de realçar da dimensão objectiva dos direitos
fundamentais.
Não é,
porém, um problema de equacionamento simples, por vários
motivos:
1.º) Porque
se apresenta irredutível a diferença de posições e de modos
de agir das entidades públicas e das entidades privadas;
2.º) Porque
é um dado da experiência, não é mero conceitualismo,
recortar os direitos fundamentais como direitos
essencialmente colocados frente ao Estado;
3.º) Porque
a eficácia horizontal dos direitos, liberdades e garantias
se repercute necessariamente no terreno do Direito privado e
exige uma análise interdisciplinar;
4.º) Porque, se o princípio da autonomia privada,
fundamental nos sistemas jurídicos romanísticos (e também
nos de common law), pode e deve ser limitado, em
contrapartida — sob pena de ser vulnerado no seu conteúdo
essencial — vai condicionar em larga medida a aplicação dos
direitos, liberdades e garantias nas relações privadas;
5.º)
Porque, do mesmo passo, se importa garantir os direitos
fundamentais das pessoas no interior de instituições e
grupos privados, também importa preservar a autonomia dessas
instituições perante o Estado.
Afora uma
atitude (dificilmente sustentável) a favor da irrelevância
dos direitos, liberdades e garantias, são duas as teses de
carácter geral que se deparam: a da relevância mediata e a
da relevância imediata. Para a primeira, somente através da
sua modelação ou transformação em normas de Direito civil
podem os preceitos constitucionais sobre direitos,
liberdades e garantias obrigar as pessoas nas suas vidas
jurídico‑privadas e só através da sua irradiação sobre os
conceitos indeterminados ou sobre as cláusulas gerais
privatísticas podem os correspondentes conceitos tornar‑se
operativos. Para a segunda tese, não há que fazer cisões na
ordem jurídica e tudo se reconduz à dialéctica
liberdade‑poder: se, em vez de ser poder político, for um
poder de grupo ou de uma entidade privada dominante, os
direitos, liberdades e garantias deverão valer de modo
absoluto, enquanto tais; nos restantes casos, poderá haver
graus de vinculatividade.
Pressentem‑se as marcas de diversas preocupações e de
diferentes premissas de fundo. Contudo, em algumas
variantes significativas mostram‑se atenuadas as
divergências e os resultados práticos, por imperativo até de
senso comum, acabam por se aproximar.
III — Não
se compreenderiam uma sociedade e uma ordem jurídica em que
o respeito da dignidade e da autonomia da pessoa fosse
procurado apenas nas relações com o Estado e deixasse de o
ser nas relações das pessoas entre si ().
Não basta, pois, limitar o poder político – o imperium;
é preciso também limitar o dominium e assegurar o
respeito das liberdades de cada pessoa pelas demais
pessoas. Tudo está em saber de que maneira.
Embora com
consciência de que muito falta aqui ainda aprofundar,
julgamos possível e conveniente fixar os seguintes pontos:
a)
Como pressupostos — o reconhecimento da qualidade de
valores superiores da ordem jurídica dos direitos,
liberdades e garantias, mas igualmente, o reconhecimento da
necessidade de um mínimo de separação entre Estado e
sociedade civil, bem como da distinção entre Direito público
e Direito privado e entre inconstitucionalidade da lei e
invalidade do contrato ().
Donde, não tanto uma adequação axiológica quanto uma
adequação funcional ()
na vinculação das entidades privadas; mutatis mutandis
é o mesmo que se passa quando o art. 205.º, n.º 2, declara
as decisões dos tribunais obrigatórias quer para as
entidades públicas quer para as privadas;
b)
Como objectivos — o equilíbrio, a concordância
prática, se possível a realização simultânea dos
direitos, liberdades e garantias, por um lado, e, por
outro, da autonomia privada — esta regulada no Código
Civil (art. 405.º), mas não na Constituição, embora aqui se
induza, como garantia institucional, do direito ao
desenvolvimento da personalidade e do direito à capacidade
civil (art. 26.º, n.º 1), da liberdade de trabalho e
profissão (art. 47.º, n.º 1), da contratação colectiva (art.
56.º, n.º 4), da iniciativa privada (art. 61.º, n.º 1) e da
propriedade e da sua transmissão em vida ou por morte (art.
62.º) — e da autonomia associativa ()
— inerente aos princípios pluralistas da Constituição e
imposta pelo art. 46.º, n.º 2;
c) Como linhas de
solução propostas:
1.º) A consideração de três
tipos de situações e relações (na linha do que dissemos
acerca do princípio da igualdade) — relações, dentro de
grupos, associações, pessoas colectivas, entre os seus
membros e os poderes instituídos; relações entre
particulares e poderes sociais de facto; relações entre
particulares em igualdade;
2.º) A aplicação das
normas sobre direitos, liberdades e garantias por identidade
de razão nas duas primeiras hipóteses ()
e por analogia na terceira;
3.º) A preservação sempre dos
direitos insusceptíveis de suspensão em estado de sítio
(art. 19.º, n.º 6), bem como do conteúdo essencial dos
restantes direitos (art. 18.º, n.º 3);
4.º) O tratamento diferenciado
(quase tópico) dos vários direitos e situações;
5.º) A consideração dos
problemas em concreto como problemas de escolha entre vários
bens pelos destinatários (activos e passivos) das normas e
como problemas de colisão de direitos;
6.º) A utilização, para
efeitos de protecção judicial, dos meios específicos da
justiça civil ().
V — Em plano diferente, mas indiscutível,
fica a eficácia de certos direitos económicos, sociais e
culturais em relação aos particulares, na medida em que os
adstringem a determinadas prestações ou a certos encargos ou
em que comprimem direitos.
Assim, as entidades patronais estão
adstritas a organizar o trabalho em condições socialmente
dignificantes e de higiene, segurança e saúde [art. 59.º,
n.º 1, alíneas b) e c)]; o direito à habitação
provoca uma diminuição do conteúdo possível do direito de
propriedade de casas para habitação; o direito à segurança
social prevalece sobre certos direitos patrimoniais ()
e fundamenta contribuições obrigatórias das entidades
patronais em favor dos trabalhadores assalariados; e da
Constituição decorrem períodos de dispensa de trabalho a que
têm direito os dirigentes sindicais, os trabalhadores
estudantes, as mães e os pais [arts. 55.º, n.º 6, 59.º, n.º
2, alínea b), e 68.º, n.º 2] ().
4. A limitação recíproca
dos direitos
I — Porque as pessoas
convivem na mesma comunidade e ainda porque os direitos
pertencem ao mesmo sistema, os direitos de cada pessoa têm
por limites os direitos das demais pessoas (de novo, art.
29.º, n.º 2 da Declaração Universal) e o conteúdo (ou o
conteúdo potencial) de cada direito tem por fronteiras o
conteúdo de outros direitos.
O dever de respeito entre as pessoas
não impede, todavia, em concreto, colisões de direitos e
também elas surgem no domínio dos direitos fundamentais:
entre a reserva da intimidade da vida privada (art. 26.º,
n.º 1) ou a presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2) e a
liberdade de informação (art. 37.º); entre os direitos de
autor (art. 42.º, n.º 2) e o direito à fruição cultural
(art. 78.º); entre o controlo de gestão nas empresas [art.
54.º, n.º 5, alínea b)] e o direito de iniciativa
económica (art. 61.º); entre o direito de propriedade (art.
62.º) e o direito à habitação (art. 64.º) () ().
Estes são conflitos de direitos
diferentes de pessoas diferentes. Mas, a seu
lado, pode haver conflitos entre direitos iguais de
diferentes pessoas (donde, a proibição de contra
manifestações como garantias de direito de manifestação) ().
Ou a necessidade de tratamento adequado das várias
candidaturas (v.g. repartição de espaço jornalístico
e de salas de espectáculos em períodos eleitorais).
Assim como pode haver conflitos de
direitos da mesma pessoa: é o caso típico do conflito
entre o direito à vida (art. 24.º) e o direito à protecção
da saúde (art. 64.º), por um lado e a objecção de
consciência, por motivos religiosos (art. 41.º, n.º 6), por
outro lado.
II — Não há soluções a priori.
Apenas cabe indicar três postulados: 1.º) discernir nas
normas jusfundamentais as que têm carácter de princípios e
as que têm carácter de regras; 2.º) aproveitar todas as
virtualidades da harmonização, objectiva e subjectiva, de
princípios; 3.º) atender às circunstâncias do caso para aí
proceder à concordância prática ou à ponderação.
Não se encontra na Constituição (nem na
Declaração Universal) nenhuma directriz de solução. Mas as
directrizes provenientes do Código Civil de 1867 (arts. 14.º
e 15.º) e do Código Civil de 1966 (art. 335.º) podem ser
úteis.
Em certos casos, será irrecusável atender à
diferença de bens jurídicos protegidos, subjacentes aos
direitos. A hierarquia valorativa constitucional não poderá
ser obliterada, se bem que não funcione de per si ou
automaticamente, como já dissemos.
5. A preservação do
conteúdo essencial
I — Conteúdo de um
direito vem a ser a faculdade ou o feixe de faculdades
destinados à obtenção e à fruição do bem jurídico que lhe
subjaz. Visto a partir do Estado, equivale ao âmbito da
protecção conferida pelas normas e pelos órgãos de
realização do Direito.
Pela natureza das coisas, esse
conteúdo configura‑se em razão do bem jurídico e este,
porque o sistema de direitos fundamentais assenta na
dignidade da pessoa humana, só se concebe ao seu serviço. O
direito à vida não compreende o direito ao suicídio, o
direito à integridade física o direito à automutilação, o
direito de casar o direito de celebrar casamento com pessoa
do mesmo sexo, a liberdade religiosa o direito a fazer
sacrifícios humanos, o direito de escolha de profissão o
direito ao lenocínio, etc. Eis (como se lhes queira chamar)
limites imanentes, intrínsecos, de conteúdo ou de objecto ().
Definido assim o direito, não resulta
daí logo o seu conteúdo real ou actual, o conteúdo
que assume na vida prática. Situado no contexto de ordem
constitucional, ele sofre o influxo dos valores que esta
prossegue, dos deveres que consagra e dos princípios
institucionais que objectiva ().
E desses deveres e desses princípios podem derivar
restrições, ou sejam, amputações ou compressões de
faculdades em maior ou menor escala, embora sempre –
prescreve o art. 18.º, n.º 3 – sem atingirem aquelas que
compõem o conteúdo essencial ().
II — A restrição não se confunde com outras
realidades normativas como o limite ou limite de exercício,
o dever, a auto‑ruptura e, noutro plano, com a
regulamentação, a concretização e a suspensão de direitos.
A restrição tem que ver com o direito em
si, com a sua extensão objectiva; o limite ao
exercício de direitos contende com a sua manifestação, com o
modo de se exteriorizar através da prática do seu titular.
A restrição afecta certo direito (em geral ou quanto a certa
categoria de pessoas ou situações), envolvendo a sua
compressão ou, doutro prisma, a amputação de faculdades que
a priori estariam nele compreendidas; o limite
reporta‑se a quaisquer direitos. A restrição funda‑se em
razões específicas; o limite decorre de razões ou condições
de carácter geral, válidas para quaisquer direitos (a moral,
a ordem pública e o bem‑estar numa sociedade democrática,
para recordar, de novo, o art. 29.º da Declaração
Universal).
O limite pode ser absoluto
(vedação de certo fim ou de certo modo de exercício de um
direito) ou relativo. Neste caso, desemboca em
condicionamento, ou seja, num requisito de natureza
cautelar de que se faz depender o exercício de algum
direito, como a prescrição de um prazo (para o seu
exercício), ou de participação prévia (v. g., para
realização de manifestações), ou de registo (para o
reconhecimento da personalidade jurídica de associação), ou
de conjugação com outros cidadãos num número mínimo (para a
constituição de partidos), ou de posse de documentos (por
exemplo, passaportes), ou de autorização vinculada ()
(para a criação de escolas particulares e cooperativas). O
condicionamento não reduz o âmbito do direito, apenas
implica, uma vezes, uma disciplina ou uma limitação da
margem de liberdade do seu exercício, outras vezes um ónus ().
A restrição distingue‑se do dever,
pela sua completa falta de autonomia, por se situar no
plano do conteúdo de certo direito e só fazer sentido por
referência a ele. O dever é uma situação jurídica passiva,
traduzido na imposição a alguém de agir ou não agir de
alguma maneira; já a restrição se prende ao perfil
específico de alguns direitos, ao modo como se apresentam na
vida jurídica e à protecção que, assim, vêm a receber. O
dever (quando não fundamental) pode não constar da
Constituição; a restrição tem sempre de nela se estear,
imediata ou mediatamente ().
Um quid é a auto‑ruptura material
ou edição de preceito constitucional geral e concreto
ou, em certos casos, individual e concreto; outro a
restrição, necessariamente contida em norma geral e
abstracta. A auto‑ruptura é uma excepção a um princípio ou
uma regra constitucional geral (assim, a proibição de
organizações de ideologia fascista do art. 46.º, n.º 4, e a
incriminação retroactiva dos agentes e responsáveis da
PIDE‑DGS do já caducado art. 294.º); a restrição uma
decorrência de certo princípio em face de outro. E, no
domínio dos direitos, liberdades e garantias, a auto‑ruptura
ou quebra da Constituição apenas pode ocorrer, como se sabe,
por força de normas constitucionais originárias, nunca por
força de revisão constitucional.
Uma coisa é a regulamentação ou
preenchimento ou desenvolvimento legislativo (ou,
porventura, convencional) do conteúdo do direito; outra
coisa a restrição ou diminuição ou compressão desse
conteúdo. Uma coisa é regulamentar, por (como já se disse)
razões de certeza jurídica, de clarificação ou de
delimitação de direitos; outra coisa é restringir com vista
a certos e determinados objectivos constitucionais. A
regulamentação pode conduzir à ampliação dos direitos na
base da cláusula aberta do art. 16.º, n.º 1; nunca pode
reverter, sob pena de desvio de poder legislativo, em
restrição.
Muito menos se confunde a restrição com a
concretização legislativa, destinada a conferir,
total ou parcialmente, exequibilidade a normas
constitucionais não exequíveis por si mesmas. Ao contrário
da restrição, esta prende‑se, repetimos, à liberdade, maior
ou menor, de conformação do legislador (sempre exigida,
quando se trate de normas programáticas, pela abertura da
Constituição a diferentes alternativas políticas, em regime
democrático pluralista).
Finalmente, são diversos os conceitos de
restrição e de suspensão. A restrição atinge
um direito a título permanente, e sempre apenas
parcialmente; a suspensão, provocada por situações de
necessidade, atinge um direito a título transitório,
equivale a um eclipse. A restrição apaga uma parcela
potencial do direito; a suspensão paralisa ou impede,
durante algum tempo, o seu exercício, no todo ou em parte
(e, só neste caso acaba, porventura, por corresponder a uma
restrição).
III — A Constituição liga a salvaguarda do
conteúdo essencial às restrições de direitos, liberdades e
garantias. No entanto, a sua problemática não se esgota aí.
Abrange as limitações recíprocas, em certa medida, a
suspensão em estado de sítio ou de emergência, bem como os
limites materiais de revisão constitucional.
Nem ela se esgota nos direitos, liberdades
e garantias. Há, analogamente, um conteúdo essencial dos
direitos económicos, sociais e culturais. Uma leitura a
contrario sensu do art. 18.º, n.º 3 seria, de todo,
inadmissível.
As normas constitucionais devem ser tomadas
no sentido da máxima capacidade sistemática de
regulamentação e concretização.
IV — Quanto a alguns direitos, a
Constituição recorta logo, por fórmula negativa, de
garantia, qual deva ser o seu conteúdo essencial, ou algo de
a ele inerente; assim, a proibição de tratos ou penas
cruéis, desumanas ou degradantes, quanto ao direito à
integridade pessoal (art. 25.º), a proibição da censura
quanto à liberdade de expressão e informação (art. 37.º, n.º
2) ou a não sujeição das associações a autorização (art.
46.º) ().
Todavia, em geral, é preciso levar a cabo
um trabalho aparentemente dos mais árduos e melindrosos para
estabelecer o que seja o conteúdo essencial dos
preceitos constitucionais (ou dos direitos neles
consignados).
Torna‑se claro que, para funcionar como
barreira última e efectiva contra o abuso do poder, como
barreira que o legislador, seja qual for o interesse
(permanente ou conjuntural) que prossiga, não deve romper, o
conteúdo essencial tem de ser entendido como um limite
absoluto correspondente à finalidade ou ao valor que
justifica o direito. As teses relativistas são de rejeitar,
porque confundem proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2) e
conteúdo essencial (art. 18.º, n.º 3).
Como quer que se pense, para além de
discussões teóricas, o que importará, acima de tudo, será ir
fixando o percurso dos direitos, através do conhecimento da
sua formação histórica, do cotejo comparativo, da
jurisprudência, do desenvolvimento de cultura cívica e
constitucional, do ressaltar de novos direitos implícitos ()
da protecção penal; e, depois, subir até a um sentido
rigoroso na arquitectura da Constituição.
Pode, acaso, a lei não retirar toda a
utilidade ao direito e, não obstante, afectar o seu conteúdo
essencial, por subverter ou inverter o bem jurídico
protegido. O conteúdo essencial tem de se radicar na
Constituição e não na lei — porque (mais uma vez) é a lei
que deve ser interpretada de acordo com a Constituição, e
não a Constituição de acordo com a lei ().
O conteúdo real de um direito em concreto
pode ser mais amplo que o conteúdo essencial, nunca pode ser
menor.
V — Quanto aos direitos sociais,
Vieira de Andrade
entende que o seu conteúdo é determinado pela Constituição
apenas num mínimo e que não pode ser‑lhe imputado um
conteúdo normativo mais vasto pela via de uma interpretação
judicial “actualista”: esse conteúdo depende de opções
próprias do legislador ordinário, ao qual se deve
entender que foi delegado, por razões técnicas ou políticas,
um poder de conformação autónoma, nessa medida
sujeito a um controlo atenuado pelos tribunais ().
Parece‑nos residual e redutor este
entendimento. Pelo contrário, o máximo efeito útil a
procurar também para as normas de direitos económicos,
sociais e culturais aponta para que se vá tão longe quanto
possível na determinação do seu conteúdo, mesmo se não se
chega (ou não se deva chegar, para não se impedir a
alternância democrática) à determinabilidade dominante nas
normas de direitos, liberdades e garantias ().
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