O Princípio da Eficácia Jurídica

dos Direitos Fundamentais

por Jorge Miranda *

  

1.  A aplicação imediata

I — Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis — reza a 1.ª parte do art. 18.º da Constituição de 1976.  Não são os únicos preceitos nessas condições, bem pelo contrário, pois, em Constituição normativa, é postulado geral que as suas normas são aplicáveis, ou susceptíveis de ser aplicáveis, directamente nas situações da vida.

Nisto consiste aquilo a que pode chamar‑se a revolução copernicana do Direito público europeu das últimas décadas, ligada à Constituição alemã de 1949 (art. 1.º, n.º 3) e, entre nós, à de 1976 ([1]).  Enquanto que antes o exercício dos direitos dependia da sua regulamentação, hoje as normas constitucionais adstringem os comportamentos de todos os órgãos e agentes do poder e conformam as suas relações com os cidadãos sem necessidade de mediatização legislativa.

Na expressão bem conhecida de Herbert Krüger, não são os direitos fundamentais que agora se movem no âmbito da lei, mas a lei que deve mover‑se no âmbito dos direitos fundamentais ([2]).  Ou, na fórmula de Louis Favoreau: no Estado legal, a constitucionalidade era uma componente de legalidade; no Estado de Direito, a legalidade é uma componente de constitucionalidade ([3]).   Donde, a estrita sujeição do legislador controlado pela justiça constitucional, entretanto largamente desenvolvida (como se sabe), aos meios e aos fins constitucionalmente estabelecidos.

 

II — Nem todas as normas sobre direitos, liberdades e garantias são imediatamente exequíveis. Não o são, por exemplo, as relativas às garantias contra a utilização abusiva de informações pessoais (arts. 26.º, n.º 2 e 35.º), ao direito de antena (art. 40.º), à objecção de consciência (art. 41.º, n.º 6), e até ao próprio direito de sufrágio (art. 49.º). E deles se aproximam as normas sobre direitos económicos, sociais e culturais (arts. 58.º e segs.), essas quase todas programáticas.

Mas tanto as normas preceptivas não exequíveis como as programáticas são também, em certo sentido, directamente aplicáveis:

a) Enquanto proíbem a emissão de normas legais contrárias ou a prática de comportamentos que tendam a impedir a produção de actos por elas impostos — como, por exemplo, a negação de objecção de consciência por parte dos médicos em caso de interrupção voluntária da gravidez (art. 44.º n.º 6), a abolição do limite máximo da jornada de trabalho [art. 59.º, n.º 1, alínea d)], a privação de retribuição e de regalias sociais da mulher trabalhadora durante a dispensa após o parto (art. 68.º, n.º 3) ou a não gratuitidade do ensino básico [art. 74.º, n.º 2, alínea a)];

b) Enquanto só por constarem da Constituição  contam para a interpretação sistemática e, através da analogia, podem contribuir para a integração de lacunas;

c) Enquanto fixam critérios para o legislador nos domínios sobre que versam.

Não há, pois, que circunscrever o art. 18.º, n.º 1 aos direitos, liberdades e garantias, nem a violação das normas não exequíveis por si mesmas a inconstitucionalidade por omissão.

 

III — Naturalmente, se as normas constitucionais forem exequíveis por si mesma, o sentido específico do art. 18.º, n.º 1, consistirá na possibilidade imediata de invocação dos direitos por força da Constituição, ainda que haja falta ou insuficiência da lei ([4]).  A regulamentação legislativa, se se der, nada acrescentará de essencial: apenas poderá ser útil (ou, porventura, necessária), pela certeza e segurança que criar quanto às condições de exercício dos direitos ou quanto à delimitação frente a outros direitos.

Pelo contrário, se as normas não forem exequíveis por si mesmas os direitos apenas poderão ser  tornados plenamente efectivos com as providências legislativas subsequentes e, no caso das normas programáticas, observados os condicionalismos económicos indispensáveis.

O legislador ordinário regulamenta simplesmente as normas constitucionais auto‑exequíveis e concretiza as normas não exequíveis.  Mas concretiza estas de modo diferente, consoante os direitos sejam direitos materiais ou procedimentais segundo a classificação atrás apresentada.

Por outro lado, também é diversa a sua liberdade dispositiva consoante se trate de normas preceptivas e de normas programáticas.  Desde a entrada em vigor das normas preceptivas não exequíveis ou, se for caso disso, desde o termo do prazo assinado pela Constituição para feitura da lei, o legislador encontra-se juridicamente obrigado a publicar normas legislativas.  Já quanto às normas programáticas, poderá ter de se lhe reconhecer alguma margem de manobra sobre o tempo e as circunstâncias da legiferação.

 

IV — Os preceitos constitucionais atinentes a deveres fundamentais não podem deixar de ser também directamente aplicáveis, mas havendo que atender à distinção proposta em capítulo anterior entre deveres de âmbito ou alcance genérico e deveres de âmbito ou alcance específico.

Pertencem à primeira categoria os deveres dos pais em relação aos filhos (arts. 36.º, n.ºs 5 e 6) e dos pais ou dos tutores para com as pessoas com deficiência (art. 71.º, n.º 2), o dever de defender e promover a saúde (art. 64.º, n.º 1), o dever de defender o ambiente (art. 66.º, n.º 1), o dever de preservar e defender o património cultural (art. 78.º, n.º 1), o dever de defesa da Pátria (art. 276.º, n.º 1). Pertencem à segunda todos os demais. E ao passo que, para o cumprimento da primeira não é necessária lei — tudo depende do sentido de responsabilidade humana, cultural ou cívica das pessoas — dos segundos — até porque muitos envolvem restrições a direitos — sem lei não podem ser exigíveis.

Donde, a natureza de normas exequíveis por si mesmas dos preceitos relativos aos deveres de âmbito genérico e a de normas não exequíveis dos preceitos relativos aos deveres de âmbito específico, com a consequente inconstitucionalidade por omissão (porque os deveres integram o sistema constitucional  tanto quanto os direitos) na falta dessa lei regulamentadora.

  

2.  A vinculação das entidades públicas

I — Em correlação com a aplicabilidade imediata dos preceitos respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, a 2.ª parte do art. 18.º, n.º 1, da Constituição estabelece a quem se dirigem.

São destinatárias dessas normas, estão vinculadas aos direitos, liberdades e garantias, antes de mais, as entidades públicas ([5]) seja qual for a sua natureza e seja qual for a sua forma de actuação, e não apenas o Estado.  E são destinatários todos os órgãos do poder, e não apenas os de um dos poderes do Estado, o poder legislativo.

A vinculação dos órgãos do poder pelas normas constitucionais torna‑se patente em dois planos ou momentos:

a)      Em relação a cada norma constitucional e a cada lei ou outro acto do Estado que com esse preceito venha a ser confrontado e que lhe deve ser conforme (art. 3.º, n.º 2, da Constituição);

b)      Em relação ao conjunto dos preceitos constitucionais e ao conjunto dos actos jurídico‑públicos, os quais devem tender a criar condições objectivas capazes de permitir aos cidadãos usufruírem efectivamente dos seus direitos ([6]) no âmbito do Estado de Direito democrático.

Em qualquer caso e em qualquer circunstância, qualquer acto de poder público deve tomá‑las como fundamento e como referência; e deve tender a conferir‑lhes (e aos princípios que lhes subjazem) a máxima eficácia possível.

 

II — Os órgãos da função política stricto sensu estão vinculados, na prática de actos dessa função, ao respeito dos direitos, liberdades e garantias.

Assim, por exemplo, o Governo não deve negociar, a Assembleia da República não deve aprovar e o Presidente da República não deve ratificar um tratado que os ofenda — que ofenda os «direitos do homem» (art. 7.º, n.º 1); e, na falta de leis que confiram exequibilidade a normas constitucionais, deve o Presidente da República requerer ao Tribunal Constitucional a verificação da inconstitucionalidade por omissão.  Nem o princípio é infirmado por nem sempre sobre estes comportamentos incidir uma fiscalização jurídica adequada.

 

III — A vinculação do legislador pela Constituição é absoluta no domínio dos direitos, liberdades e garantias; não admite excepções; e significa (como é óbvio), por um lado, que a regulamentação legislativa deve ser conforme com as correspondentes normas constitucionais ([7]) e, por outro lado, que as normas constitucionais não exequíveis por si mesmas devem ser concretizadas nos termos por elas próprias previstas e, quanto aos direitos económicos, sociais e culturais, logo que reunidas as condições de efectivação.

Mesmo quando a Constituição parece devolver para a lei a regulamentação de certos direitos ou institutos, como na objecção de consciência (art. 41.º, n.º 6) ou na protecção dos representantes eleitos dos trabalhadores (art. 55.º, n.º 6), o legislador não é livre de lhe emprestar qualquer conteúdo; a norma legislativa (insistimos) tem, na perspectiva global da Constituição, de possuir um sentido que seja conforme com o sentido objectivo da norma constitucional ([8]).

Fórmulas como «nos termos da lei» (aliás, em número bastante reduzido na Constituição de 1976) ou equivalentes apenas podem indiciar que se trata de normas constitucionais não exequíveis por si mesmas.

 

IV — A vinculação dos órgãos legislativos aos direitos fundamentais não é apenas negativa, não consiste somente em eles não contrariarem o sentido das normas constitucionais. É também positiva e não consiste apenas no dever de regulamentar ou concretizar normas não exequíveis. Abrange ainda o dever de emitir normas ou outras providências de protecção de deveres fundamentais.

Trata‑se de um dever geral, que se reporta aos direitos, liberdades e garantias e, na sua vertente negativa, igualmente aos direitos económicos, sociais e culturais.  Quanto a alguns direitos ele consta mesmo de preceitos expressos, a alguns dos quais já aludimos a propósito do princípio da proporcionalidade ([9]).

Ainda por aplicação imediata, agora do princípio da igualdade, podem ser juridicamente obrigatórias intervenções legislativas destinadas a suprimir privilégios, discriminações e diferenciações infundadas ou a concretizar discriminações positivas.

Na escolha das providências, o legislador goza de variável margem de conformação em correspondência com os bens jurídicos subjacentes aos direitos. O grau máximo de protecção é a qualificação como crime da acção ou omissão ofensiva desses bens, observado o princípio da proporcionalidade.

 

V — Constitui atributo da função legislativa a liberdade de iniciativa e de conformação, pelo que o legislador de certo momento pode interpretar, modificar, suspender ou revogar a lei anterior. Porém, quando estejam em causa direitos fundamentais impõem‑se limites a essa sua discricionariedade.

Em primeiro lugar, não parece poder aceitar‑se, como dissemos atrás, que um direito fundamental implícito ou um direito fundamental novo criado por lei anterior possa ser, pura e simplesmente, extinto por outra lei ordinária – pois, sendo dotado de fundamentalidade por se inserir no sentido da Constituição  material, ele fique fazendo corpo com os demais direitos fundamentais. Pelo menos, como, com alguma prudência se pronunciou o Tribunal Constitucional, teria de haver uma motivação particularmente exigente para isso suceder ([10]).

Em segundo lugar, se uma norma atributiva de um direito não é imediatamente exequível e se, depois, vem a receber exequibilidade através de uma norma legal, tão pouco esta poderá ser abrogada a ponto de se voltar à situação de inconstitucionalidade por omissão (art. 283.º), porque assim o reclamava a realização da Constituição e o próprio funcionamento das instituições.

Pense‑se só, a título de exemplo, no que seria o legislador revogar, sem mais, uma da leis eleitorais, tornando inviável a renovação, nos prazos constitucionais ou por virtude de dissolução, do órgão correspondente e até o exercício de poderes de outros órgãos ([11]). Ou revogar, sem a substituir por outra, a legislação sobre habeas corpus ou sobre objecção de consciência. Ou a legislação de segurança social. Seriam tão pesadas as consequências em qualquer dos casos que quase parecem inverosímeis as hipóteses.

Quanto a normas de direitos, liberdades e garantias, não se vê grande dificuldade em acolher este entendimento. O problema está todo nas normas de direitos sociais, por causa da sua dependência de factores económicos, financeiros e administrativos e de, por isso, ser à volta deles e da sua concretização que se joga o contraditório político.

 

VI — A subordinação da Administração à Constituição é afirmada como princípio geral no art. 266.º, n.º 2, e tem um afloramento de grande importância, no que tange aos direitos, liberdades e garantias, no art. 272.º, n.º 3 (o qual sublinha que a prevenção dos crimes contra a segurança do Estado só pode fazer‑se com respeito pelos direitos, liberdades e garantias).

Na Administração compreendem‑se todas as suas modalidades, incluindo a Administração sob formas jurídico‑privadas (como a de sociedade de capitais total ou maioritariamente públicos), e também qualquer pessoa colectiva de direito privado quando nas suas relações com os particulares disponha de poderes públicos, de faculdades de imperium ([12]).  E actividade vinculada é não só a actividade de Direito público (regulamentos, instruções, actos, contratos administrativos) mas igualmente a actividade de Direito privado das pessoas colectivas públicas (ainda que, eventualmente, com graduações e especialidades).

Em geral, a subordinação à Constituição significa o dever de conformação da actividade administrativa (tenha conteúdo normativo ou não) pelas normas constitucionais, procurando conferir a máxima efectividade possível aos direitos fundamentais. 

Em especial, significa que, em caso de inércia do órgão competente para dar exequibilidade a uma norma sobre direitos fundamentais, é de admitir que tal omissão seja superada por outro órgão a título de substituição; e que são nulos e não anuláveis (portanto, não sanáveis e impugnáveis a todo o tempo) os actos administrativos ofensivos do conteúdo essencial dos direitos, liberdades e garantias [art. 133.º, n.º 2, alínea d), do Código do Procedimento Administrativo] ([13]).

VII — Ora, se os actos administrativos ofensivos do conteúdo essencial de direitos, liberdades e garantias são nulos, quer isto dizer que a Administração pública pode (ou deve) não os praticar, mesmo se impostos pela lei?  Ou seja: podem os órgãos e agentes administrativos recusar‑se a aplicar normas legais contrárias a normas constitucionais atributivas de direitos, liberdades e garantias?

Não se afigura fácil responder.

Por um lado, os órgãos e agentes administrativos não se encontram em plano homólogo ao dos tribunais e o princípio da estrita legalidade administrativa é um dos esteios básicos do Estado de Direito.  Em contrapartida, a Administração pública também está subordinada à Constituição (art. 266.º, n.º 2) e pode haver violações legais de direitos, liberdades e garantias de tal sorte graves ou manifestas que mal se compreenderia, em face dos princípios da proporcionalidade ou da evidência, que os orgãos e agentes administrativos fossem obrigados a praticar actos destinados à sua execução para serem objecto, de seguida, de impugnação contenciosa ou até de resistência por parte dos cidadãos.

Mantemos a opinião ([14]) adversa ao reconhecimento aos órgãos da Administração de qualquer faculdade de fiscalização da constitucionalidade pelas diferentes características da função jurisdicional e da função administrativa, pela necessidade de evitar a concentração de poder no Governo que daí adviria (pois o Governo é o órgão superior da Administração pública) e por imperativos de certeza e de segurança jurídica.  Aos agentes administrativos é sempre possível a representação às entidades hierarquicamente superiores das consequências da aplicação das leis, mas até a uma possível decisão judicial de inconstitucionalidade permanecerão vinculados às leis e às ordens concretas de aplicação dos órgãos colocados em grau superior da hierarquia; e não poderão então ser civilmente responsabilizados por violações de direitos, liberdades e garantias decorrentes dessa aplicação (a responsabilidade será apenas do Estado, de acordo com os arts. 22.º e 271.º, n.º 2).

Não adoptamos, no entanto, uma visão fechada, porque reconhecemos depararem-se hipóteses – extremas ou muito espe­ciais – em que os órgãos administrativos hão-de gozar de um poder de recusa de aplicação.

Além de leis juridicamente inexistentes será assim, sem dúvida quando estiverem em causa direitos insusceptíveis de sus­pensão mesmo em estado de sítio (art. 19.°, n.º 6) e cuja especial valo­rização constitucional (e não um poder autónomo de garantia da constitucionalidade) se vem projectar sobre a actuação dos órgãos e agentes administrativos; ou quando, sem revisão constitucional, seja reproduzida norma declarada inconstitucional com força obrigatória geral (art. 282.°).

Poderá ser assim, quando estejam em causa leis vetustas, muito anteriores à Constituição e, de todo em todo, desconformes com a sua ideia de Direito. Pelo contrário, é, no mínimo duvidoso, que também possa ser assim quando se trate de leis sobre as quais o Tribunal Constitucional se haja pronunciado no sentido de inconstitucionalidade em fiscalização preventiva, mas que, apesar disso, tenham sido con­firmadas e promulgadas (art. 279.°, n.º 2).

VIII — A vinculação dos tribunais aos preceitos constitucionais sobre direitos fundamentais traduz‑se:

a)   Positivamente, na interpretação, na integração e na aplicação de modo a conferir‑lhes a máxima eficácia possível, dentro do sistema jurídico;

b)   Negativamente, na não aplicação dos preceitos legais que os não respeitem (art. 204.º), com os instrumentos e técnicas da apreciação da inconstitucionalidade material mais exigentes.

  

3.  A vinculação das entidades privadas

I — O art. 18.º, n.º 1, estipula ainda a vinculação das entidades privadas aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias. E por isso, como já dissemos, o Provedor de Justiça pode actuar nas relações entre particulares que impliquem uma “especial relação de domínio”; e como vai ver‑se em breve, pode também haver intimação contra particulares para protecção de direitos, liberdades e garantias.

Não estão em causa aqui direitos nas relações entre particulares, só elevados a direitos fundamentais por virtude da sua conexão com certos princípios constitucionais ou por virtude dos cumulativos deveres de protecção dos correspondentes bens jurídicos pelo Estado — assim, os direitos dos cônjuges (art. 36.º, n.os 3 e 4), o direito de intervenção editorial dos jornalistas [art. 38.º, n.º 2, alínea a), 2.ª parte] ([15]), o direito de tendência sindical [art. 55.º, n.º 2, alínea e)], a actividade sindical na empresa [art. 55.º, n.º 2, alínea d)] ([16]) e as garantias de protecção das crianças na família e nas demais instituições (art. 69.º, n.º 2). 

Nem, ao invés, direitos que apenas podem ter por destinatário passivo o Estado, como as garantias de Direito e de processo penal, os direitos políticos e alguns dos direitos sociais.

Trata‑se, sim, de direitos que incidem ou podem incidir tanto nas relações com entidades públicas quanto nas relações com particulares — como os que resultam da reserva da intimidade da vida privada (art. 26.º, n.º 2), da proibição de acesso de terceiros aos ficheiros de dados pessoais (art. 35.º, n.º 4), o direito de rectificação, de resposta e a indemnização por danos sofridos através da imprensa (art. 37.º, n.º 4), os direitos de autor (art. 42.º, n.º 2, in fine), a liberdade negativa de associação (art. 46.º, n.º 3), o direito de acção colectiva para defesa de interesses difusos (art. 52.º, n.º 3), a segurança no emprego (art. 53.º), o controlo de gestão [art. 54.º, n.º 5, alínea b)], a independência das associações sindicais (art. 55.º, n.º 4), a protecção dos representantes dos trabalhadores (art. 55.º, n.º 6), a proibição do lock‑out (art. 57.º, n.º 4) ou os direitos dos consumidores à informação, à protecção da saúde e dos seus interesses económicos e à reparação de danos (art. 60.º, n.º 1).

E trata‑se depois de direitos que, tendo surgido historicamente frente ao Estado, podem adquirir também sentido frente a particulares — como a presunção de inocência dos arguidos (art. 32.º, n.º 2), o sigilo de correspondência (art. 34.º, n.º 1), a liberdade de consciência e de religião (art. 41.º), a liberdade de deslocação (art. 44.º), a liberdade de reunião (art. 45.º), a liberdade de associação (art. 46.º), a liberdade de profissão (art. 47.º, n.º 1) ou a liberdade sindical (art. 55.º).

É sobretudo a propósito destes últimos direitos que se fala em eficácia horizontal, ou perante terceiros, dos direitos, liberdades e garantias (Drittwirkung) — em contraposição à mera eficácia externa, equivalente ao dever universal de respeito que recai sobre quaisquer cidadãos em face dos direitos dos outros. Enquanto que, na eficácia externa, tudo está em não interferir no exercício dos direitos de outros, na eficácia horizontal há relações bilaterais sobre as quais se projectam ou em que podem ser afectados especificamente certos e determinados direitos, liberdades e garantias.

II — Uma fórmula como a do nosso art. 18.º, n.º 1 ([17]), quase não tem paralelo noutras Constituições.  Nem por isso, na ausência de disposição constitucional expressa, a jurisprudência, a prática legislativa e a doutrina têm deixado, nas últimas décadas, por toda a parte, de colocar o problema — subjacente ao estádio actual de intercomunicação de Estado e sociedade, de alargamento da Constituição material e de realçar da dimensão objectiva dos direitos fundamentais.

Não é, porém, um problema de equacionamento simples, por vários motivos:

1.º) Porque se apresenta irredutível a diferença de posições e de modos de agir das entidades públicas e das entidades privadas;

2.º) Porque é um dado da experiência, não é mero conceitualismo, recortar os direitos fundamentais como direitos essencialmente colocados frente ao Estado;

3.º) Porque a eficácia horizontal dos direitos, liberdades e garantias se repercute necessariamente no terreno do Direito privado e exige uma análise interdisciplinar;

4.º) Porque, se o princípio da autonomia privada, fundamental nos sistemas jurídicos romanísticos (e também nos de common law), pode e deve ser limitado, em contrapartida — sob pena de ser vulnerado no seu conteúdo essencial — vai condicionar em larga medida a aplicação dos direitos, liberdades e garantias nas relações privadas;

5.º) Porque, do mesmo passo, se importa garantir os direitos fundamentais das pessoas no interior de instituições e grupos privados, também importa preservar a autonomia dessas instituições perante o Estado.

Afora uma atitude (dificilmente sustentável) a favor da irrelevância dos direitos, liberdades e garantias, são duas as teses de carácter geral que se deparam: a da relevância mediata e a da relevância imediata.  Para a primeira, somente através da sua modelação ou transformação em normas de Direito civil podem os preceitos constitucionais sobre direitos, liberdades e garantias obrigar as pessoas nas suas vidas jurídico‑privadas e só através da sua irradiação sobre os conceitos indeterminados ou sobre as cláusulas gerais privatísticas podem os correspondentes conceitos tornar‑se operativos. Para a segunda tese, não há que fazer cisões na ordem jurídica e tudo se reconduz à dialéctica liberdade‑poder: se, em vez de ser poder político, for um poder de grupo ou de uma entidade privada dominante, os direitos, liberdades e garantias deverão valer de modo absoluto, enquanto tais; nos restantes casos, poderá haver graus de vinculatividade.

Pressentem‑se as marcas de diversas preocupações e de diferentes premissas de fundo.  Contudo, em algumas variantes significativas mostram‑se atenuadas as divergências e os resultados práticos, por imperativo até de senso comum, acabam por se aproximar.

 

III — Não se compreenderiam uma sociedade e uma ordem jurídica em que o respeito da dignidade e da autonomia da pessoa fosse procurado apenas nas relações com o Estado e deixasse de o ser nas relações das pessoas entre si ([18]).  Não basta, pois, limitar o poder político – o imperium; é preciso também limitar o dominium e assegurar o respeito das liberdades de cada pessoa pelas demais pessoas.  Tudo está em saber de que maneira.

Embora com consciência de que muito falta aqui ainda aprofundar, julgamos possível e conveniente fixar os seguintes pontos:

a)   Como pressupostos — o reconhecimento da qualidade de valores superiores da ordem jurídica dos direitos, liberdades e garantias, mas igualmente, o reconhecimento da necessidade de um mínimo de separação entre Estado e sociedade civil, bem como da distinção entre Direito público e Direito privado e entre inconstitucionalidade da lei e invalidade do contrato ([19]).  Donde, não tanto uma adequação axiológica quanto uma adequação funcional ([20]) na vinculação das entidades privadas; mutatis mutandis é o mesmo que se passa quando o art. 205.º, n.º 2, declara as decisões dos tribunais obrigatórias quer para as entidades públicas quer para as privadas;

b)   Como objectivos — o equilíbrio, a concordância prática, se possível a realização simultânea dos direitos, liberdades e garantias, por um lado, e, por outro, da autonomia privada — esta regulada no Código Civil (art. 405.º), mas não na Constituição, embora aqui se induza, como garantia institucional, do direito ao desenvolvimento da personalidade e do direito à capacidade civil (art. 26.º, n.º 1), da liberdade de trabalho e profissão (art. 47.º, n.º 1), da contratação colectiva (art. 56.º, n.º 4), da iniciativa privada (art. 61.º, n.º 1) e da propriedade e da sua transmissão em vida ou por morte (art. 62.º) — e da autonomia associativa ([21]) — inerente aos princípios pluralistas da Constituição e imposta pelo art. 46.º, n.º 2;

c)  Como linhas de solução propostas:

1.º) A consideração de três tipos de situações e relações (na linha do que dissemos acerca do princípio da igualdade) — relações, dentro de grupos, associações, pessoas colectivas, entre os seus membros e os poderes instituídos; relações entre particulares e poderes sociais de facto; relações entre particulares em igualdade;

2.º) A aplicação das normas sobre direitos, liberdades e garantias por identidade de razão nas duas primeiras hipóteses ([22]) e por analogia na terceira;

3.º) A preservação sempre dos direitos insusceptíveis de suspensão em estado de sítio (art. 19.º, n.º 6), bem como do conteúdo essencial dos restantes direitos (art. 18.º, n.º 3);

4.º) O tratamento diferenciado (quase tópico) dos vários direitos e situações;

5.º) A consideração dos problemas em concreto como problemas de escolha entre vários bens pelos destinatários (activos e passivos) das normas e como problemas de colisão de direitos;

6.º) A utilização, para efeitos de protecção judicial, dos meios específicos da justiça civil ([23]).

 

V — Em plano diferente, mas indiscutível, fica a eficácia de certos direitos económicos, sociais e culturais em relação aos particulares, na medida em que os adstringem a determinadas prestações ou a certos encargos ou em que comprimem direitos.

Assim, as entidades patronais estão adstritas a organizar o trabalho em condições socialmente dignificantes e de higiene, segurança e saúde [art. 59.º, n.º 1, alíneas b) e c)]; o direito à habitação provoca uma diminuição do conteúdo possível do direito de propriedade de casas para habitação; o direito à segurança social prevalece sobre certos direitos patrimoniais ([24]) e fundamenta contribuições obrigatórias das entidades patronais em favor dos trabalhadores assalariados; e da Constituição decorrem períodos de dispensa de trabalho a que têm direito os dirigentes sindicais, os trabalhadores estudantes, as mães e os pais [arts. 55.º, n.º 6, 59.º, n.º 2, alínea b), e 68.º, n.º 2] ([25]).

  

4.  A limitação recíproca dos direitos

I — Porque as pessoas convivem na mesma comunidade e ainda porque os direitos pertencem ao mesmo sistema, os direitos de cada pessoa têm por limites os direitos das demais pessoas (de novo, art. 29.º, n.º 2 da Declaração Universal) e o conteúdo (ou o conteúdo potencial) de cada direito tem por fronteiras o conteúdo de outros direitos.

O dever de respeito entre as pessoas não impede, todavia, em concreto, colisões de direitos e também elas surgem no domínio dos direitos fundamentais: entre a reserva da intimidade da vida privada (art. 26.º, n.º 1) ou a presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2) e a liberdade de informação (art. 37.º); entre os direitos de autor (art. 42.º, n.º 2) e o direito à fruição cultural (art. 78.º); entre o controlo de gestão nas empresas [art. 54.º, n.º 5, alínea b)] e o direito de iniciativa económica (art. 61.º); entre o direito de propriedade (art. 62.º) e o direito à habitação (art. 64.º) ([26]) ([27]).

Estes são conflitos de direitos diferentes de pessoas diferentes. Mas, a seu lado, pode haver conflitos entre direitos iguais de diferentes pessoas (donde, a proibição de contra manifestações como garantias de direito de manifestação) ([28]). Ou a necessidade de tratamento adequado das várias candidaturas (v.g. repartição de espaço jornalístico e de salas de espectáculos em períodos eleitorais).

Assim como pode haver conflitos de direitos da mesma pessoa: é o caso típico do conflito entre o direito à vida (art. 24.º) e o direito à protecção da saúde (art. 64.º), por um lado e a objecção de consciência, por motivos religiosos (art. 41.º, n.º 6), por outro lado.

 

II — Não há soluções a priori. Apenas cabe indicar três postulados: 1.º) discernir nas normas jusfundamentais as que têm carácter de princípios e as que têm carácter de regras; 2.º) aproveitar todas as virtualidades da harmonização, objectiva e subjectiva, de princípios; 3.º) atender às circunstâncias do caso para aí proceder à concordância prática ou à ponderação.

Não se encontra na Constituição (nem na Declaração Universal) nenhuma directriz de solução. Mas as directrizes provenientes do Código Civil de 1867 (arts. 14.º e 15.º) e do Código Civil de 1966 (art. 335.º) podem ser úteis.

Em certos casos, será irrecusável atender à diferença de bens jurídicos protegidos, subjacentes aos direitos. A hierarquia valorativa constitucional não poderá ser obliterada, se bem que não funcione de per si ou automaticamente, como já dissemos.

 

 

5.  A preservação do conteúdo essencial

I — Conteúdo de um direito vem a ser a faculdade ou o feixe de faculdades destinados à obtenção e à fruição do bem jurídico que lhe subjaz. Visto  a partir do Estado, equivale ao âmbito da protecção conferida pelas normas e pelos órgãos de realização do Direito.

Pela natureza das coisas, esse conteúdo configura‑se em razão do bem jurídico e este, porque o sistema de direitos fundamentais assenta na dignidade da pessoa humana, só se concebe ao seu serviço. O direito à vida não compreende o direito ao suicídio, o direito à integridade física o direito à automutilação, o direito de casar o direito de celebrar casamento com pessoa do mesmo sexo, a liberdade religiosa o direito a fazer sacrifícios humanos, o direito de escolha de profissão o direito ao lenocínio, etc. Eis (como se lhes queira chamar) limites imanentes, intrínsecos, de conteúdo ou de objecto ([29]).

Definido assim o direito, não resulta daí logo o seu conteúdo real ou actual, o conteúdo que assume na vida prática. Situado no contexto de ordem constitucional, ele sofre o influxo dos valores que esta prossegue, dos deveres que consagra e dos princípios institucionais que objectiva ([30]). E desses deveres e desses princípios podem derivar restrições, ou sejam, amputações ou compressões de faculdades em maior ou menor escala, embora sempre – prescreve o art. 18.º, n.º 3 – sem atingirem aquelas que compõem o conteúdo essencial ([31]).

 

II — A restrição não se confunde com outras realidades normativas como o limite ou limite de exercício, o dever, a auto‑ruptura e, noutro plano, com a regulamentação, a concretização e a suspensão de direitos.

A restrição tem que ver com o direito em si, com a sua extensão objectiva; o limite ao exercício de direitos contende com a sua manifestação, com o modo de se exteriorizar através da prática do seu titular.  A restrição afecta certo direito (em geral ou quanto a certa categoria de pessoas ou situações), envolvendo a sua compressão ou, doutro prisma, a amputação de faculdades que a priori estariam nele compreendidas; o limite reporta‑se a quaisquer direitos.  A restrição funda‑se em razões específicas; o limite decorre de razões ou condições de carácter geral, válidas para quaisquer direitos (a moral, a ordem pública e o bem‑estar numa sociedade democrática, para recordar, de novo, o art. 29.º da Declaração Universal).

O limite pode ser absoluto (vedação de certo fim ou de certo modo de exercício de um direito) ou relativo. Neste caso, desemboca em condicionamento, ou seja, num requisito de natureza cautelar de que se faz depender o exercício de algum direito, como a prescrição de um prazo (para o seu exercício), ou de participação prévia (v. g., para realização de manifestações), ou de registo (para o reconhecimento da personalidade jurídica de associação), ou de conjugação com outros cidadãos num número mínimo (para a constituição de partidos), ou de posse de documentos (por exemplo, passaportes), ou de autorização vinculada ([32]) (para a criação de escolas particulares e cooperativas).  O condicionamento não reduz o âmbito do direito, apenas implica, uma vezes, uma disciplina ou uma limitação da margem de liberdade do seu exercício, outras vezes um ónus ([33]).

A restrição distingue‑se do dever, pela sua completa falta de autonomia, por se situar no plano do conteúdo de certo direito e só fazer sentido por referência a ele.  O dever é uma situação jurídica passiva, traduzido na imposição a alguém de agir ou não agir de alguma maneira; já a restrição se prende ao perfil específico de alguns direitos, ao modo como se apresentam na vida jurídica e à protecção que, assim, vêm a receber.  O dever (quando não fundamental) pode não constar da Constituição; a restrição tem sempre de nela se estear, imediata ou mediatamente ([34]).

Um quid é a auto‑ruptura material ou edição de preceito constitucional geral e concreto ou, em certos casos, individual e concreto; outro a restrição, necessariamente contida em norma geral e abstracta.  A auto‑ruptura é uma excepção a um princípio ou uma regra constitucional geral (assim, a proibição de organizações de ideologia fascista do art. 46.º, n.º 4, e a incriminação retroactiva dos agentes e responsáveis da PIDE‑DGS do já caducado art. 294.º); a restrição uma decorrência de certo princípio em face de outro.  E, no domínio dos direitos, liberdades e garantias, a auto‑ruptura ou quebra da Constituição apenas pode ocorrer, como se sabe, por força de normas constitucionais originárias, nunca por força de revisão constitucional.

Uma coisa é a regulamentação ou preenchimento ou desenvolvimento legislativo (ou, porventura, convencional) do conteúdo do direito; outra coisa a restrição ou diminuição ou compressão desse conteúdo.  Uma coisa é regulamentar, por (como já se disse) razões de certeza jurídica, de clarificação ou de delimitação de direitos; outra coisa é restringir com vista a certos e determinados objectivos constitucionais.  A regulamentação pode conduzir à ampliação dos direitos na base da cláusula aberta do art. 16.º, n.º 1; nunca pode reverter, sob pena de desvio de poder legislativo, em restrição.

Muito menos se confunde a restrição com a concretização legislativa, destinada a conferir, total ou parcialmente, exequibilidade a normas constitucionais não exequíveis por si mesmas.  Ao contrário da restrição, esta prende‑se, repetimos, à liberdade, maior ou menor, de conformação do legislador (sempre exigida, quando se trate de normas programáticas, pela abertura da Constituição a diferentes alternativas políticas, em regime democrático pluralista).

Finalmente, são diversos os conceitos de restrição e de suspensão.  A restrição atinge um direito a título permanente, e sempre apenas parcialmente; a suspensão, provocada por situações de necessidade, atinge um direito a título transitório, equivale a um eclipse.  A restrição apaga uma parcela potencial do direito; a suspensão paralisa ou impede, durante algum tempo, o seu exercício, no todo ou em parte (e, só neste caso acaba, porventura, por corresponder a uma restrição).

 

III — A Constituição liga a salvaguarda do conteúdo essencial às restrições de direitos, liberdades e garantias. No entanto, a sua problemática não se esgota aí. Abrange as limitações recíprocas, em certa medida, a suspensão em estado de sítio ou de emergência, bem como os limites materiais de revisão constitucional.

Nem ela se esgota nos direitos, liberdades e garantias.  Há, analogamente, um conteúdo essencial dos direitos económicos, sociais e culturais. Uma leitura a contrario sensu do art. 18.º, n.º 3 seria, de todo, inadmissível.

As normas constitucionais devem ser tomadas no sentido da máxima capacidade sistemática de regulamentação e concretização.

 

IV — Quanto a alguns direitos, a Constituição recorta logo, por fórmula negativa, de garantia, qual deva ser o seu conteúdo essencial, ou algo de a ele inerente; assim, a proibição de tratos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes, quanto ao direito à integridade pessoal (art. 25.º), a proibição da censura quanto à liberdade de expressão e informação (art. 37.º, n.º 2) ou a não sujeição das associações a autorização (art. 46.º) ([35]).

Todavia, em geral, é preciso levar a cabo um trabalho aparentemente dos mais árduos e melindrosos para estabelecer o que seja o conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (ou dos direitos neles consignados).

Torna‑se claro que, para funcionar como barreira última e efectiva contra o abuso do poder, como barreira que o legislador, seja qual for o interesse (permanente ou conjuntural) que prossiga, não deve romper, o conteúdo essencial tem de ser entendido como um limite absoluto correspondente à finalidade ou ao valor que justifica o direito.  As teses relativistas são de rejeitar, porque confundem proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2) e conteúdo essencial (art. 18.º, n.º 3).

Como quer que se pense, para além de discussões teóricas, o que importará, acima de tudo, será ir fixando o percurso dos direitos, através do conhecimento da sua formação histórica, do cotejo comparativo, da jurisprudência, do desenvolvimento de cultura cívica e constitucional, do ressaltar de novos direitos implícitos ([36]) da protecção penal; e, depois, subir até a um sentido rigoroso na arquitectura da Constituição.

Pode, acaso, a lei não retirar toda a utilidade ao direito e, não obstante, afectar o seu conteúdo essencial, por subverter ou inverter o bem jurídico protegido.  O conteúdo essencial tem de se radicar na Constituição e não na lei — porque (mais uma vez) é a lei que deve ser interpretada de acordo com a Constituição, e não a Constituição de acordo com a lei ([37]).

O conteúdo real de um direito em concreto pode ser mais amplo que o conteúdo essencial, nunca pode ser menor.

 

V — Quanto aos direitos sociais, Vieira de Andrade entende que o seu conteúdo é determinado pela Constituição apenas num mínimo e que não pode ser‑lhe imputado um conteúdo normativo mais vasto pela via de uma interpretação judicial “actualista”: esse conteúdo depende de opções próprias do legislador ordinário, ao qual se deve entender que foi delegado, por razões técnicas ou políticas, um poder de conformação autónoma, nessa medida sujeito a um controlo atenuado pelos tribunais ([38]).

Parece‑nos residual e redutor este entendimento. Pelo contrário, o máximo efeito útil a procurar também para as normas de direitos económicos, sociais e culturais aponta para que se vá tão longe quanto possível na determinação do seu conteúdo, mesmo se não se chega (ou não se deva chegar, para não se impedir a alternância democrática) à determinabilidade dominante nas normas de direitos, liberdades e garantias ([39]).


 

* Professor catedrático da Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa.

[1] Noutras Constituições: art. 53.º da Constituição espanhola; art. 5.º, § 1.º, da Constituição brasileira; art. 85.º da Constituição colombiana; art. 5.º, n.º 2, da Constituição búlgara; art. 17.º da Constituição caboverdiana; art. 6.º da Constituição lituana; art. 18.º, da Constituição russa; art. 8.º, n.º 1, da Constituição sul‑africana; art. 8.º, n.º 3, da Constituição polaca.

[2] Grundgesetz und Kartell Gesetzgebung, Gotinga, 1950, pág. 12, apud Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 8.ª ed., São Paulo, 1999, pág. 358.

[3] Légalité et constitutionnalité, in Cahiers du Conseil Constitutionnal, n.º 3, 1997, págs. 73 e segs.

[4] Neste sentido, já, Liberdade de reunião, Braga, 1971, págs. 4‑5.

[5] V. referências a entidades públicas e a pessoas colectivas públicas também nos arts. 22.º, n.º 1, 82.º, n.º 2, 156.º, alínea e), 197.º, n.º 1, alínea h), 199.º, alínea e), 205.º, n.º 2, 269.º, n.os 1 e 2, 271.º, n.º 1, e 276.º, n.º 6.

[6] Recorde‑se o art. 28.º da Declaração Universal.

[7] Cfr. o acórdão n.º 226/94 do Tribunal Constitucional, de 8 de Março, in Diário da República, 2.ª série, n.º 160, de 13 de Julho de 1994, pág. 6987.

[8] Neste sentido, já, o nosso Inviolabilidade do domicílio, in Revista de Direito e Estudos Sociais, 1974, págs. 414‑415.

[9] Cfr., além desses, o art. 20.º, n.º 5, sobre procedimentos judiciais, com prioridade e celeridade para protecção de direitos, liberdades e garantias; art. 26.º, n.º 3, sobre identidade genética; arts. 27.º, n.º 5 e 19.º, n.º 6, sobre o dever de indemnização em caso de privação inconstitucional ou ilegal de liberdade ou de sentença criminal injusta; art. 28.º, n.º 4, sobre fixação por lei dos prazos de prisão preventiva; art. 32.º, n.º 3, 2.ª parte, sobre assistência de advogado em processo penal; arts. 54.º, n.º 4 e 55º, n.º 5, sobre protecção dos membros das comissões de trabalhadores e dos representantes sindicais; ou art. 69.º, n.º 3, sobre proibição do trabalho de menores em idade escolar.

[10] Acórdão n.º 109/85, de 2 de Julho, in Diário da República, 2.ª série, de 10 de Setembro de 1985; acórdão n.º 51/87, de 4 de Fevereiro, ibidem, de 9 de Abril de 1987.

[11] Uma situação de vazio semelhante ocorreu entre 1976 e 1979, por falta de lei eleitoral para o Parlamento, impeditiva de dissolução pelo Presidente da República. Só a Lei n.º 16/79, de 14 de Maio, permitiu ultrapassar o problema.

[12] Cfr., aliás, o art. 267.º, n.º 6, acrescentado em 1997.

[13] É a tese que sustentamos desde há muito (v. O regime dos direitos, liberdades e garantias…, in Estudos sobre a Constituição, obra colectiva, III, Lisboa, 1979, pág. 77).  Cfr. Freitas do Amaral, Direito Administrativo, iii, Lisboa, 1989, pág. 334; Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e João Pacheco do Amorim, Código do Procedimento Administrativo, 2.ª ed., Coimbra, 1997, págs. 646 e 647.

[14] Cfr. por último Manual de Direito Constitucional, VI, 3ª ed., Coimbra, 2008, págs. 197 e segs.

[15] No texto inicial, marcado pela conjuntura de 1974‑1975, os direitos de intervenção dos jornalistas eram garantidos expressamente em relação a outros trabalhadores.

[16] Cfr. os direitos dos trabalhadores nas empresas, segundo o Código do Trabalho.

[17] Fonte (aliás, como de todo o art. 18.º, n.º 1): art. 10.º, n.º 1, do projecto de Constituição do Partido Popular Democrático; e, de certo modo ainda, art. 15.º, n.º 3, do projecto do Centro Democrático Social e art. 28.º, n.º 1, do projecto do Partido Comunista Português.

[18] Nem faria sentido que as normas de Direito privado não fossem, como as demais normas do ordenamento estatal, interpretadas em conformidade com a Constituição.

[19] Um contrato civil violador de um direito, liberdade e garantia é inválido, não é nunca inconstitucional, com tudo quanto isto significa.

[20] As expressões são de Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, tomo I, 3ª ed., Coimbra, 2005, pág. 380 (embora não lhes demos exactamente os mesmos sentidos).

[21] A expressão é de Mortati, Note introdutive ad uno studio sulle garanzie dei singoli nelle formazioni sociali, in Scritti in onore di Salvatore Pugliatti, obra colectiva, III, Milão, 1978, págs. 1575 e segs.

[22] Cfr. Robert Alexy, Theorie dês Grundrechte, 1986, trad. Teoria de los Derechos Fundamentales, Madrid, 1993, pág. 522: é fácil refutar a objecção segundo a qual todo o efeito imediato para com terceiros conduz a uma eliminação ou limitação indevida da autonomia privada; a própria autonomia privada é objecto de garantia jusfundamental e, portanto, de efeito para com terceiros.

[23] Designadamente, por meio da providência do art. 70.º, n.º 2, do Código Civil e do processo de jurisdição voluntária do art. 1474.º do Código de Processo Civil.

[24] Cfr., por exemplo, o acórdão n.º 151/92 do Tribunal Constitucional, de 8 de Abril, in Diário da República, 2.ª série, n.º 172, de 28 de Julho de 1992; e também o parecer n.º 84/93 da Procuradoria‑Geral da República, de 10 de Março de 1994, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 434, Março de 1994, págs. 5 e segs., maxime 44 e segs.

[25] Cfr. acórdão n.º 73/99 do Tribunal Constitucional, de 3 de Fevereiro, in Diário da República, 2.ª série, n.º 80, de 6 de Abril de 1999.

[26] Cfr., por exemplo, acórdão n.º 147/2007, do Tribunal Constitucional, de 28 de Fevereiro, in Diário da República, 2.ª série, de 9 de Abril de 2007. Há uma jurisprudência muito vasta sobre colisões.

[27] Não são de excluir ainda colisões entre direitos fundamentais formais, consagrados no texto constitucional, e direitos fundamentais só materiais, vindos da lei ou do Direito internacional.

[28] O art. 7.º da lei da liberdade religiosa, Lei n.º 16/2001, de 22 de Junho, fala em conflitos entre a liberdade de consciência, de religião e de culto de uma pessoa e a de outra ou outras, dizendo que há‑de resolver‑se com tolerância, de modo a respeitar quanto possível a liberdade de cada uma. Mas, em rigor, não se trata aqui de conflitos. Trata‑se de uma obrigação de respeito mútuo.

[29]Alteramos, como se vê, a posição adoptada até à 3ª edição do tomo IV do nosso Manual..

[30] Como diz José de Melo Alexandrino (A greve dos juízes – segundo a Constituição e a dogmática constitucional, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, no centenário do seu nascimento, obra colectiva, Coimbra, 2006, pág. 781), os direitos limitam‑se por não se resumirem a si próprios.

[31] Fonte: art. 19.º, n.º 2 da Constituição alemã. V. também art.53.º, n.º 1 da Constituição cabo‑verdiana, art. 36.º, n.º 4 da Constituição suíça; e art. 52.º, n.º 1 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.

[32] A autorização discricionária seria já uma restrição por atingir o conteúdo essencial de liberdade do direito.

[33] Cfr. acórdão n.º 99/88 do Tribunal Constitucional, de 28 de Abril, in Diário da República, 2.ª série, de 22 de Agosto de 1988.

[34] Cfr. Diário da Assembleia Constituinte, n.os 35 e 36, de 22 e 23 de Agosto de 1975, págs. 953 e segs. e 974 e segs., respectivamente.

[35] Cfr., também, negativamente, em face do art. 2.º da Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro (lei do estado de sítio e do estado de emergência), a fixação de residência quanto à liberdade de deslocação (art. 44.º, n.º 1) ou a supressão e a apreensão de publicações quanto à liberdade de imprensa (arts. 37.º e 38.º).

[36] Apontando para a necessidade de se descobrir, no contexto essencial também uma função positiva, Peter Häberle, Le libertà …, cit., págs. 145 e segs.

[37] Jorge Miranda, Inviolabilidade do domicílio, cit., loc. cit., pág. 401.

[38] Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 3ª ed., Coimbra, 2004, pág. 392.

[39] Em pensamento próximo do nosso, Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra, 2004, pág. 482. Numa visão crítica. Jorge Reis Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2005, págs. 305 e 306.