O
Tribunal Constitucional em 2009
prof. doutor jorge miranda
Sumário:
I – Volume das decisões. II – Principais
decisões. III – Indemnização por morte de nascituro. Um caso
de inconstitucionalidade de decisão judicial? IV. A lei de
procriação medicamente assistida. V – Execução de penas. VI
– Constituição e casamento de homossexuais. VII –
Reabilitação urbana, venda forçada e direito de propriedade.
VIII – Recusa de inscrição de um partido político. IX –
Estatuto dos juízes de paz. Inelegibilidade dos juízes. X –
Um segundo acórdão sobre o estatuto dos Açores. XI –
Direitos dos grupos de cidadãos representados em órgãos
municipais. Uma decisão aditiva. XII – Rectificações de
diplomas legais e tutela da confiança.
I
Volume das decisões
1. Em 2009, o Tribunal
Constitucional proferiu os seguintes acórdãos, classificados
em razão das diversas competências que a Constituição e a
lei lhe atribui:
Fiscalização concreta
da constitucionalidade e da legalidade
–.. Decisões sobre reclamações
a respeito da admissibilidade de recursos
........................................................................
85
–.. Decisões sobre questões de
processo .............................. 274
–.. Decisões de mérito
........................................................ 153
–.. Outras decisões
.............................................................
3
Fiscalização abstracta
–.. Decisões em fiscalização
preventiva ............................... 3
–.. Decisões em fiscalização
sucessiva de inconstitucionalidade por acção
......................................................................
17
–.. Decisões em fiscalização de
inconstitucionalidade por omissão
.......................................................................................
0
Eleições e referendos
–.. Decisões em contencioso
eleitoral .................................. 79
–.. Decisões sobre referendos
locais .................................... 1
Partidos
–.. Decisões sobre partidos e
coligações .............................. 18
–.. Decisões sobre
financiamento dos partidos e campanhas eleitorais
.......................................................................
18
–.. Decisões sobre recursos de
decisões de órgãos partidários
.....................................................................................
5
Outras competências
–.. Decisões sobre declarações
de rendimentos e incompatibilidades dos titulares de cargos
políticos ......... 3
2. Comparando com as decisões
de 2008, verifica‑se, tal como de 2007 para 2008, um aumento
do número de acórdãos em fiscalização sucessiva, os quais
chegaram a 17.
As matérias atinentes a
direitos fundamentais continuam a dominar na fiscalização
concreta, aquela área de mais intensa actividade do Tribunal
Constitucional.
Fora do controlo de
constitucionalidade, o significativo volume de decisões em
matérias eleitorais e de partidos deveu‑se à realização, no
mesmo ano, de três eleições – para o Parlamento Europeu,
para a Assembleia da República e para os órgãos das
autarquias locais.
II
Principais decisões
3. Sobre direitos das pessoas:
– Acórdão nº 101/2009
(procriação medicamente assistida, direito à identidade
genética, dignidade da pessoa humana);
– Acórdão nº 359/2008
(casamento de homossexuais);
– Acórdão nº 357/2009
(protecção de nascituro, responsabilidade por acidente de
viação, inconstitucionalidade de decisões judiciais).
4. Sobre matérias penais e
contra‑ordenacionais:
– Acórdão nº 1/2009
(testemunhas, garantias de processo penal);
– Acórdão nº 162/2009
(princípio do juiz natural);
– Acórdão nº 427/2009 (Código
de Execução das Penas);
– Acórdão nº 490/2009 (não
retroactividade da lei contra‑ordenacional, rectificações
legislativas).
5. Sobre direitos sociais:
– Acórdão nº 161/2009
(acidentes de trabalho, revisão de pensão por acordo do
trabalhador);
– Acórdão nº 186/2009 (Caixa
Geral de Aposentações, protecção da confiança);
– Acórdão nº 188/2009
(direito à segurança social, pensões de invalidez e de
velhice, protecção da confiança);
– Acórdão nº 271/2009
(remuneração dos aposentados, igualdade salarial).
6. Sobre direito de
propriedade e urbanismo:
– Acórdão nº 421/2009
(reabilitação urbana, venda forçada, direito de
propriedade).
7. Sobre matérias financeiras:
– Acórdão nº 150/2009
(contra‑ordenações fiscais, responsabilidade solidária);
– Acórdão nº 494/2009
(imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas,
pagamento especial por conta, princípios de
proporcionalidade e de não‑retroactividade).
8. Sobre eleições:
– Acórdão nº 250/2009
(inelegibilidade dos juízes, julgados de paz);
– Acórdão nº 467/2009
(propaganda eleitoral, salas de espectáculo, recurso de
deliberação da Comissão Nacional de Eleições);
– Acórdão nº 473/2009 (grupo
de cidadãos eleitores, inelegibilidade);
– Acórdão nº 523/2009 (votos
válidos e votos nulos);
– Acórdão nº 568/2009
(eleição de juntas de freguesia).
9. Sobre partidos políticos:
– Acórdão nº 26/2009
(financiamento dos partidos);
– Acórdão nº 99/2009
(finanças dos partidos políticos, aplicação de sanções
penais);
– Acórdão nº 369/2009
(indeferimento de pedido de inscrição de um partido
político);
– Acórdão nº 373/2009
(direito de oposição a nível local, grupo de cidadãos);
– Acórdão nº 557/2009
(impugnação de deliberação de partido).
10. Sobre matérias judiciárias
e processuais:
– Acórdão nº 301/2009 (custas
judiciais, proporcionalidade);
– Acórdão nº 346/2009
(alteração de matéria de facto em processo civil, processo
equitativo);
– Acórdãos nºs 596 e 597/2009
(acidentes em auto‑estrada, responsabilidade das empresas
concessionárias, ónus de prova).
11. Sobre contencioso
administrativo e tributário:
– Acórdão nº 197/2009
(direito ao recurso, recurso excepcional de revista para o
Supremo Tribunal Administrativo);
– Acórdão nº 376/2009 (acesso
à justiça, impugnações administrativas necessárias).
12. Sobre regiões autónomas:
– Acórdão nº 185/2009
(legislação regional);
– Acórdão nº 174/2009
(audição das regiões autónomas, nacionalização de um banco);
– Acórdão nº 403/2009
(estatuto político‑administrativo dos Açores).
13. Sobre poder local:
– Acórdão nº 449/2009
(plenários de cidadãos eleitores).
III
Indemnização por morte de
nascituro. Um caso de inconstitucionalidade de decisão
judicial?
14. Por causa de traumatismo
sofrido em acidente de viação, uma grávida perdeu o seu
filho, já formado e em condições de sobreviver se tivesse
sido possível uma operação cesariana. Tendo pedido em juízo
a condenação em indemnização solidária dos causadores do
acidente, foi a acção julgada improcedente e o mesmo viria a
suceder com os recursos interpostos para o Tribunal da
Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça.
Em todas as instâncias, invocou
a inviolabilidade da vida humana, inclusa a intra‑uterina,
com a consequência do necessário ressarcimento civil, mas o
Supremo Tribunal de Justiça negou que o nascituro fosse um
centro autónomo de direitos. Por último, desta decisão
recorreu para o Tribunal Constitucional.
Com fundamento em a
recorrente não ter definido a norma/dimensão normativa
determinante da inconstitucionalidade e apenas ter
sustentado haver o acórdão recorrido violado “por erro de
subsunção” o disposto no artigo 24º, nº 1 da Constituição, o
Tribunal Constitucional decidiu, pelo acórdão nº 357/2009,
de 8 de Julho,
não conhecer do recurso.
15. Votaram vencidos os juízes
João Cura Mariano e Mário Torres que, diferentemente da
maioria da secção a que foi distribuído o processo,
entenderam que, nas suas alegações, a recorrente tinha
suscitado a questão de inconstitucionalidade do artigo 66º
do Código Civil interpretado no sentido de que o nascituro
não é titular de um direito à vida, cuja ofensa deva levar a
indemnização.
O Código Civil, nesse preceito, estatui que
a personalidade jurídica se adquire com o nascimento
completo e com vida. Mas o considerar‑se que a vida
intra‑uterina é uma das etapas da vida humana abrangida pela
exigência da sua inviolabilidade reclamaria da ordem
jurídica infra-constitucional a adopção de medidas que a
protejam e tutelem. Independentemente do juízo sobre a
necessidade da intervenção dos meios típicos de protecção
dos bens jurídicos disponibilizados pelo Direito Civil para
protecção da vida intra-uterina, verificar-se‑ia que a
intervenção desses meios não está dependente de um
reconhecimento de um direito à vida do nascituro concebido.
Aliás, a melhor forma de proteger uma
determinada entidade não passa necessariamente por se lhe
reconhecer subjectividade jurídica, mas sim pela respectiva
elevação à categoria de bem jurídico. E na verdade, na
tutela de um bem jurídico como é a vida intra-uterina, o
Direito Civil não só disponibilizaria a utilização de
medidas preventivas, intimações de abstenção e recurso a
acções inibitórias mas também facultaria o instituto da
responsabilidade civil.
Perante a lesão de bens jurídicos não
titulados, nada impediria que se atribuísse a determinados
sujeitos jurídicos o direito a receberem uma indemnização
pelo dano provocado por essa lesão. Seriam casos em que,
perante o sentimento duma atendível necessidade de
prosseguir, através do instituto da responsabilidade civil,
finalidades preventivas e punitivas, que prevenissem e
sancionassem a lesão de um bem jurídico, em face da
inexistência de um sujeito jurídico lesado, se atribuísse o
respectivo direito de indemnização a determinadas pessoas,
tendo em conta a especial relação que tivessem com o bem
lesado.
Não se revelando, pois, que o
reconhecimento deste direito subjectivo ao nascituro
concebido fosse imprescindível para que pudesse ser
assegurada a protecção conferida pelos meios civilísticos de
intervenção, não poderia considerar‑se que a interpretação
civilista de que o nascituro concebido não era titular de um
direito à vida violasse o disposto no artigo 24º, nº 1, da
Constituição. Mas isso não significava que a recusa em
atribuir um direito de indemnização pela morte de um
nascituro já não infringisse este parâmetro constitucional
por resultar num défice de protecção ao bem vida.
Se o valor social deste bem jurídico
poderia não exigir que o direito penal o protegesse de todo
o tipo de ameaças, já a ordem jurídica, encarada
globalmente, não poderia permanecer indiferente a actos que
atentassem contra a vida intra-uterina, nomeadamente os
resultantes de comportamentos negligentes. Ora, atento o
âmbito restrito dos domínios de intervenção do direito
disciplinar e a falta de eficácia das medidas civilísticas
de pura prevenção frente à imprevisibilidade dos actos
negligentes, não poderia o instituto da responsabilidade
civil deixar de ser recrutado para esta missão.
Aliás, em dimensões menos exigentes deste
bem jurídico, o instituto da responsabilidade civil não
teria deixado de intervir, tutelando, por exemplo, a
integridade física do feto, ao reconhecer um direito de
indemnização por ofensas corporais. Fora das teias da
construção dogmática que fixa o início da personalidade
jurídica no acto de nascimento (uma vez que, nestes casos, o
feto ofendido consegue nascer) aquele instituto atribui‑lhe
o direito de reclamar uma indemnização pelas ofensas
sofridas antes do nascimento, protegendo-se, assim, a sua
existência intra‑uterina.
Por força do princípio da suficiência de
tutela inerente ao Estado de Direito democrático, o recurso
deveria, pois, ter julgado inconstitucional a norma do
artigo 66º do Código Civil, quando interpretada no sentido
de que a morte de um nascituro não é dano indemnizável.
16. Parece irrebatível a argumentação
exposta a respeito da tutela do nascituro, independentemente
de se lhe reconhecer ou não personalidade jurídica (como
defendem alguns Autores) e de existir ou não tutela penal.
Os direitos fundamentais ou os bens jurídicos que lhes
subjazem podem ser afectados tanto por actos arbitrários
quanto por falta de protecção adequada, a que corresponderá,
num caso, inconstitucionalidade por omissão e, noutros
casos, desde logo, inconstitucionalidade por acção.
Também se afigura oportuno e correcto
falar‑se num princípio de suficiência da protecção. Ele é
uma componente ou um desdobramento do princípio de
proporcionalidade: pois, se este tende a ser encarado,
sobretudo, da óptica das medidas restritivas ou ablativas de
direitos, certo é que, a par de violações por excesso, não
raro, registam‑se violações por incumprimento por parte do
Estado de deveres de protecção; e pode dizer‑se então que
excesso equivale a desproporcionalidade positiva e défice de
protecção a desproporcionalidade negativa.
Não faltam mecanismos de efectivação da
responsabilidade civil extracontratual no Direito português.
O que se discutia no acórdão recorrido, era o seu
funcionamento após uma ocorrência como a da morte do
nascituro, nas circunstâncias descritas. Por, à face do
artigo 66º do Código Civil, não encarar o nascituro como
dotado de personalidade jurídica e de direito à vida, o
Supremo Tribunal de Justiça excluiu a existência de dano
indemnizável e, assim fazendo, atingiu a garantia
constitucional da inviolabilidade da vida humana. Tudo
estava, porém, em saber se a inconstitucionalidade seria do
acórdão em si ou de interpretação do artigo 66º do Código
Civil.
17. Um preceito pode permitir mais de uma
interpretação e pode, então, uma ser conforme com a
Lei Fundamental e outra não o ser – tudo se
passando como se, em potência (aos olhos do órgão de
decisão), ele contivesse tanto uma norma não
inconstitucional como uma norma inconstitucional. E o
Tribunal Constitucional, em jurisprudência constante,
entende que a questão de inconstitucionalidade tanto pode
respeitar à norma como à interpretação ou ao sentido com que
ela foi aplicada no caso concreto.
A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade, na fiscalização concreta, é imputada
a interpretação normativa daqueles em que é imputada
directamente a decisão judicial radica em que, na primeira
hipótese, é discernível na decisão recorrida a
adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume
o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações,
enquanto, na segunda hipótese, está em causa a aplicação dos
critérios normativos tidos por relevantes às
particularidades do caso concreto.
Ou, nas palavras de Carlos Lopes do Rego,
o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada
interpretação normativa, tem de incidir sobre o
critério normativo da decisão, sobre uma regra
abstractamente enunciada e vocacionada para uma aplicação
potencialmente genérica – não podendo destinar-se a
pretender sindicar o puro acto de julgamento,
enquanto ponderação casuística da singularidade
própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que
representa já uma autónoma valoração ou subsunção do
julgador, exclusivamente imputável à latitude própria da
conformação interna da decisão judicial – por ser evidente
que as competências e os poderes cognitivos do Tribunal
Constitucional não envolvem seguramente o controlo das
operações subsuntivas realizadas pelo julgador.
No caso em apreço, hesitamos entre um ou
outro termo da alternativa. Na dúvida, propenderíamos a que
o Tribunal Constitucional tivesse recebido e apreciado o
recurso, até porque, doutro modo, denegar‑se‑ia justiça – a
justiça, outro dos princípios estruturantes do Estado de
Direito democrático (artigos 2º, 9º, 202º, 266º, nº 2).
18. Seja como for, o que um
caso como este mostra é a conveniência de, em futura revisão
constitucional, introduzir a possibilidade de recurso de
decisões dos tribunais para o Tribunal Constitucional,
quando arguidas de violação, pelo menos, de direitos,
liberdades e garantias e depois de esgotados os recursos
ordinários que caibam.
IV
A lei de procriação
medicamente assistida
19. Trinta e um Deputados
requereram, no uso do poder conferido a mais de um décimo
dos Deputados à Assembleia da República pelo artigo 281º da
Constituição, a apreciação e a declaração de
inconstitucionalidade e ilegalidade com força obrigatória
geral da
Lei nº 32/2006, de 26 de Julho (lei de
procriação medicamente assistida), com fundamento em
inconstitucionalidade formal e violação de lei orgânica do
referendo e ainda, quanto a algumas as suas normas, com
fundamento em inconstitucionalidade material e em violação
da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina
(Convenção de Oviedo) e respectivo protocolo.
Pelo acórdão nº 101/2009,
de 3 de Março,
votado por maioria, o Tribunal Constitucional não declarou
nem a inconstitucionalidade formal, nem a material e recusou
tomar conhecimento do pedido nos demais aspectos.
20. A questão básica de
inconstitucionalidade formal levantada dizia respeito à
entrega ao Parlamento, na manhã do próprio dia de votação
final global, de uma iniciativa de realização de referendo
sobre as questões de procriação assistida, assinada por
78.333 eleitores (mais do que os que a lei orgânica do
referendo exige para o efeito).
Segundo os Deputados
requerentes, a não suspensão do procedimento legislativo até
à decisão sobre aquela iniciativa frustraria um instrumento
de democracia participativa com assento constitucional, em
consequência de uma agenda parlamentar que os seus
subscritores não dominavam. Haveria violação do artigo 115º da Constituição e
dos artigos 4º e 17º a 22º da lei orgânica do referendo.
O Tribunal rejeitou essa
fundamentação, mostrando a diferença entre a iniciativa de
realização de referendo perante a Assembleia da República e
a proposta de realização resultante de deliberação dela (ou
do Governo) e sublinhando que é só à formulação desta
proposta que o artigo 4º da lei orgânica do referendo
atribui efeito suspensivo do procedimento legislativo que
esteja em curso. O artigo 115º, nº 2 limita‑se a conferir
aos cidadãos eleitores o direito de iniciativa referendária,
e nada mais.
21. Passando às questões de
fundo, o Tribunal começou por definir os parâmetros à luz
dos quais havia de decidir: as normas constitucionais do
artigo 1º, consagrador da dignidade da pessoa humana como
base da República e a cuja salvaguarda o legislador, por
força do artigo 67º, nº 2, alínea e), está adstrito
na regulamentação da procriação medicamente assistida; a do
artigo 16º, nº 3, sobre interpretação de harmonia com a
Declaração Universal dos Direitos do Homem; e, naturalmente,
também a dos artigos 24º e segs., sobre direitos pessoais.
Afastou, entretanto, a
Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina
(Convenção de Oviedo) e o seu protocolo adicional, ou porque
as suas normas correspondiam a Direito constitucionalizado
sem valor paramétrico autónomo ou porque, envolvendo a sua
eventual infracção mera inconstitucionalidade indirecta,
reconduzível a ilegalidade, não podiam ser considerados em
face do artigo 281º da Constituição.
22. Relativamente ao artigo 4º
da Lei nº
32/2006, arguida pelos Deputados
requerentes de permitir a triagem de embriões humanos em
função de características morfológicas e genéticas, o
acórdão afirmou que o que estava em causa era o risco de
transmissão de doença e, por conseguinte, a mera tentativa
de evitar, por via da utilização de uma técnica de
procriação medicamente assistida, que o nascituro ou
um beneficiário do processo de procriação medicamente
assistida viesse a sofrer de uma doença, que
como tal pudesse ser caracterizada do ponto de vista médico
e que fosse susceptível de se transmitir por via hereditária
ou por contágio.
Estaria por isso
excluído, mesmo no quadro de uma interpretação literal do
preceito, que o nº 2 do artigo 4º implicasse qualquer
possibilidade de escolha do sexo de um descendente ou de
escolha de quaisquer outras características do nascituro que
não tivessem a ver, à partida, com a prevenção de doença.
Por outro lado, o
preceito não poderia deixar de ser interpretado no seu
enquadramento sistemático e, designadamente, em conjugação
com as subsequentes disposições dos artigos 7º, nºs 2 e 3, e
29º da mesma Lei, que permitiriam esclarecer com maior
precisão o seu alcance ou, pelo menos, os critérios gerais à
luz dos quais deveria ser integrado o conceito outras
doenças, a que ele se reporta
23. O artigo 6º, nº 2 da Lei
estabelecia um requisito etário mínimo para se beneficiar de
procriação medicamente assistida (18 anos), sem fixar um
simétrico requisito máximo. Mas o Tribunal notou que este se
achava implícito no regime legal instituído, pelo que não se
verificaria ofensa de valores constitucionais.
As técnicas de
procriação medicamente assistida seriam um método
subsidiário, e não alternativo, de procriação e só poderiam
ser utilizadas quando tivesse sido efectuado um prévio
diagnóstico de infertilidade, o que teria pressuposta a
ideia de que a mulher beneficiária se encontrava em idade em
que normalmente poderia procriar se não existisse um factor
inibitório de natureza clínica que tivesse afectado um dos
membros do casal. E o mesmo princípio teria aplicação quando
se pretendesse a utilização de técnicas de procriação
medicamente assistida para qualquer das finalidades
previstas na segunda parte do nº 2 do artigo 4º, porquanto,
ainda nesse caso, estaria suposto que a mulher se
encontrasse em idade potencialmente fértil e que o recurso à
procriação medicamente assistida resultasse apenas da
necessidade de evitar o risco de transmissão de doença ou de
providenciar o tratamento de doença grave de terceiro.
24. Relativamente à
norma do artigo 7º, nº 3, ela circunscrever‑se‑ia a dar
concretização prática a uma das finalidades da procriação
medicamente assistida, com o âmbito de aplicação legalmente
reconhecido, visando definir os pressupostos em que poderia
ocorrer a selecção de uma característica genética do embrião
para os apontados efeitos preventivos ou terapêuticos. E
essa possibilidade seria admitida a título subsidiário e
excepcional.
A possível lesão da
tutela reflexa da dignidade humana que o rastreio genético
do embrião poderia representar, teria, por conseguinte, como
contraponto a realização do direito à protecção da saúde em
relação a um terceiro que se encontrasse em perigo de vida,
pelo que a solução legislativa corresponderia, em última
análise, ao cumprimento por parte do Estado do direito à
protecção da saúde na sua vertente positiva, enquanto
destinada a assegurar a adopção de medidas que visem a
prevenção e o tratamento de doenças (artigo 64º, nº 1, da
Constituição).
Dentro do regime
jurídico definido pela lei, a alegada “instrumentalização”
do embrião mostrar-se‑ia assim justificada pela prevalência
de outros valores constitucionalmente tutelados – como
salvar a vida ou melhorar o estado de saúde de terceiros –,
também eles de natureza eminentemente pessoal, o que
desde logo excluiria que o controlo genético do embrião
pudesse ser considerado como lesivo do princípio da
dignidade da pessoa humana.
Nem a aplicação do
diagnóstico genético de pré-implantação implicaria um
qualquer risco para o desenvolvimento da criança que viesse
a nascer, quando o embrião fosse viável, nem haveria
qualquer evidência de que as circunstâncias que rodeariam a
concepção pudessem ser, de algum modo, lesivas do bem-estar
psicológico da criança dadora ou que esta pudesse vir a
considerar‑se diminuída na sua dignidade pelo facto de ter
sido concebida na previsão de poder vir a salvar a vida de
outrem
25. Quanto aos artigos
9º, nºs 2 a 5, e 30º, nº 2, alíneas i) e j),
relativos a investigação científica com embriões humanos, o
ponto essencial estaria em eles incidirem sobre embriões não
implantados no útero materno e relativamente aos quais se
não colocavam questões de constitucionalidade relacionadas
com o direito à vida ou os direitos de personalidade, sendo
apenas de considerar a protecção do embrião na perspectiva
da dignidade da pessoa humana na estrita medida em que o
embrião pudesse dar origem a uma vida humana se fosse viável
e viesse a ser utilizado num projecto parental.
Todavia, a norma proibia
a criação de embriões com o objectivo deliberado de
utilização na investigação científica (nº 1). E, por outro
lado, salvo a previsão constante do artigo 9º, nº 4, alínea
d), só poderiam ser aplicados na investigação os
embriões, criados para fins de procriação medicamente
assistida, que não tivesse sido possível enquadrar num
projecto parental, ou por não terem sido utilizados pelo
casal e este não ter autorizado a sua doação nos termos dos
artigos 10º e 25º, nº 5, ou por se terem tornado inviáveis
(em virtude de o seu estado não permitir a transferência ou
a criopreservação com vista à procriação), ou ainda por
serem portadores de anomalia genética grave [artigo 9º, nº
4, alíneas a) a c)]. Além disso, a
investigação com recurso a embriões só seria lícita para
qualquer das finalidades mencionadas no nº 2 do artigo 9º
(prevenção, diagnóstico ou terapia de embriões,
aperfeiçoamento das técnicas de procriação medicamente
assistida, constituição de bancos de células estaminais para
programas de transplantação ou com quaisquer outras
finalidades terapêuticas) e, como determinava o nº 3, desde
que fosse razoável esperar que daí pudesse resultar
benefício para a humanidade.
Por fim, o projecto científico
que envolvesse embriões deveria ser aprovado pelo Conselho
Nacional de Procriação Medicamente Assistida de acordo com
os critérios e objectivos definidos nos nºs 2 e 3 desse
preceito [cfr. artigo 30º, nº 2, alínea g)].
Quanto à clonagem terapêutica
não reprodutiva, o artigo 9º, nº 4, alínea d) teria
de ser conjugado com o artigo 9º, nº 1. Ora, este proibiria
a criação de embriões com o objectivo deliberado da sua
utilização na investigação científica, e, sendo esse o
critério essencial, pareceria dever concluir-se, sob pena de
existência de uma contradição insanável entre as duas
normas, que o legislador não considerava o produto da
clonagem por transferência nuclear somática como um
verdadeiro embrião, apesar de a formulação verbal do artigo
9º, nº 4, alínea d). Poderia assim tratar-se, na
perspectiva do legislador, de um mero artefacto
laboratorial, sem capacidade de vir a transformar-se em ser
humano.
Em todo o caso, a utilização em
investigação científica de embriões obtidos sem recurso à
fecundação por espermatozóide, como previa o artigo 9º, nº
4, alínea d), estaria sujeita ao mesmo grau de
protecção reservado para as demais situações elencadas nesse
preceito. Manter-se‑ia, designadamente, a exigência de
apreciação e aprovação do projecto de investigação por parte
do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida;
além de que a lei proibiria e sancionaria criminalmente a
clonagem com fins reprodutivos (artigo 36º), proibição que
decorre da necessidade de proteger direitos fundamentais
constitucionalmente consagrados.
26. Mais complexos eram os
problemas postos pela procriação heteróloga, ou seja, a
utilização da técnica de procriação medicamente assistida
que implicasse o recurso a gâmetas de dadores e a dádiva de
embriões.
O acórdão enfrenta‑os,
dizendo, em primeiro lugar, que a lei consagraria, como
decorreria de diversas das suas disposições, um princípio de
subsidiariedade em relação à aplicação das técnicas de
procriação heteróloga. A dádiva de espermatozóides, ovócitos
e embriões só seria permitida quando, em face dos
conhecimentos médico-científicos objectivamente disponíveis,
não pudesse obter‑se gravidez através do recurso a qualquer
outra técnica que utilizasse os gâmetas dos beneficiários
(artigo 10º, nº 1). E do mesmo modo, a inseminação com sémen
de um terceiro dador só poderia verificar-se quando não
fosse possível realizar a gravidez através de inseminação
com sémen do marido ou daquele que viva em união de facto
com a mulher a inseminar (artigo 19º, nº 1). O que seria
também aplicável na fertilização in vitro com recurso
a sémen ou ovócitos de dador e em relação a outras técnicas
de procriação medicamente assistida como a injecção
intracitoplasmática de espermatozóides ou a transferência de
embriões, gâmetas ou zigotos (artigos 27º e 47º).
Relativamente às normas
do Direito civil que permitem a adopção de filhos do outro
cônjuge ou a inclusão no seio de família de filhos não
concebidos na constância do matrimónio, a differentia
specifica ligado à procriação heteróloga estaria em que,
neste caso, a dissociação entre a paternidade/maternidade
social e a paternidade/maternidade biológica resultaria do
recurso intencional a uma técnica de procriação medicamente
assistida. Se houvesse de colocar-se uma questão de
identidade genética e de identidade pessoal, ela manteria
validade para qualquer daquelas situações, tradicionalmente
aceites no ordenamento jurídico português.
A garantia da identidade
genética referir-se‑ia especialmente à intangibilidade do
genoma e à unicidade da constituição genómica de cada um e
teria essencialmente o sentido de impedir a manipulação
genética do ser humano e a clonagem. Sendo assim, não seriam
as técnicas de medicina reprodutiva e a simples previsão do
recurso à inseminação artificial ou à fertilização in
vitro com gâmetas de um terceiro dador, com os limites
impostos pelo artigo 7º da
Lei nº 32/2006, que poderiam pôr em causa o
direito garantido pelo nº 3 do artigo 26º da Constituição.
Tão pouco se correria o risco
de uma “comercialização encapotada”, visto que a própria lei
proibiria a compra ou venda de óvulos, sémen ou embriões ou
de qualquer material biológico decorrente de aplicação das
técnicas de procriação medicamente assistida.
27. Nas normas do artigo 15º,
nºs 1 a 4, conjugadas com as do artigo 10º, nºs 1 e 2,
estariam em tensão diferentes direitos fundamentais (artigos
26º, nºs 1 e 3, da Constituição): o direito fundamental da
pessoa nascida de procriação medicamente assistida à
identidade pessoal, o direito ao conhecimento da sua
ascendência genética, o direito a constituir família e o
direito à intimidade da vida privada e familiar.
Mas o artigo 15º da Lei nº 32/2006 não
estabeleceria uma regra definitiva de anonimato dos dadores,
mas apenas uma regra prima facie, com excepções
expressamente previstas. Embora os intervenientes no
procedimento se encontrassem sujeitos a um dever de sigilo,
as pessoas nascidas na sequência da utilização de técnicas
de procriação medicamente assistida com recurso a dádiva de
gâmetas ou embriões poderiam, junto dos competentes serviços
de saúde, obter as informações de natureza genética que lhes
dissessem respeito (nº 2), bem como informação sobre
eventual existência de impedimento legal a um projectado
casamento (nº 3), assim como poderiam obter informações
sobre a identidade dos dadores de gâmetas quando se
verificassem razões ponderosas, reconhecidas por sentença
judicial.
Depois, a identidade
pessoal seria um conceito referido à pessoa e que se
constrói ao longo da vida em vista das relações que nela se
estabelecem, constituindo os vínculos biológicos apenas um
desses aspectos. As posições jurídicas contidas no direito à
identidade pessoal, como o direito ao conhecimento das
origens genéticas, não teriam necessariamente uma força
jurídico-constitucional uniforme e totalmente independente
dos diferentes contextos em que, efectivamente, se
desenvolveria essa identidade pessoal. O reconhecimento de
um direito ao conhecimento das origens genéticas não
impediria que o legislador pudesse modelar o exercício de
tal direito em função de outros interesses ou valores
constitucionalmente tutelados que pudessem reflectir-se no
conceito mais amplo de identidade pessoal.
Além disso, o direito a
constituir família seria certamente um factor a ponderar na
admissibilidade subsidiária da procriação heteróloga. Ao
admitir‑se uma modalidade de procriação medicamente
assistida que pressupõe a doação de gâmetas por um terceiro,
mal se compreenderia que se estabelecesse um regime legal a
ela relativo que fosse tendente a afectar a paz familiar e
os laços afectivos que ligam os seus membros. Não seria de
considerar constitucionalmente inadmissível que o legislador
criasse as condições para que fossem salvaguardadas a paz e
a intimidade da vida familiar.
Finalmente, o Conselho
Nacional de Procriação Medicamente Assistida possuiria a
informação sobre a identidade dos dadores e poderia
prestá-la nos termos e com os limites previstos no artigo
15º, quer fornecendo dados de natureza genética, quer
identificando situações de impedimento matrimonial, e sem
excluir a possibilidade de identificação do dador quando
fosse proferida decisão judicial que verificasse a
existência de razões ponderosas que tornassem justificável
essa revelação [artigo 30º, nº 2, alínea i)]. Além
disso, as razões ponderosas referidas no artigo 15º, nº 4,
da Lei nº 32/2006, deveriam ser
consideradas à luz do direito à identidade pessoal e do
direito ao desenvolvimento da personalidade, que, nesses
termos, poderiam merecer prevalência na apreciação do caso
concreto.
28. A respeito do
regime da filiação na reprodução heteróloga, os Deputados
requerentes faziam especial referência ao artigo 20º, nº 5,
da Lei nº 32/2006, considerando
que este, ao permitir a impugnação da paternidade presumida
quando não tivesse havido consentimento do marido à
inseminação heteróloga da mulher, contrariaria o disposto no
artigo 6º, nº 1, do mesmo diploma e violaria o direito da
criança à protecção da sociedade, e, designadamente, o
direito a beneficiar da estrutura familiar biparental da
filiação.
Porém, para o Tribunal,
aquele artigo 20º, nº 5, não afastaria nem poria em causa o
princípio da biparentalidade enunciado no precedente artigo
6º, nº 1. A regra não deixaria de ser que “[s]ó as pessoas
casadas que não se encontrem separadas judicialmente de
pessoas e bens ou separadas de facto ou as que, sendo de
sexo diferente, vivam em condições análogas às dos cônjuges
há pelo menos dois anos podem recorrer a técnicas de
procriação medicamente assistida”.
Por outro lado, o artigo
20º estabeleceria uma presunção de paternidade em relação ao
cônjuge que tivesse consentido na inseminação heteróloga da
mulher (nº 1), impedindo – como também resulta do seu nº 5 –
que este viesse a exercer posteriormente o direito de
impugnação da paternidade presumida. E seria contrário à boa
fé que quem tivesse aceite um processo de inseminação
heteróloga para solucionar o seu próprio problema de
esterilidade, conformando-se com a investidura na função
social de pai, apesar de não ser o progenitor biológico,
viesse depois contestar o vínculo de filiação.
O consentimento do
marido ou da pessoa unida de facto seria acautelado por lei
com a máxima prudência. Deveria, nos termos do artigo 14º,
nº 1, ser prestado de “forma expressa e por escrito, perante
médico responsável” e, nos termos do nº 2 desse mesmo
artigo, “devem os beneficiários ser previamente informados,
por escrito, de todos os benefícios e riscos conhecidos
resultantes da utilização das técnicas de procriação
medicamente assistida, bem como das suas implicações éticas,
sociais e jurídicas”.
Em face de todas as
cláusulas de salvaguarda, a possível ocorrência de conflitos
negativos de paternidade apenas poderia derivar de situações
de anormalidade, de nenhum modo podendo atribuir-se ao
legislador a intencionalidade de instituir um regime de
monoparentalidade.
29. Os Deputados requerentes
sustentavam que os artigos 24º e 25º da Lei nº 32/2006 consagravam um
princípio de criação discricionária de embriões e permitiam
a ocorrência de gravidezes múltiplas, por simples exercício
do poder médico e científico, potenciando situações de
malformação fetal, o que violaria os artigos 64º, 67º, nº 2,
alínea e), e 68º da Constituição.
O Tribunal negou a
existência de tal princípio. Pelo contrário, o legislador
assentaria num princípio de necessidade, avaliado
segundo um critério médico, e tendo em conta a situação
clínica do casal. Haveria uma lógica de intervenção mínima
segundo um cálculo de probabilidade e associando o processo
de fecundação à finalidade de procriação.
Não sendo possível
garantir, à partida, uma total correspondência entre o
número de embriões criados e o número de embriões
transferidos para o útero sendo de admitir a existência de
embriões “que, por circunstâncias ou razões imponderáveis”,
são “excluídos do seu projecto parental originário”, a
ocorrência de embriões excedentários surgiria como uma
inevitabilidade, que só poderia ser prevenida através da
proibição em geral da fertilização in vitro. Mas isso
não deixaria de constituir um injustificável retrocesso no
desenvolvimento da biomedicina e seria incompatível com a
referência valorativa que decorre do artigo 67º, nº 2,
alínea e), da Constituição.
30. Os Deputados
requerentes entendiam também que o diagnóstico genético
pré‑implantação previsto nos artigos 28º e 29º da lei,
destinando‑se à produção de seres humanos seleccionados
segundo qualidades pré-estabelecidas, constituiria uma
manipulação contrária à dignidade, integridade e identidade
única e irrepetível do ser humano.
O Tribunal considerou a
questão, distinguindo nesse diagnóstico ora uma finalidade
de selecção positiva de embriões, ora uma finalidade de
selecção negativa. No tocante à primeira, tendo‑se já
concluído pela admissibilidade constitucional de recurso à
procriação medicamente assistida para tratamento de doença
grave, não poderia deixar de se seguir idêntico entendimento
relativamente à realização do diagnóstico genético
pré‑implantação quando ele visasse essa mesma finalidade,
visto que assume, nessa circunstância, uma mera função
instrumental. No tocante à segunda, aquele diagnóstico
permitiria a detecção dos embriões portadores da doença
genética e preveniria o abortamento precoce e o nascimento
de pessoas com problemas graves de saúde.
A razão fundamental que
se poderia invocar em desfavor da utilização do diagnóstico
pré‑implantação seria o ele implicar a destruição de
embriões e de potenciar formas de eugenismo que pudessem
considerar-se contrárias à dignidade da pessoa humana
[artigos 1º e 67º, nº 2, alínea e)]. No entanto,
tratar‑se‑ia sempre de embriões num estádio muito inicial de
desenvolvimento, mais concretamente, entre o 3º e o 6º dias
de desenvolvimento. E, dado o objectivo terapêutico
imediato, valeriam, por maioria de razão, as considerações
feitas a respeito da investigação com embriões.
Manifestar‑se‑ia aqui,
mais uma vez, a diferença ética de grau entre um
inadmissível utilitarismo positivo e um tolerável
utilitarismo negativo − o que não é admissível para aumentar
a felicidade de terceiros, pode sê-lo para minorar o
sofrimento de cada um. O diagnóstico genético de
pré‑implantação, inadmissível para escolher características
subjectivamente consideradas desejáveis pelos pais, seria
legítimo para prevenir uma doença grave (e, portanto,
objectivamente indesejável) do nascituro.
31. Os Deputados
requerentes impugnavam o artigo 36º da Lei por não cominar a
punição penal da clonagem reprodutiva no âmbito da
procriação medicamente assistida.
Para o Tribunal, nada
permitiria concluir que o artigo 36º, nº 1, da
Lei nº 32/2006 tivesse excluído a
criminalização da clonagem reprodutiva. A ressalva aí feita
apenas poderia ser interpretada como abrangendo os casos em
que a transferência de núcleo fosse levada a cabo, como
técnica secundária, subordinadamente necessária para a
aplicação das técnicas de procriação medicamente assistida
previstas, nomeadamente nas alíneas b), c) e
d) do artigo 2º, sem pôr em causa a proibição do
artigo 7º, nº 1, que objectivamente impenderia sobre as
técnicas de procriação medicamente assistida, de criação de
seres geneticamente idênticos.
32. Sustentavam, por fim, os
Deputados requerentes que o artigo 39º apenas sancionava a
maternidade de substituição a título oneroso, nada
estatuindo acerca dos negócios gratuitos. E, essa falta de
sanção revelaria permissividade relativamente ao negócio da
maternidade de substituição, representaria um risco para a
dignidade e outros direitos do ser humano e constituiria
fraude à lei, por ir contra o estabelecido no artigo 8º do
mesmo diploma, colidindo assim com as disposições dos
artigos 25º, 26º, 67º e 68º da Constituição e todas as
disposições da Convenção de Oviedo.
A isso contrapõe o
acórdão que o preceito proibiria claramente a celebração de
negócios jurídicos de maternidade de substituição,
independentemente de serem onerosos ou gratuitos,
qualificando-os como nulos (nº 1). E que o nº 3 do mesmo
artigo esclareceria, em conformidade com o regime da
nulidade, que “a mulher que suportar uma gravidez de
substituição de outrem é havida, para todos os efeitos
legais, como a mãe da criança que vier a nascer”. Esse
regime não revelaris permissividade do legislador e
permitiria aplicar‑se a regra de estabelecimento da filiação
constante do
artigo 1796º,
nº 1, do
Código Civil, segundo a qual, relativamente
à mãe, a filiação resulta do facto do nascimento.
O legislador teria sido
coerente com o regime proibitivo, prevendo expressamente os
efeitos da violação de proibição de realização de negócios
de maternidade de substituição. Simplesmente, teria optado
por diferenciar esses efeitos, consoante o negócio fosse
gratuito ou oneroso: em ambos os casos, um efeito civil (a
nulidade do negócio) e, no segundo caso, também uma sanção
criminal.
Esta matéria
situar‑se‑ia ainda dentro da margem de livre deliberação
legislativa. O legislador poderia legitimamente optar por
não criminalizar condutas que, embora tivessem resultados
socialmente indesejáveis, se situassem em contextos pessoais
e emocionais de tal forma complexos que se tornaria difícil
formular um juízo global de censura, nos termos em que tal
juízo vai pressuposto em toda a sanção penal.
33. Votaram vencidos, em
parte, os juízes Maria Lúcia Amaral e Benjamim Rodrigues.
Segundo aquela juíza, o
Tribunal teria deixado na penumbra a questão de saber de
que modo pode a dignidade da pessoa humana ser
“utilizada” na concretização e na delimitação do conteúdo de
direitos fundamentais. A regulação legislativa das técnicas
de procriação medicamente assistida atingiria direitos que
precisariam de ser entre si sopesados e ponderados.
Admitindo que o sentido da ordem de regulação contida no artigo 67º da Constituição se
esgotava nisso mesmo – em conferir ao princípio [da
[dignidade] o alcance de instrumento interpretativo auxiliar
da ponderação a fazer entre outros direitos ou
princípios – ainda assim o princípio só se tornaria
operativo se se soubesse de que modo poderia ele
contribuir para a “concretização” e “delimitação” do
conteúdo de outras normas jusfundamentais.
Mas, para além de não ter
ficado esclarecido que contornos objectivos deteria o
princípio, teria ficado ainda por esclarecer qual o exacto
âmbito da sua aplicação subjectiva.
Apesar de reconhecer que o
embrião, ainda que não implantado, é susceptível de
potenciar a existência de uma vida humana, o Tribunal tinha
entendido que em relação a ele se não podia aplicar a
garantia da protecção da vida humana, enquanto bem
juridicamente protegido, precisamente por se tratar de uma
“existência” ainda não implantada. Isto significaria que o
Tribunal tinha definido o conceito constitucional de vida
da seguinte forma restritiva: a fronteira que separa a vida
e a não-vida (e, consequentemente, a fronteira que separa o
“território” em que deve existir alguma protecção dada pelo
Estado e pelo Direito do “território” da desprotecção) seria
a diferente localização, intra ou extra-uterina, do embrião.
Sem deixar de admitir que entre
“vida potencial” e “vida actual” existe uma inquestionável
gradação valorativa, tal não justificaria que a vida
potencial extra-uterina fosse tida, para efeitos da
determinação do correspondente conceito constitucional e do
âmbito objectivo de protecção da norma contida no artigo 24º
da Constituição, como algo que se situaria aquém da
protecção, constitucionalmente fundada e por isso mesmo
devida, do Estado e do Direito. Antes do mais, porque
uma tal concepção restringiria sem qualquer fundamento as
possibilidades conformadoras do Bio-Direito, ou Direito da
Bio-ética, como também é chamado.
Para quem entenda que todos os
embriões (incluindo os não implantados) são objecto da
protecção conferida pelo nº 1 do
artigo 24º da Constituição, por não poderem
situar-se fora do conceito constitucional de vida, o
dito do nº 1 do artigo 9º da Lei não corresponderia (não
poderia corresponder) a uma escolha livre do legislador.
E assim seria não apenas por se encontrar o Estado português
vinculado a uma obrigação internacional, assumida
convencionalmente; seria assim, antes do mais, por
imperativo constitucional, que obrigaria o Estado, desde
logo através do legislador, a proteger o bem “vida” de uma
instrumentalização que o degradasse à condição de
objecto, de mero meio para a obtenção de um fim ou de medida
substituível. Que o “fim” fosse a liberdade de
investigação científica (artigo 42º da Constituição), ou
a realização do direito à saúde (artigo 64º) não
justificaria, por si só, a utilização de quaisquer meios. A
“dignidade” a que se refere o artigo 67º, nº 2, alínea e) da
Constituição ostentaria aqui o seu verdadeiro âmbito
subjectivo de aplicação: as técnicas de procriação
medicamente assistida não devem ser usadas para a criação de
embriões com o intuito deliberado de os submeter a projectos
de investigação científica, porque tal implicaria uma
“instrumentalização” contrária ao disposto nos artigos 24º,
nº 1; 67º, nº 2, alínea e) e 1º da Constituição.
Mas seria isso que, justamente,
decorreria de um sistema legislativo que repousaria sobre
duas cláusulas gerais: (i) criarem-se tantos
embriões quanto os necessários para o êxito do processo;
(ii) serem admissíveis os projectos de experimentação sobre
embriões, desde que fosse razoável esperar que deles
resultasse benefício para a humanidade.
34. Merece todo o apoio a
posição tomada pelo Tribunal acerca da questão de
inconstitucionalidade formal e acerca das normas de Direito
internacional convencional.
Embora o regime do referendo
nacional constante do
artigo 115º da Constituição e da Lei nº 15‑A/98, de 3 de Abril
(com as alterações da
Lei Orgânica nº 4/2005, de 8 de Outubro)
seja, decerto, bastante restritivo, compreende‑se,
perfeitamente, que a apresentação de uma iniciativa de
referendo por grupos de cidadãos‑eleitores (no mínimo
75.000) não possa paralisar o procedimento legislativo
parlamentar, sobretudo depois de já ter havido uma votação
favorável (na generalidade ou na especialidade). O
Parlamento poderá interrompê‑lo (como aconteceu em 1998 com
a lei da interrupção voluntária da gravidez), não é obrigado
a fazê‑lo.
Coisa diferente será, na
hipótese de ter sido apresentada uma proposta de referendo,
o Parlamento não votar a proposta ou o projecto de lei antes
de deliberar sobre se a acolhe ou não. Neste caso, mesmo sem
norma expressa, o respeito pelo princípio de participação
política dos cidadãos recomendará instantemente esse
cuidado.
Também poderá, porventura,
entender‑se estranho que o Tribunal Constitucional possa
conhecer, em fiscalização abstracta, da conformidade de
qualquer lei com uma lei de valor reforçado [artigo 281º, nº
1, alíneas a), b) e c)] e que não possa
conhecer da conformidade com normas de Direito
internacional, objecto de recepção automática na ordem
interna (artigo 8º) e que têm força superior à das próprias
leis reforçadas. Porém, é esse, por enquanto, o sistema. Ao
Tribunal apenas chegam questões de contradição de normas
internas com normas internacionais no âmbito de fiscalização
concreta [artigo 70º, nº 1, alínea i) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
após a Lei nº
85/89, de 7 de Setembro].
35. Ao equacionar as questões
de inconstitucionalidade material, o acórdão revela um
esforço consciencioso de informação científica e um não
menos exaustivo trabalho de interpretação sistemática de
diploma legal e de ponderação de interesses constitucionais
em presença na delicadíssima matéria da procriação
medicamente assistida.
A argumentação que, a partir
daí, é desenvolvida mostra‑se quase sempre consistente,
embora tudo venha a depender, em última análise, do modo
como os operadores médicos e jurídicos venham a apreendê‑la
e a tomá‑lo como linha norteadora das suas práticas (e seria
importante, neste momento, passados já mais de três anos
sobre a entrada em vigor da lei, efectuar uma avaliação do
que tem sido a sua execução).
Há, porém, três questões em que
o Tribunal não convence, por desconsiderar ou considerar
menos adequadamente o princípio do respeito pela vida humana
individual. São as que decorrem do artigo 7º, nº 3, sobre
rastreio genético dos embriões, dos artigos 9º, nºs 2 a 5, e
30º, nº 2, alíneas i) e j), sobre investigação
científica em embriões (se bem que embriões ainda não
implantados) e dos artigos 9º, nº 4, alínea d), sobre
clonagem terapêutica não reprodutiva. Aqui, pelo menos, são
legítimos as maiores dúvidas sobre se (para empregar uma
expressão da juíza Maria Lúcia Amaral) não se verificará uma
instrumentalização do bem vida em favor de outros
bens, de menor valor constitucional.
V
Execução de penas. Colocação
de recluso em regime aberto ao exterior. Função
administrativa e função jurisdicional
36. O Presidente da República
requereu a fiscalização preventiva da norma do artigo 14º,
nº 6, alínea b) do Decreto do Parlamento de aprovação
de um novo Código de Execução das Penas, enquanto conjugada
com as normas do artigo 14º, nº 1, alíneas a) e b),
por atribuir a um órgão de administração penitenciária o
poder de decidir sobre a colocação dos reclusos em regime
aberto ao exterior e isso implicar uma intrusão no exercício
da função jurisdicional, privativa dos tribunais.
O Tribunal
Constitucional, pelo acórdão nº 427/2009, de 28 de Agosto,
não considerou, porém, que essa norma fosse desconforme com
a Constituição.
37. Segundo o Presidente da
República, a decisão de forma e de fundo sobre a concessão
do regime aberto ao exterior reclamaria um juízo imparcial
de tutela e composição de conflitos entre os direitos e
interesses dos detidos e o interesse público representado
pela Administração; e, pelo menos, os juízos de fundo que
têm por objecto a protecção da vítima e a defesa da ordem e
paz social incorporariam, necessariamente, o âmbito material
da reserva do juízo.
Tal decisão não poderia ser
cometida ao Director‑Geral dos Serviços Prisionais, o qual,
como órgão administrativo dependente do Governo, não
assumiria uma posição distinta dos direitos e interesses em
conflito, já que se encontraria vinculado à prossecução do
interesse público da Administração, que pode não coincidir
com o do condenado ou com o da vítima.
Ao formular um juízo decisório
de direito sobre a adequação do regime de abertura ao
exterior à protecção da vítima e à garantia de paz social,
com substituição de prisão efectiva por um regime de acesso
a um meio livre sem vigilância directa (cujo conteúdo o
diploma parlamentar se abstinha de definir), verificar‑se‑ia
que essa decisão administrativa acabaria por modificar os
pressupostos, os termos e o sentido da sentença
condenatória.
38. Em linha bem diferente, o
acórdão sustentou que da comparação entre o modelo até então
vigente e o “novo modelo” não decorreria que o regime aberto
ao exterior tivesse deixado de ser “um instrumento de
flexibilização da execução de penas, intrínseco à gestão da
vida interna da prisão e, como tal, pertencendo ao domínio
da administração prisional”.
Não obstante, a colocação de
reclusos nesse regime teria como pressuposto o gozo prévio
de uma licença de saída jurisdicional com êxito e os
critérios gerais de concessão desta licença coincidiria, em
larga medida, com os da colocação em regime aberto ao
exterior [artigos 14º, nº 1, 78º, nºs 1 e 2, e 79º, nº 2,
alínea c) do Código aprovado pelo diploma da
Assembleia]. A isso acrescendo ser a decisão comunicada ao
Ministério Público junto do Tribunal de Execução das Penas
para verificação da legalidade e com possibilidade de
impugnação perante esse Tribunal (artigos 14º, nº 8, 197º,
198º, 199º e 200º).
Mas, de todo o modo, a colocação do recluso
em regime aberto no exterior não seria comparável às
decisões que naquelas normas estão reservadas ao juiz.
Nomeadamente, não seria comparável à concessão da liberdade
condicional e à concessão de saídas precárias prolongadas
[artigos 91º, nº 2, alínea a), e 92º, alínea d),
da Lei nº 3/99 e 124º, nº 2, alínea a), e 125º,
alínea d), da Lei nº 52/2008].
Diversamente do que
acontece quando é concedida a liberdade condicional ou se
admitem saídas precárias (prolongadas), quando o
Director‑Geral dos Serviços Prisionais coloca o recluso em
regime aberto no exterior não haveria qualquer alteração
do conteúdo da sentença condenatória. Esta
decisão continuaria a ser de privação da liberdade,
havendo, tão-só, uma alteração do conteúdo da
execução da pena de prisão, político-criminalmente
justificada por referência aos princípios
jurídico-constitucionais da socialidade e da necessidade da
intervenção penal. Não extravasaria a natureza de
medida de flexibilização da execução da pena de prisão.
A execução da pena de prisão
orientar-se‑ia pelo princípio da individualização do
tratamento prisional, inevitavelmente programado e
faseado, favorecendo a aproximação progressiva à vida livre,
através das necessárias alterações do regime de execução
(artigos 5º, nºs 1 e 3, 12º, nº 1, 22º, nº 3, e 76º, nºs 2 e
3, do Código aprovado pelo Decreto nº 366/X e artigos 3º, nº
2, e 58º, nº 1, do Decreto-Lei nº 265/79).
A
colocação do recluso em regime aberto no exterior – uma das
modalidades dos regimes de execução da pena de prisão – não
integraria a actividade de repressão da violação da
legalidade democrática que o artigo 202º, nºs 1 e 2, da
Constituição reserva aos tribunais. E não integraria na
decisão de colocação em regime aberto no exterior não
ressurgiria o conflito jurídico‑penal emergente da prática
do crime, entretanto já resolvido na sentença condenatória.
39. Houve duas declarações de
voto contrárias, dos juízes João Cura Mariano e Rui Moura
Ramos.
Na primeira, disse‑se que se
“a sentença condenatória definiu o tipo e a medida da pena
aplicada, a decisão sobre a colocação do recluso em
regime aberto no exterior, define o concreto regime
daquela pena, pelo que desempenharia um papel tanto ou mais
importante que a primeira no modo de repressão penal da
violação da legalidade democrática.
“Nessa
decisão terão que ser ponderados o comportamento prisional
anterior do recluso, o perigo de este aproveitar o tempo de
liberdade para se subtrair à execução da pena ou delinquir,
a protecção da vítima e a defesa da ordem e da paz social
(artigo 14º, nº 1, a) e b), do C.E.P.M.P.L., aprovado pelo
Decreto nº 366/X).
“É mais uma
vez a resolução do conflito entre os valores da liberdade e
dos direitos individuais e a defesa da sociedade vigente que
está em jogo nesta decisão.
“Ora, se na
divisão dos poderes estaduais não há dúvidas sobre a
natureza necessariamente judicial da sentença que aplica
penas criminais, a qual é especificamente imposta no nosso
texto constitucional no nº 2, do seu artigo 27º, também a
decisão de colocação dos reclusos em regime aberto no
exterior, por se traduzir numa determinação do conteúdo
essencial duma pena de prisão anteriormente imposta, deve
comungar da mesma natureza”.
Na segunda, salientou‑se que a
colocação em regime aberto no exterior prevista no artigo
14º do Código aprovado pelo artigo 1º do Decreto nº 366/X constituiria uma modelação da
execução de pena de prisão que, pela importância de que se
revesteria para a ressocialização do condenado, constituiria
algo mais que um mero instrumento de flexibilização da pena
de prisão intrínseco à gestão da vida interna da prisão.
40. O argumentatório do
acórdão, bastante bem informado, afigura‑se mais
convincente.
Se dúvidas puderem subsistir,
elas ficarão ultrapassadas, por, como ali se refere, ter de
haver comunicação ao Ministério Público e ter este a
faculdade de arguir a decisão da Administração prisional
perante o Tribunal de Execução das Penas – pelo que a última
palavra, no caso, vir a ser ainda a de um Juiz. Será
situação semelhante à das contra‑ordenações, em que as
coimas são aplicadas pela autoridade administrativa, mas em
que há sempre recurso para tribunal.
VI
Constituição e casamento de
homossexuais
41. Duas pessoas do sexo
feminino pretenderam celebrar casamento numa conservatória
de registo civil, mas o conservador indeferiu o pedido por
não o permitirem os artigos 1577º e 1628º, alínea e),
do Código Civil e por não ter competência para apreciar a
eventual inconstitucionalidade desses preceitos.
Tendo recorrido para o tribunal
civil da comarca de Lisboa e deste para a Relação, estes
tribunais não lhes deram razão. Por isso, interpuseram
recurso da decisão da Relação para o Tribunal
Constitucional, com fundamento nas normas dos artigos 13º e
26º, nº 1 (proibição de discriminação com base na orientação
sexual), 36º (direito de constituir família e celebrar
casamento), 67º (protecção da família), 283º (fiscalização
de inconstitucionalidade por omissão).
O Tribunal, em secção,
negou provimento ao recurso pelo acórdão nº 359/2009, de 9
de Julho.
42. As recorrentes, conforme
se lê na parte inicial do acórdão, alegaram, designadamente:
– O acesso de um casal de
duas pessoas do mesmo sexo apenas à união de facto, ao
contrário dos casais heterossexuais que optam livremente
entre a união de facto e o casamento, envolve uma
discriminação;
– O casamento é um
instrumento de exercício dos direitos à afirmação da
identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade no
respeito da reserva da intimidade da vida privada, direitos
salvaguardados num Estado de Direito democrático, assente no
primado da dignidade humana;
– O casamento entre pessoas
do mesmo sexo não é uma nova “forma de celebração” ou um
“novo tipo de casamento”, mas sim o casamento referido como
objecto de protecção no artigo 36º, nº 1 da Constituição;
– A associação simbólica
atribuída pelo Estado ao casamento é um bem jurídico posto
ao alcance de todos que pretendam a sua inclusão formal nas
suas representações e expectativas sociais típicas;
– É no tratamento de
situações que se inserem em categorias socialmente
minoritárias ou sociologicamente desfavorecidos que o
princípio constitucional da igualdade coloca a sua principal
força, tutelando um direito “à diferença” ou “de diferença”;
– Neste sentido, o princípio
de igualdade não comanda que se trate de forma diferente o
que “é diferente”, mas sim que se trate de forma igual o que
“é diferente”;
– O casamento não tem uma
“função procritativa”, pois não existe na lei civil limite
máximo à idade para casar, nada obsta ao casamento de
pessoas inférteis, a infertilidade não é fundamento de
divórcio, o casamento pode ser celebrado com urgência em
face do perigo de morte dos cônjuges, o acordo dos nubentes
no sentido de não terem filhos não vale como pactum
simulationis;
– Ao Estado não cabe
interferir na esfera de autonomia de cada pessoa, emitindo
comandos penalizadores baseados em determinações morais;
– A proibição do casamento
homossexual é um análogo perfeito da proibição de casamento
entre pessoas de “raças” diferentes, quer nas suas
circunstâncias sociais e históricas, quer nos argumentos
usados, quer nos efeitos jurídicos e de facto.
43. Por seu turno, o
Ministério Público alegou, designadamente, o seguinte:
– O princípio da igualdade
comporta uma vertente de controlo negativo, destinando‑se a
sua aplicação, não a permitir ao juiz (mesmo ao
constitucional) substituir‑se ao legislador,
democraticamente eleito, na realização das ponderações
constitutivas para que está legitimado, mas tão somente a
banir do ordenamento jurídico soluções arbitrárias,
discricionárias, absolutamente carecidas de qualquer suporte
material razoável e adequado;
– Podendo, de acordo com os
entendimentos e sensibilidades pessoais, e da comunidade
jurídica, em cada momento histórico, questionar‑se a opção
legislativa, plasmada no nosso Código Civil, não pode
qualificar‑se o regime jurídico em vigor como absolutamente
carecido de qualquer suporte material – e, portanto,
traduzindo a imposição de uma solução legislativa puramente
“arbitrária”;
– Nada obriga o legislador
infraconstitucional a acolher, em termos plenos e
absolutamente igualitários, os vários conceitos sociológicos
de “família”, de modo a que – por directa imposição
constitucional – a todos os tipos de família tenha de
outorgar exactamente o mesmo grau de reconhecimento e de
tutela legal;
– A argumentação das
recorrentes implicaria – a proceder o recurso, por se
considerar, porventura, que a “discriminação” imputada pelas
recorrentes à lei civil, traduziria violação do princípio da
igualdade – que devesse este Tribunal Constitucional
proferir “decisão aditiva”, ampliando jurisprudencialmente o
próprio instituto legal do casamento, tal como decorre, na
sua fisionomia essencial, das previsões normativas da lei
civil;
– Tal tipo de decisão, sendo
a forma tida por adequada para repor o princípio
constitucional da igualdade, quando violado por determinado
regime restritivo, limitativo ou “discriminatório”, carece
de ser utilizado com particulares cautelas, podendo o seu
uso, excessivo ou imoderado, ser dificilmente compatível com
a proibição constitucional de exercício de funções
materialmente legislativas pelo órgão jurisdicional,
subjacente ao princípio estruturante da separação de
poderes;
– Um limite às decisões
“modificativas” ou “aditivas” verifica‑se nos casos em que a
exacta definição do regime jurídico que irá decorrer da
ampliação do sentido possível comportado pela norma em causa
não decorre automaticamente de uma norma ou princípio
constitucional, dependendo inelutavelmente do exercício de
uma margem de “discricionariedade legislativa” – podendo o
respeito pela lei Fundamental ser plenamente assegurado
através do estabelecimento de diferenciados regimes
normativos;
– Nada impede que – entre as
figuras do “casamento”, tal como está actualmente regulado
no Código Civil, e da mera “união de facto”, sujeita a uma
tutela jurídica meramente “parcelar” ou “residual” – a opção
legislativa, eventualmente ditada pelo princípio da
igualdade, se possa legitimamente traduzir‑se na criação de
uma inovatória figura intermédia, detentora de um
reconhecimento ou tutela jurídica, eventualmente acrescida
relativamente às meras “uniões de facto”, mas diferenciada,
relativamente ao conjunto de efeitos jurídicos associados
pelo Código Civil à celebração do casamento [...].»
44. A isso responderam assim
as recorrentes:
– Ainda que o legislador
tivesse a referida liberdade de criar um “meio alternativo”
ao casamento – numa linha, diga‑se, separate but equal
... – a “decisão aditiva” que consiste em declarar a
inconstitucionalidade das actuais regras do Código Civil que
vedam o casamento a casais do mesmo sexo continuaria a ser a
única via correcta para o Tribunal Constitucional;
– Isto porque, de facto e
actualmente, não existe esse regime alternativo;
– Tal como as leis estão hoje
formuladas, o casamento é o único dispositivo legal capaz de
dar aos casais do mesmo sexo que a desejem a protecção que o
Ministério Público – e bem! – reconhece ser
constitucionalmente imposta.
– Quando só há um regime
jurídico que confere uma protecção constitucionalmente
relevante e, aliás, exigida, não pode o legislador
restringi‑lo a uma categoria de pessoas em violação da
igualdade.
45. O Tribunal não julgou
inconstitucional o artigo 1577º do Código Civil.
Com “clara percepção” do modo
como o problema tem sido encarado por tribunais homólogos,
“com resultados nem sempre coincidentes” (nº 7) e pelas
legislações de vários países europeus, considerou
“especialmente relevante” para o caso em presença (nº 10) os
nºs 1 e 2 do artigo 36º da Constituição (com redacção
inalterada desde 1976) e aduziu três argumentos nesse
sentido (nºs 10 a 14).
Em primeiro lugar, se o
legislador constitucional tivesse querido introduzir uma
alteração da configuração legal do casamento, impondo ao
legislador ordinário a obrigação de legislar no sentido de
passar a ser permitido a sua celebração por pessoas do mesmo
sexo, decerto que o teria afirmado explicitamente, sem se
limitar a legitimar o conceito configurado pela lei civil; e
não lhe faltaram ocasiões para esse efeito, ao longo das
revisões constitucionais subsequentes.
E ficaria totalmente por
explicar a razão pela qual o legislador constitucional não
completou a suposta imposição do casamento
homossexual, aditando ao artigo 36.º da Constituição uma
determinação nesse sentido, pois não seria legítimo pensar –
precisamente por força da alteração ao n.º 2 do artigo 13.º
feita em 2004 – que tivesse admitido ser desnecessária
uma referência normativa expressa com esse objectivo.
Em segundo lugar, se os efeitos
jurídicos do casamento não pressupõem a possibilidade ou
sequer a vontade de procriar, não deixaria de haver uma
conexão entre casamento e procriação, sendo ele a
instituição através da qual se envolve uma geração na
formação da que se lhe segue. Em face da definição de
casamento em vigor é ainda possível encarar este último como
uma união completa entre um homem e uma mulher orientada
para a educação conjunta dos filhos que possam ter; a
definição do casamento pretendida pelas recorrentes encara‑a
como uma relação privada entre duas pessoas adultas que visa
essencialmente satisfazer as necessidades próprias. Ora, não
parece que a opção entre uma das duas concepções do
casamento seja matéria da competência deste Tribunal, ao
qual cumpre apenas averiguar em que medida o legislador, ao
efectuar essa opção, cumpre o disposto na Constituição.
Finalmente (e seguindo o
Ministério Público) o Tribunal considerou que a decisão que
julgasse inconstitucional as normas impugnadas teria um
carácter aditivo, de duvidosa legitimidade em face do
princípio da separação de poderes. É certo que o Tribunal
tem utilizado, por vezes, quer no âmbito da fiscalização
abstracta, quer no da fiscalização concreta da
constitucionalidade, este tipo de decisões para defender o
princípio da igualdade contra discriminações de certas
categorias de pessoas. Todavia, tal utilização restringe‑se,
por via de regra, aos casos em que está em causa a expansão
de um regime geral, em virtude da eliminação de normas
especiais ou excepcionais contrárias à Constituição, ou
ainda a extensão de um regime mais favorável que seja de
configurar como uma solução constitucionalmente obrigatória.
Nenhuma destas hipóteses se verificaria no caso em apreço.
46. Noutro ponto do seu texto,
o Tribunal, no entanto, recusou o entendimento segundo o
qual a Constituição se teria limitado a receber,
definitivamente, o conceito de casamento vigente em
determinado momento; recusou “uma petrificação do casamento
tal como este é hoje definido na lei civil, excluindo o
reconhecimento jurídico de outras comunhões de vida entre
pessoas” (nº 10).
Esta frase pode ser
interpretada como apontando para institutos alternativos ao
preconizado casamento entre homossexuais. Mas também pode
ser interpretada, tendo em conta as referências aduzidas a
propósito das sentenças aditivas, alguma abertura à própria
extensão do instituto do casamento àquelas pessoas.
47. Votaram o acórdão três dos
juízes da secção. Votaram contra dois outros, Maria João
Antunes e Gil Galvão (este “não sem hesitações”), com base
no artigo 36º, nº 1 da Constituição, conjugado com o artigo
13º, nº 2, após a sexta revisão constitucional.
“De acordo com o artigo 36.º,
n.º 1, segunda parte, da CRP, todos têm o direito de
contrair casamento em condições de plena igualdade.
Isto é, todos têm o direito de, sem qualquer
diferenciação, aceder ao que significa do ponto de vista
jurídico (e simbólico) a celebração de um contrato entre
duas pessoas que pretendam constituir família mediante uma
plena comunhão de vida”.
48. O primeiro argumento
constante do acórdão é de natureza histórico‑sistemática, o
segundo de natureza teleológica e o terceiro de ordem
processual. Para serem plenamente convincentes careceriam de
ser mais aprofundados.
Contra o primeiro argumento
poderia notar‑se, como notaram os dois juízes vencidos, que,
só por si, a proscrição da discriminação em virtude de
orientação sexual haveria de ter implicações no conceito
constitucional de família.
Seria necessário ir mais
além, para ultrapassar esta dificuldade, salientando: a) o
carácter meramente enunciativo dos factores de discriminação
apontados no artigo 13º, nº 2, pelo que o aditamento de 2004
(por influência do artigo 21º, nº 2 da Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia) não representa nenhuma
mudança significativa, já antes de 2004 era vedado
discriminar em razão dessa orientação; b) que, tanto como em
relação a qualquer dos outros factores (ascendência, sexo,
etc.) o alcance essencial da norma consiste em impedir que a
qualquer pessoa, individualmente considerada, seja
negado qualquer direito atribuído às demais; c) que,
portanto, uma coisa é um homossexual ter o direito de
constituir família e o direito de contrair casamento, outra
coisa vem a ser o direito de casar com outro homossexual.
Contra o segundo argumento
poderia, porventura, observar‑se que ele radica numa visão
mais política do que jurídica. Teria de ser integrada por
uma análise do artigo 36º, a que o Tribunal não procedeu.
Faltou indagar se o direito de constituir família
compreende, forçosamente, o direito de contrair casamento;
ou se, ao invés, se trata de dois direitos com conteúdos
particulares e irredutíveis.
O terceiro argumento está
exposto de modo correcto. Contudo, deveria ser completado
por um mais atento olhar às relações entre princípio da
igualdade e decisões aditivas dos órgãos de fiscalização da
constitucionalidade.
Como escrevemos no nosso
Manual,
uma lei, ao atribuir um direito ou uma vantagem (v.g.,
uma pensão) ou ao adstringir a um dever ou ónus (v.g.,
uma incompatibilidade), contempla certa categoria de pessoas
e não prevê todas as que se encontrem na mesma situação, ou
acolhe diferenciações infundadas. Que fazer: eliminar os
preceitos que, qualitativa ou quantitativamente, violem o
princípio da igualdade? Ou, pelo contrário, invocando os
valores e interesses constitucionais que se projectam nessa
situação, restabelecer a igualdade? Decisões aditivas são,
em especial, as que adoptam o segundo termo da alternativa.
Nas decisões redutivas ou de
inconstitucionalidade parcial, há um segmento da norma que
cai para ela ser salva. Nas decisões aditivas há um segmento
de uma norma que se acrescenta com idêntico fim.
Para não recorrer à decisão
aditiva, o Tribunal Constitucional deveria ter denunciado
que não havia na ocorrência violação do princípio da
igualdade.
49. Tem sido, aliás, abundante
e elucidativa a jurisprudência sobre o princípio.
Recordem‑se só algumas das formulações surgidas em alguns
acórdãos sobre problemas a ele atinentes:
–
“A igualdade não deve ser
entendida apenas no sentido de tornar ilícitas as
discriminações infundadas ou arbitrárias (interpretação esta
que não pode adoptar‑se sem mais); a regra do art. 13.º tem
de ser qualificada e «lida» através de (e à luz de) outras
disposições constitucionais que seguramente estabelecem
preferências em caso de conflitos de interesses ou que
hierarquizam de certa maneira direitos e interesses”.
–
“O princípio da igualdade
não só autoriza como pode exigir desigualdades de
tratamento, sempre que, por motivo de situações diversas, um
tratamento igual conduzisse a resultados desiguais”.
–
“Os factores materiais
determinantes de um tratamento normativo desigual devem
comportar, designadamente, uma justificação que busque
suporte na consonância entre os critérios adaptados pelo
legislador e os objectivos da lei, por um lado, e entre
estes e os fins cuja prossecução o texto constitucional
comete ao Estado, por outro. A desigualdade de tratamento
será consentida quando, depois de adquirido que os critérios
de distinção exigidos pelo legislador se compatibilizam com
os objectivos da lei, se concluir no sentido de a
Constituição, à luz dos princípios que adopta e dos fins que
comete ao Estado, autorizar o tratamento diferenciado das
situações delimitadas na lei ordinária”.
–
“A ausência de um critério
de medida impõe ao intérprete um processo de reconstrução do
conceito de igualdade inserido nos valores do ordenamento
constitucional no seu conjunto. Processo esse que assenta na
natureza relacional do próprio conceito, quer por força da
perspectiva da sua evolução histórica, quer em virtude da
diversidade das suas manifestações concretas”.
–
“Enquanto
conceito relacional, a medida do que é igual e deva ser
tratado como igual depende da matéria a tratar e do ponto de
vista de quem estabelece a comparação, em termos de
determinar quais são os elementos essenciais e os não
essenciais num juízo acerca da admissibilidade ou
inadmissibilidade de soluções jurídicas dissemelhantes e
eventualmente mesmo discriminatórias. Ou seja, quando é que
duas situações reais da vida são equiparáveis, quando as
similitudes entre elas sobrelevam das diferenças e, por
isso, o juízo de valor sobre a materialidade que lhes serve
de suporte conduz à necessidade de um igual tratamento
jurídico.
– “A essência da
aplicação do princípio da igualdade encontra o seu ponto de
apoio na determinação dos fundamentos fácticos e valorativos
da diferenciação jurídica consagrada no ordenamento. O que
significa que a prevalência da igualdade como valor supremo
do ordenamento tem de ser caso a caso compaginada com a
liberdade que assiste ao legislador de ponderar os diversos
interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de
entender que tal se justifica. Pelo que se pode afirmar que
dentro do princípio da igualdade cabem diferenças de
tratamento (…)”.
– “O princípio da igualdade
reconduz -se […] a uma proibição de arbítrio sendo
inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem
qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de
valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a
identidade de tratamento para situações manifestamente
desiguais.
– “A proibição de
arbítrio constitui um limite externo da liberdade de
conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o
princípio da igualdade como princípio negativo de controle”.
50. Foi pena que o Tribunal
Constitucional agora não tivesse querido ou podido
prosseguir nesta linha. Somente assim se verificaria se
cabia ou não emitir uma sentença aditiva.
Mais grave foi, porém, o
Tribunal, indo ultra petitum, ter, pelo menos
implicitamente, aceite que o legislador ordinário poderia
alargar o instituto do casamento às uniões de homossexuais.
E, porque o Tribunal o admitiu,
é legítimo expender uma maneira de ver diferente: que o
princípio constitucional de igualdade não apenas não postula
tal extensão como a exclui.
51. As recorrentes
sustentaram, como se referiu, que o princípio da igualdade
não comanda que se trate de forma diferente o que “é
diferente”, mas sim que se trate de forma igual o que “é
igual”. Eis uma proclamação que vai ao arrepio de toda a
longa experiência de construção e de concretização do
princípio da igualdade.
Igualdade, igualdade perante a
lei, igualdade perante a Constituição significa, bem pelo
contrário, tratamento igual de realidades iguais e desigual,
em termos de proporcionalidade, de realidades desiguais –
substancial e objectivamente desiguais e não criadas ou
mantidas artificialmente pelo poder político. Por isso,
diferenciar não equivale a discriminar. Não diferenciar
entre o que se apresenta desigual é que equivale ou pode
equivaler a discriminar.
Mais: quando as situações de
facto em que se encontram as pessoas são desiguais, por
causas económico‑sociais, diferenciar torna‑se um imperativo
da própria igualdade – da igualdade real entre os
Portugueses de que cuida a Constituição [artigo 9º, alínea
d), 1ª parte). E diferenciar traduz‑se então em
discriminações positivas, entre as quais, por exemplo, as
relativas às crianças órfãs, abandonadas ou privadas de
ambiente familiar normal, às pessoas portadoras de
deficiências, aos idosos [artigos 69º, nº 2, 71º, nº 2 e
74º, nº 2, alínea j), 72º].
52. De qualquer forma, tudo
está em saber o que é igual e o que é desigual.
O casamento não pode, por
certo, ser encarado simplesmente da perspectiva da
procriação. Contudo, por mais que tenha que ver com a
felicidade e o apoio mútuo dos cônjuges e por mais
casamentos que haja sem filhos, ele não pode ser desligado
da filiação. E não se trata tanto do fenómeno biológico da
procriação (porque só da união entre mulher e homem nascem
filhos) quanto do fenómeno sociocultural e afectivo da
filiação, com as referências a pai e mãe, indispensáveis
para a plena felicidade das crianças.
Daqui transparece a função
político‑social caracterizadora do instituto do casamento
(e, bem assim, da união de facto entre heterossexuais),
distintiva da união entre homossexuais: a função de
assegurar a subsistência no tempo da comunidade humana, a
sucessão e a solidariedade de gerações e, de modo especial
hoje, a sustentabilidade dos direitos sociais. Não por acaso
a Constituição qualifica a maternidade e a paternidade como
“valores sociais eminentes” (artigo 68º, nº 2).
Não admitir o casamento de
homossexuais não infringe o princípio da igualdade. O que o
infringiria seria consagrá‑lo na lei.
53. Onde há diferenciação
violadora do princípio da igualdade é em os homossexuais
apenas poderem constituir uniões de facto (Lei nº 7/2001, de
11 de Maio), ao passo que os heterossexuais podem constituir
uniões de direito, o casamento. Para restabelecer a
igualdade, o legislador deve então – à semelhança do que
acontece já em numerosos países – avançar para um instituto
adequado, também dotado de carga simbólica, que satisfaça os
anseios de realização pessoal e social dos homossexuais.
Já se afigura, de todo em todo,
despropositada e exorbitante a comparação que as recorrentes
fizeram com os casamentos interraciais. Nenhum paralelo
existe entre casamentos de pessoas do mesmo sexo e
casamentos de pessoas de raças diferentes.
54. A Constituição distingue o
direito de constituir família, e o direito de casar (artigo
36º, nº 1) e o mesmo faz, ainda mais nitidamente, a Carta de
Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 9º). A
pluralidade de formações familiares ressalta, de resto, à
vista desarmada: a família conjugal, assente no casamento, é
uma dessas formações, a família homossexual outra.
Ao mesmo tempo, resulta da
Constituição o enlace incindível entre filiação e casamento
e entre casamento e filiação. “Os cônjuges têm iguais
direitos e deveres quanto à capacidade civil e à manutenção
e educação dos filhos” (artigo 36º, nº 3). “Os filhos
nascidos fora do casamento não podem ser objecto de qualquer
discriminação” (artigo 36º, nº 4). “Os pais têm o direito e
o dever de educação dos filhos” [artigo 36º, nº 5,
completado pelo artigo 67º, nº 2, alínea c)]. “Os
filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes
não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e
sempre mediante decisão judicial” (artigo 36º).
Finalmente, a Declaração
Universal dos Direitos do Homem – critério de interpretação
e integração dos preceitos constitucionais e legais
respeitantes aos direitos fundamentais (artigo 16º, nº 2) –
prescreve: “A partir da idade núbil, o homem e a mulher
têm o direito de casar e de constituir família, sem
restrição alguma de raça ou religião” (artigo 16º, nº 1).
VII
Reabilitação urbana, venda
forçada e direito de propriedade
55. A Assembleia da República
aprovou uma proposta de lei de autorização legislativa para
o Governo definir um novo regime de reabilitação urbana.
Do decreto constavam, entre
outras medidas, a venda forçada nos casos em que os
proprietários não procedessem à reabilitação dos seus
edifícios ou das suas fracções. Neste caso, o edifício ou a
fracção seria avaliado nos termos do Código das
Expropriações e vendido em hasta pública a quem oferecesse
melhor preço e se dispusesse a cumprir o dever de
reabilitação no prazo inicialmente previsto para o efeito
contado da data de arrematação. O proprietário beneficiaria
de todas as garantias contidas naquele Código e de justa
indemnização [artigo 2º, nº 1, alínea j)].
Seria também o Governo
autorizado a legislar no sentido de não haver indemnização
ou realojamento pela denúncia do contrato de arrendamento
quando a demolição fosse necessária por força de degradação
do prédio, incompatível tecnicamente com a sua reabilitação
e geradora de risco para os respectivos ocupantes ou
decorresse de plano municipal de ordenamento do território
[artigo 2º, nº 2, alínea c)].
Como o Presidente da
República tivesse requerido a fiscalização preventiva destas
normas, o Tribunal Constitucional, pelo acórdão nº 421/2009,
de 13 de Agosto
(relatado pela juíza Maria Lúcia Amaral e votado por
unanimidade, o que não é frequente), não se pronunciaria
pela inconstitucionalidade.
56. Quanto à primeira norma, o
Presidente invocou:
a) A criação de uma nova forma
de privação de propriedade privada fundada em utilidade
pública urbanística não autorizada pela Constituição e que
restringiria um direito de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias fora dos casos expressamente
previstos na Lei Fundamental, violando a norma constante do
artigo 65º, nº 4, conjugada com o artigo 18º, nº 2, da
Constituição;
b) Em alternativa ao pedido
anterior, eventual violação da norma constante do artigo
165º, nº 2, da Constituição e, ainda, da norma do artigo
65º, nº 4, conjugada com o artigo 13º, na medida em que a
norma sindicada definiria, de forma insuficiente, o sentido
e extensão da autorização legislativa, pois não acautelaria
que o novo instituto de venda forçada por razões
urbanísticas garantisse a prossecução do fim de utilidade
pública e do carácter justo do processo indemnizatório em
termos idênticos à expropriação por utilidade pública.
Quanto à segunda, invocou:
a) Violação da norma do artigo
18º, nº 3, dado que suprimiria, sem justificação material
plausível, o núcleo ou conteúdo essencial do próprio direito
à indemnização alargado aos arrendatários expropriados por
força da conjugação do artigo 62º, nº 2, com os artigos 13º
e 2º da Constituição;
b) Violação do princípio da
proporcionalidade;
c) Violação do princípio da
igualdade por discriminar negativamente os arrendatários em
relação aos proprietários, no que respeita ao direito de
ambos serem indemnizados nos termos do artigo 62º, nº 2;
d) Violação do princípio da
protecção da confiança, ao permitir que as situações e
posições jurídicas dos actuais arrendatários pudessem ser
afectadas por uma medida imprevisível com efeitos
retrospectivos de conteúdo altamente desfavorável,
frustrando as legítimas expectativas desses titulares em
serem compensados pelos efeitos da expropriação.
57. O acórdão começa por
enunciar a questão prévia de saber se e em que medida
poderia o Tribunal conhecer da constitucionalidade das
autorizações legislativas, pronunciando‑se favoravelmente.
As autorizações não contêm, em
princípio, disciplina que possa incidir directa e
imediatamente na vida das pessoas. Como habilitam o
legislador governamental a emitir normas em matérias que,
não fora a habilitação, permaneceriam na reserva de
competência do Parlamento, fica o cumprimento da disciplina
que nelas se contém – e, logo, a sua plena eficácia
externa, ou a sua capacidade para conformar
definitivamente domínios materiais de regulação –
dependente da emissão de decreto-lei autorizado, emissão
essa que pode não ocorrer.
Tal não impede, porém, que se reconheça que
as normas sobre a produção de normas, ainda no
sentido estrito de normas de competência (como são
desde logo aquelas que, emanadas pelo Parlamento, autorizam
o Governo a legislar sobre as matérias enunciadas no artigo
165º), se incluem no conceito de “norma” que, nos termos da
Constituição, é objecto do controlo de constitucionalidade,
seja ele preventivo ou sucessivo.
As normas contidas nas
autorizações legislativas não são, de resto, apenas normas
de competência. Não se limitam a habilitar o Governo a
legislar sobre domínios da vida social que, sem a
autorização, permaneceriam na esfera reservada à normação
parlamentar. Para além do recorte externo do âmbito da
competência concedida pela autorização ao Governo – ou seja,
para além da definição do seu objecto, extensão e duração –
elas devem ainda fixar o sentido a seguir pela
legislação eventualmente subsequente do Governo; e isso
significa pré-determiná‑la ou condicioná‑la, através da
identificação de princípios, orientações ou directivas que
não poderão deixar de ser cumpridos.
Assim, será possível a obtenção de
um juízo de inconstitucionalidade, autónoma e exclusivamente
reportado às normas materiais de indirizzo contidas
na autorização, em qualquer uma das seguintes situações: em
caso de insuficiência ou défice do sentido
autorizativo que foi, ou não, fixado; e em caso de
determinação indevida do sentido autorizativo que foi
fixado, quando as normas materiais reguladoras da futura
acção do Governo tenham uma densidade tal que se torne
evidente, antes mesmo ainda da sua futura concretização
em decreto autorizado, que elas pré-determinam a actuação
governamental de um modo necessariamente inconstitucional.
Será ainda inconstitucional uma norma
contida numa lei de autorização que contenha princípios,
directivas ou orientações materiais que se mostrem já, e por
si mesmos – ou seja, independentemente da concretização
futura e eventual que deles se vier a fazer –, directamente
lesivos de regras ou princípios constitucionais autónomos, e
autónomos face às condições procedimentais que determinam a
validade do acto de habilitação.
Isto sem prejuízo de a apreciação da
inconstitucionalidade do decreto autorizado poderia não
apenas incidir sobre vícios próprios mas também ter por
objecto vícios que radiquem, desde logo, na norma
habilitante.
58. Entrando no fundo, o Tribunal
salientou, desde logo, que o diploma de autorização deixa ao
legislador governamental espaços livres de conformação
futura. Não se sabe, por exemplo, em que tipos ou categorias
de intervenção urbanística poderá vir a ser adoptado o
instituto da venda forçada; se a sua previsão terá ou não
natureza subsidiária; se o processo de venda em hasta
pública será, ou não, objecto de regulação especial; quais
os incentivos e apoios financeiros que serão, concretamente,
postos à disposição dos proprietários que devam proceder a
obras de reabilitação.
E, analisando o argumento do Presidente da
República sobre o artigo 65º, nº 4, da Constituição, o
Tribunal considerou não parecer que a disposição contida no
nº 4 do artigo 65º da Constituição visasse instituir um
numerus clausus ou um princípio de tipicidade, quanto à
adopção das medidas necessárias à satisfação de fins de
utilidade pública urbanística, só admitindo, por isso e
quanto a essas medidas, o recurso pelo legislador ordinário
ao instituto da expropriação.
O preceito constitucional não poderia ser
lido fora do contexto em que se insere. E próprio desse
contexto seria todo o domínio relativo à habitação e ao
urbanismo, domínio esse onde se articulam, enquanto
expressão do cumprimento de tarefas fundamentais do Estado
(artigo 9º), políticas públicas tendentes a assegurar o
planeamento e a ordenação do território; a defesa do
ambiente e da qualidade de vida; a preservação do património
urbano, enquanto parte do património cultural português.
Sobretudo, ao associar a política da habitação às
políticas públicas de governo do território, o artigo
65º deixaria bem claro que estas últimas fazem parte das
prestações comunitárias que são devidas para que se possa
garantir, a cada um, o “direito a uma habitação adequada”.
Intenção inicial do seu nº 4 é chamar às responsabilidades
deste governo tanto o Estado, quanto as regiões autónomas e
as autarquias locais: todos estes entes agirão,
designadamente, através dos meios aí previstos. Longe,
portanto, de um qualquer princípio de tipicidade ou de
numerus clausus estará, assim, a estrutura de uma norma
constitucional como esta, que, ao invés de “fechar”, ou de
prever de forma exauriente e esgotante meios de actuação dos
poderes públicos, visa pelo contrário enquadrar políticas
prestativas complexas, e, por definição, abertas.
Não decorreria assim do texto do nº 4 do
artigo 65º que o instituto da expropriação fosse o único
instrumento que, para fins de satisfação de utilidade
pública urbanística, a Constituição autorizava. Tal como não
decorreria do artigo 62º, e do direito nele “garantido”, que
a venda forçada, por não estar expressamente prevista
na Constituição, fosse, só por isso, um meio de política
urbanística que o legislador ordinário estivesse, em todo o
caso, proibido de utilizar.
A jurisprudência do Tribunal teria, a este
respeito, chegado a alguns pontos firmes: 1º) não
identificação entre o conceito civilístico de propriedade e
o correspondente conceito constitucional (a garantia
constitucional da propriedade protege os direitos
patrimoniais privados e não apenas os direitos reais
tutelados pela lei civil, ou o direito real máximo); 2º)
dupla natureza da garantia reconhecida no artigo 62º, com
uma dimensão institucional-objectiva e uma dimensão de
direito subjectivo; 3º) radical subjectivo, como direito
“clássico” de defesa, o direito de cada um a não
ser privado da sua propriedade senão por intermédio de um
procedimento adequado e mediante justa compensação,
procedimento esse especialmente assegurado no nº 2 do artigo
62º.
O legislador estaria proibido de aniquilar
ou afectar o núcleo essencial do instituto
infraconstitucional da “propriedade”. Por outro lado, e
positivamente, estaria obrigado a conformar o instituto, não
de um modo qualquer, mas tendo em conta a necessidade de o
harmonizar com os princípios decorrentes do sistema
constitucional no seu conjunto. Seria justamente isso que
fluiria da parte final do nº 1 do artigo 62º, em que se diz
que “a todos é garantido o direito à propriedade privada
(...) nos termos da Constituição”.
Embora a Constituição lhe não fizesse uma
referência textual, existiria portanto, e também entre nós,
uma cláusula legal da conformação social da propriedade,
a que aliás teria aludido desde sempre a jurisprudência
constitucional, ao dizer que “[e]stá tal direito de
propriedade, reconhecido e protegido pela Constituição, na
verdade, bem afastado da concepção clássica do direito de
propriedade, enquanto jus utendi, fruendi et abutendi
– ou na fomulação impressiva do Código Civil francês (…)
enquanto direito de usar e dispor das coisas de la
manière la plus absolue (...). Assim, o direito de
propriedade deve, antes do mais, ser compatibilizado com
outras exigências constitucionais”.
As obrigações legalmente impostas aos
proprietários de edifícios ou fracções, de realização de
obras de reabilitação urbanística não seriam mais do que o
resultado da necessária compatibilização – a efectuar pelo
legislador ordinário – entre o direito de propriedade e
outras exigências ou valores constitucionais. Assim
sendo, e ao conceder ao Governo a habilitação necessária
para que sejam determinados “os direitos e obrigações de
proprietário e de titulares de outros direitos, ónus ou
encargos relativamente aos edifícios a reabilitar e
consagrando o dever de reabilitação como um dever de todos
os proprietários de edifícios ou fracções”, o artigo 2º, nº
1 do Decreto da Assembleia estaria ainda a cumprir as
funções próprias da conformação social da propriedade, que
cabem, especialmente, ao legislador.
Questão diversa seria a de saber se o
instituto da venda forçada compartilharia ainda desta
natureza meramente conformadora do conteúdo da propriedade,
ou se seria, em relação a ela, algo de diferente, operando
(mais do que uma conformação), uma verdadeira restrição de
posições jusfundamentais dos proprietários. Ora, quanto a
este ponto, seria difícil sustentar não se estar aqui
perante verdadeiras restrições.
Relevaria, no entanto, de uma concepção
excessivamente estreita entender que, por a Constituição se
não referir, textualmente, ao instituto da venda forçada, o
limite enunciado em primeiro lugar no nº 2 do artigo 18º – a
necessidade de autorização constitucional expressa para
restringir – teria sido, no caso, e desde logo, incumprido,
assim se condenando, e sem ulterior indagação, a escolha do
legislador ordinário. Para além da questão de saber qual o
sentido que, em geral, a conferir à primeira
frase do nº 2 do artigo 18º – pareceria certo, antes do
mais, que autorização constitucional para restringir
se não identificava com necessidade de referência textual
explícita a um certo e determinado instituto a adoptar
pelo legislador ordinário, referência essa que teria que
constar do articulado da Constituição. Nenhuma Constituição
é apenas um texto.
No caso, a Constituição autorizaria que
o direito de cada um à não privação da propriedade seja
restringido, desde que a restrição se justifique por razões
de interesse público, se efectue por intermédio do
procedimento devido em Direito e inclua, para o afectado, a
devida compensação. O que conferiria inteligibilidade e
sentido a esta autorização, assim recortada, não seria
apenas o facto de a ela se referir textualmente a
Constituição, no nº 2 do artigo 62º. Conferir-lhe‑iam também
inteligibilidade e sentido as próprias razões materiais que,
na ordem constitucional, sustentariam a sua existência.
Ora, sendo essas ainda as razões da
restrição prevista no nº i) da alínea j) do nº 1
do artigo 2º do Decreto 343/X – e não decorrendo do regime
nela contido que se habilitasse o Governo a instituir um
“meio” ablatório da propriedade à margem do interesse
público; que se não realizasse no quadro de um procedimento
devido em Direito; e que não fosse acompanhada da devida
compensação – não poderia entender‑se que a escolha do
legislador ordinário merecesse censura constitucional,
apenas pelo facto de a menção à venda forçada não constar,
textualmente, do articulado da Constituição.
59. Considerando os argumentos do
Presidente, o Tribunal reconheceu que eram desiguais entre
si o instituto da expropriação e o instituto da venda
forçada. No entanto, tal desigualdade só se tornaria em algo
constitucionalmente censurável se se provasse que os
proprietários sujeitos a venda forçada viriam a ser –
seguramente apenas quando fosse, e se fosse, aprovado o
decreto-lei autorizado – destinatários de um regime jurídico
injustificadamente diverso daquele que é aplicável
aos expropriados.
Para o requerente, a prova de que assim era
já estava feita, por dois motivos: o que se prendia com a
tese da “tipicidade” ou do numerus clausus que,
relativamente aos instrumentos de política urbanística,
estaria inserta no nº 4 do artigo 65º; e o da insuficiência
do sentido da lei de autorização.
Pelo contrário, para o Tribunal, uma vez
demonstrada a possibilidade constitucional da
previsão, no contexto da norma sob juízo, do instituto, nada
permitir concluir que se estivesse, in casu, perante
uma autorização deficitária quanto à
determinabilidade do seu sentido. Eram
suficientemente claras as decisões básicas da habilitante,
quanto à definição do conteúdo essencial a seguir pela
futura, e eventual, legislação governamental. Estava claro
qual o espaço de liberdade de conformação do legislador
autorizado. Finalmente, e na perspectiva dos particulares,
era suficientemente claro o programa normativo, contido na
autorização legislativa, que, a ser cumprido pelo
decreto‑autorizado, iria produzir consequências directas e
imediatas na modelação dos direitos e deveres das pessoas.
Sobretudo numa ordem constitucional como a nossa, que
pressupõe um certo modelo de partilha de responsabilidades
legislativas entre Parlamento e Governo, nada permitiria
concluir que a norma autorizativa não tivesse atingido o
grau exigível de determinação de sentido.
Questão diferente seria a de saber se, como
afinal, sustentava, no essencial, o requerente, o instituto
da venda forçada – tal como delineado na autorização
legislativa – não seria inconstitucional por, quanto ao
interesse público, não garantir que fossem satisfeitos os
fins próprios das políticas urbanísticas; e, quanto aos
interesses privados, não garantir que à afectação dos bens
correspondesse uma justa indemnização, conforme o disposto
no artigo 62º, nº 2 da Constituição. Mas ao Tribunal não
caberia apreciar a “adequação” ou o mérito das políticas
públicas adoptadas pelo legislador: caber-lhe‑ia apenas
emitir juízos sobre aquelas que, nos termos da Constituição,
fossem censuráveis. E nada, também, quanto a este ponto,
permitiria estabelecer um juízo de censura constitucional,
pois que nada provava que a “venda forçada” fosse inepta, ou
inadequada, à realização dos fins especiais da reabilitação
urbana.
Do mesmo modo, do regime contido no artigo
2º do Decreto se não poderia depreender que, nos casos em
que o preço do imóvel obtido através da venda em hasta
pública se revelasse inferior ao montante em que o mesmo
tivesse sido avaliado, nos termos do Código das
Expropriações, não viesse a ser conferida ao particular,
através de indemnização, a compensação devida quanto à parte
restante.
60. Igualmente a respeito da norma
constante da alínea c) do nº 2 do artigo 2º do
Decreto da Assembleia, o Tribunal concluiu pela não
inconstitucionalidade.
Seriam contadas as circunstâncias em que o
artigo 2º do Decreto previa que o senhorio pudesse não vir a
ser obrigado a indemnizar ou realojar o inquilino. Tal
ocorreria só quando o mesmo senhorio denunciasse o
contrato de arrendamento por necessidade e
urgência de demolição do prédio. Pareceria ser, de
facto, de necessidade e de urgência [de
demolição] que se tratava, quando se identificava o grau de
deterioração do edifício que reentrava na fattispecie
da norma da alínea c) do nº 2 do artigo 2º: grau tal
que tornaria impossível a reabilitação do prédio e que
tornava arriscada, para as pessoas, a sua ocupação. Para
além destas situações, o senhorio denunciaria o contrato de
arrendamento – sem assegurar, ele próprio, a indemnização ou
realojamento do inquilino – quando a necessidade da
demolição decorresse de plano municipal de ordenamento
do território.
Esta situação específica, tornando
inelutável a cessação do contrato de arrendamento por força
de circunstâncias objectivas, justificaria que se não
impusesse aqui ao senhorio um dever de indemnização do
inquilino: para todos os efeitos, a acção de denúncia do
contrato, a interpor pelo primeiro, radicaria em fundamentos
outros que não a sua livre vontade de pôr termo à
relação arrendatícia. Como não ocorreria, no caso, nenhuma
“expropriação do direito ao arrendamento” em que fosse
excepcionada a compensação devida pelo senhorio, não se
veria por que razão violaria a norma sob juízo “o núcleo
essencial” do direito consagrado no nº 2 do artigo 62º da
CRP, lesando‑se, por isso, e do mesmo passo, o limite às
restrições dos direitos, liberdades e garantias inscrito na
parte final do nº 3 do artigo 18º. Improcedendo este
fundamento de inconstitucionalidade, improcedia também a
invocação da violação do princípio da igualdade, com ele
estreitamente interligado. Nem a medida se mostraria
inadequada, desnecessária ou “excessiva”, em sentido
estrito. E atendendo à natureza da norma, nada impediria que
o legislador habilitado viesse a cumprir, através da
introdução de regimes transitórios que eventualmente se
viessem a mostrar necessários, as exigências próprias do
princípio da protecção da confiança decorrente do artigo 2º
da Constituição.
61. Em face da doutrina quase unânime e da
jurisprudência citada no acórdão, talvez não valesse muito a
pena ter sido suscitada a questão prévia da cognoscibilidade
da autorização legislativa.
Sempre temos defendido desde 1982 (quando
foi incluída a referência a sentido no artigo 168º,
hoje 165º da Constituição) que nenhuma lei de autorização
legislativa se reconduz a lei meramente formal. Não se trata
só de uma vicissitude de competência; trata‑se também de
acto que se manifesta na dinâmica global do ordenamento. E,
embora não atinja só por si os cidadãos, nem regule as
situações da vida, os seus efeitos não são apenas
instrumentais; são, desde logo, efeitos substantivos, até
porque a função do sentido não se esgota com a emanação do
decreto‑lei autorizado, perdura como parâmetro da validade
deste.
Por outro lado, há um ponto em que
divergimos do que se escreve no acórdão. Não concordamos que
seja inconstitucional uma lei de autorização legislativa com
densidade tal que pouco fique ao dispor do decreto‑lei
autorizado [ou de decreto legislativo regional, previsto no
artigo 227º, nºs 1, alínea b), 2, 3 e 4]. Se a
Assembleia da República pode legislar directamente sobre a
matéria, ela tem toda a liberdade para ir onde entender,
tudo dependendo da importância do assunto e do grau de
confiança política no Governo.
Em contrapartida, há outra hipótese de
inconstitucionalidade de lei de autorização: a que consiste
em ela versar sobre matéria de reserva absoluta da
Assembleia da República [além das do artigo 164º, as dos
artigos 161º, alíneas b), f), g), h),
l) e m), 163º, alíneas f) e j),
167º, nº 1, 227º, nº 1, alínea i), 2ª parte, 255º,
256º e 293º].
62. Já quando à questão de fundo
analisada, concordamos no essencial com o acórdão.
Em primeiro lugar, afigura‑se muito bem
formulado e convincente o passo respeitante às restrições
aos direitos, liberdades e garantias. Com efeito, a par das
restrições, imediatas ou mediatas, constantes dos preceitos
expressos, há restrições que se encontram a partir da
interpretação sistemática ou de princípios constitucionais.
O critério básico em que se alicerçam é o da salvaguarda de
“outros direitos ou interesses constitucionalmente
relevantes”, como diz o artigo 18º, nº 2.
Somente numa quimérica Constituição liberal
radical se pretenderia que a propriedade não pudesse ser
restringida senão nos casos nela directa e expressamente
contemplados e se entenderiam proibidas quaisquer normas
legais restritivas que lhes não correspondessem. Pelo
contrário, qualquer Constituição positiva, ainda que imbuída
de respeito pela propriedade, tem de admitir que a lei
declare outras restrições – até por não poder prevê‑las ou
inseri‑las todas no texto constitucional. O que a lei,
também aqui, tem de respeitar é o feixe de princípios do
artigo 18º.
Mais ainda: o artigo 62º contempla a
propriedade, “nos termos da Constituição”. Isto implica não
tanto que ela só seja garantida dentro dos limites e dos
termos previstos e definidos noutros lugares da Constituição
quanto que ela não é reconhecida aprioristicamente, como
princípio independente e auto‑suficiente; ela é reconhecida
e salvaguardada no âmbito da Constituição e em sintonia com
os princípios, valores e critérios que a enformam.
De resto, além do artigo 65º,
nº 4, poderia ter sido convocado o artigo 66, nº 2, alínea
e), que incumbe o Estado de promover, em colaboração
com as autarquias locais, a qualidade ambiental das
povoações e da vida urbana, designadamente no plano
arquitectónico e de protecção de zonas históricas. E,
porventura ainda, poderia ter sido tomado como lugar
paralelo o artigo 88º, nº 2, ao permitir que os meios de
produção em abandono injustificado possam ser objecto de
arrendamento ou de concessão de exploração compulsivas, em
condições a fixar por lei.
VIII
Recusa de inscrição de um
partido político
63. A Constituição declara o
pluralismo de expressão e de organização política
democráticas um dos fundamentos do Estado de Direito
democrático (artigo 2º), impõe aos partidos o respeito do
princípio da democracia política (artigo 10º, nº 2) e
fala em oposição democrática [artigos 114º, nº 2 e 288º,
alínea i), 2ª parte). Ora, poderia isto inculcar, à
primeira vista, uma ideia de limitação ou de uma democracia
defensiva ou militante.
Pois
democrático pode ser entendido
tanto no sentido de favorável à democracia (sendo
antidemocrático o que propugna um sistema político não
democrático) como no sentido de conforme com a democracia
(sendo antidemocrático o que utiliza meios não democráticos
de acção política para realizar o seu programa, democrático
ou não). Ali, para se avaliar da democraticidade, haveria
que confrontar a doutrina e as finalidades dos grupos
políticos com a concepção democrática que a Constituição
consagra; aqui, haveria que confrontar a prática com as
regras fundamentais da vida política democrática, para
verificar se estas são ou não observadas.
Mas o primeiro entendimento reduziria a
margem de liberdade e de segurança dos cidadãos; daria à
maioria de momento a possibilidade de eliminar as minorias
sob pretexto de contrariarem a democracia; desembocaria num
beco sem saída, porque, afora a democracia pluralista e
representativa de tipo ocidental, outras visões de
democracia se conhecem, cada qual pretendendo-se de maior
validade, de tal sorte que, onde essas concepções estivessem
difundidas (como é o caso de Portugal e da maior parte dos
países da Europa meridional), se tornaria impossível banir
da vida pública os grupos e partidos correspondentes sem
repressão ou sem marginalização de vasto número de cidadãos.
É
preferível, sem hesitar, o segundo
entendimento. O carácter democrático da expressão e da
organização políticas não pode ser visto em intenções,
palavras, programas ou ideologias, só pode ser visto pelo
modo como os partidos se organizam e pelos actos
respeitadores ou desrespeitadores da lei penal geral que
pratica, porque juridicamente só actos podem ser apreciados,
não ideologias. O exercício da liberdade política não pode
ser restringido por razões ou opções de natureza política.
A menção da democracia no art.
2.° incorpora uma regra prescritiva, não uma regra negativa
ou proibitiva. Obriga a que na expressão e na organização
políticas se observem as regras inerentes a uma ordem
constitucional democrática – esse o sentido do art. 10.º,
n.° 2; obriga a que os partidos se rejam pelos princípios da
transparência, da organização e da gestão democrática e de
participação de todos os seus membros (artigo 51º, nº 5) – o
método democrático e não qualquer outro assente na subversão
e na violência.
Excepção ao princípio do
pluralismo, a única que a Constituição contém, é a proibição
de organizações – e, portanto, de partidos – que perfilhem a
ideologia fascista (artigo 46º, nº 4). Não já a proibição de
organizações – e, portanto, de partidos racistas (mesmo
artigo 46º, nº 4) – porque o racismo agride a dignidade da
pessoa humana (artigo 1º da Constituição).
Os princípios constitucionais
são explicitados e densificados pela Lei Orgânica nº 2/2003, de 22
de Agosto (com as alterações da Lei Orgânica nº 2/2008, de
14 de Março), a lei dos partidos políticos. Compete ao
Tribunal Constitucional apreciar a legalidade dos partidos e
suas coligações, bem como a das denominações, siglas e
símbolos e ordenar a sua extinção [artigo 223º, nº 2, alínea
e) da Constituição]. No Tribunal existe um registo
dos partidos (artigo 14º da Lei Orgânica nº 2/2003).
64. Recentemente, pelo
acórdão nº 369/2009, de 13 de Julho,
o Tribunal indeferiu o pedido de inscrição de um partido,
chamado “Partido da Liberdade”.
Indeferiu‑o, por os estatutos
não assegurarem uma plena democraticidade de funcionamento
interno e serem limitadas as garantias dos direitos dos
membros: assim, quanto ao conselho de jurisdição, aos
poderes disciplinares, às estruturas locais, à estrutura
juvenil, ao dever de sigilo sobre as actividades do partido,
à mesa do congresso, à elasticidade da composição dos órgãos
dirigentes.
A respeito da disciplina
partidária, reiterou o Tribunal que ela não pode oferecer
garantias substancialmente menores do que aquelas que
constitucionalmente se exigem ao Direito disciplinar público
– desde logo, porque envolve ou pode envolver direitos,
liberdades e garantias de participação política (neste ponto
do acórdão – 10.2. – qualificam‑se os partidos como
associações de Direito constitucional, mas, algo
contraditoriamente, diz‑se que a disciplina partidária não
pode considerar‑se Direito sancionatório público).
Por seu turno, afirma‑se
(10.5.) que o “sigilo sobre todas as actividades
partidárias” significaria, se lido em toda a sua extensão,
fazer equivaler o partido a uma sociedade de índole secreta.
Mas, ainda que não fosse essa a ideia subjacente a tal
declaração, a ausência de qualquer critério delimitador das
actividades objecto do dever de reserva (v.g., a sua
restrição às questões da “vida interna” do partido com
“carácter reservado”, à semelhança do que estabelecem os
estatutos de outros partidos políticos) não permite outra
leitura – o que contendia com o princípio da transparência.
65. A Lei nº 2/2003 estabelece que os
estrangeiros e os apátridas legalmente residentes em
Portugal e que se filiem em partidos políticos gozam dos
direitos de participação compatíveis com o estatuto de
direitos políticos que lhes esteja reconhecido (art. 20º, nº
4).
Esta norma carece de interpretação conforme
com a Constituição, pois a participação partidária só pode
ser admitida:
a)
Em âmbito nacional, a cidadãos de países de língua
portuguesa com estatuto de igualdade (art. 15º, nº 3) ou,
quando se trate de eleições para o Parlamento Europeu, de
cidadãos de Estados membros da União Europeia (art. 15º, nº
5);
b)
E em âmbito local, mas circunscrito a ele, a apátridas e a
cidadãos de países que concedam também a cidadãos
portugueses residentes nos seus territórios capacidade
eleitoral relativa a eleições locais (art. 15º, nº 4).
Por isso e porque a
nacionalidade não está na lei incluída entre os factores de
exclusão proibidos (artigo 19º, nº 2), fez bem o acórdão ao
entender que a norma estatutária circunscrevendo a qualidade
de militantes a cidadãos portugueses se encontrava ainda
dentro dos limites da licitude.
O problema, no entanto, aí era
outro. Era o que devia colocar a noção muito restrita de
cidadãos portugueses adoptada – cidadãos portugueses só os
que tivessem nascido em território português, filhos de pais
portugueses – e das anunciadas propostas de rejeição da
aquisição de nacionalidade pelo casamento ou por união de
facto ou por simples permanência, bem como das propostas
relativas à situação dos estrangeiros em Portugal e de
“adopção, interiorização e divulgação do conceito de etnia,
por conveniente no vínculo com a Pátria”.
O Ministério Público tinha
solicitado particular prudência na apreciação do problema de
saber se não se trataria de um “partido (potencialmente)
racista”. O Tribunal (nº 8) preferiu discorrer sobre as
diferenças entre raça e etnia.
IX
Estatutos dos juízes de paz.
Inelegibilidade dos juízes
66. Nas últimas eleições para
o Parlamento Europeu, não foi admitida certa candidatura,
por um dos candidatos ser juiz de paz e, portanto, à face da
respectiva lei eleitoral, ele ser inelegível.
Inconformado com a decisão, o
partido proponente interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional, alegando que a norma em causa [a do artigo
5º, alínea f) da Lei nº 14/87, de 29 de Abril] não
poderia abranger os juízes de paz, porquanto os julgados de
paz não partilhavam a função jurisdicional com os tribunais,
antes sendo instâncias não jurisdicionais ou
parajurisdicionais de solução alternativa de conflitos.
O Tribunal
Constitucional, pelo acórdão nº 250/2009, de 18 de Maio,
não deu provimento ao recurso, por considerar, ao contrário
do sustentado pelo recorrente, que os julgados de paz eram
verdadeiros e próprios tribunais.
67. O acórdão ancorou‑se,
essencialmente, no artigo 209º da Constituição, que inscreve
os julgados de paz dentro das categorias dos tribunais; e,
depois, no artigo 61º da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho (a
lei que os regula), de harmonia com o qual as decisões
proferidas pelos juízes de paz têm o valor das sentenças
proferidas pelos tribunais judiciais de 1ª instância.
O facto de a sua efectiva
existência ser facultativa, a circunstância de a
Constituição remeter para o legislador constitucionalmente
competente [cf. artigos 164º, alínea m), e 165º, nº
1, alínea p)], a decisão concreta sobre a criação, de
resto facultativa, dos tribunais que correspondam à
categoria constitucionalmente prevista, em nada belisca a
sua previsão constitucional como integrante de uma das
diversas categorias de tribunais, pelos quais a função
jurisdicional se encontra organizacionalmente
repartida
Nem por se indicar como
“princípios gerais” de tal categoria de tribunais que a sua
actuação “é vocacionada para permitir a participação cívica
dos interessados e para estimular a justa composição dos
litígios por acordo das partes” e dizer que “os
procedimentos nos julgados de paz estão concebidos e são
orientados por princípios de simplicidade, adequação,
informalidade, oralidade e absoluta economia processual”,
teria outro sentido que não fosse o de concretizar o que o
legislador ordinário entende como correspondendo ao quid
specificum que relevou na organização, competência e
funcionamento desta categoria de tribunais, que, tal como os
demais, administram justiça em nome do povo e “asseguram a
defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
cidadãos”.
Aliás, a economia processual, a
simplificação do processo e a aspiração da obtenção de
acordo sobre o objecto da causa constituíam valores também
prosseguidos pelo processo civil e nos tribunais judiciais,
onde para além da existência de regimes processuais “mais
elásticos”, como são os da acção declarativa especial para
cumprimento de obrigações pecuniárias (Decreto-Lei nº
269/98, de 1 de Setembro) e do processo civil simplificado
(Decreto-Lei nº 211/91, de 14 de Junho), a lei de processo
civil determina, por diversas vezes, que se proceda a
tentativa de conciliação (cf., por exemplo, o artigo 509º do
Código de Processo Civil).
E precisamente porque exercem a
função jurisdicional é que o legislador ordinário teria
rodeado esse exercício dos meios que garantissem a completa
independência e imparcialidade dos juízes, aplicando aos
juízes de paz o regime dos impedimentos e suspeições
estabelecido na lei do processo civil para os juízes (artigo
21º da Lei nº 78/2001).
A circunstância de os juízes em
exercício ou efectividade de funções estarem enquadrados por
diferentes estatutos não obsta a que possam estar sujeitos a
idênticas restrições ao direito de eleição para cargos
políticos, desde que, em qualquer das situações, se
verifiquem as razões que constitucionalmente justificam a
restrição e que se colhem, como se disse, no artigo 50º, nº
3, da CRP, com o qual “o legislador constituinte pretendeu
estabelecer, precisamente, um critério delimitador de
futuras novas causas de inelegibilidade que o legislador
pretenda vir a criar”, acautelando outros valores
constitucionalmente tutelados como a liberdade de escolha
dos eleitores e a garantia de isenção e independência
no exercício dos respectivos cargos (cf. acórdãos nº
364/91 e 532/89).
68. O acórdão mereceu inteira
concordância e o raciocínio nele explanado bem poderia
servir para explicar restrições análogas ao direito de
filiação e de actividade em associações e partidos políticos
e a outros direitos cujo exercício poderia colidir com a
independência e a isenção de quem assume a função
jurisdicional, esteio do Estado de Direito.
O artigo 18º, nº 2 da
Constituição, mais uma vez, tem de ser interpretado, não
ancorado à sua letra, mas à luz dos interesses, valores e
princípios de ordem constitucional no seu conjunto.
X
Um segundo acórdão sobre o
Estatuto dos Açores
69. Já em 2008, logo
após a aprovação do novo estatuto dos Açores, o Tribunal
Constitucional havia sido chamado a ocupar‑se de questões de
inconstitucionalidade por ele suscitados. Pronunciou‑se
sobre algumas (através do acórdão nº 402/2008, de 29 de
Julho), mas não sobre todas as que mereciam apreciação,
porque o Presidente da República não lhas submeteu
e ele está sujeito, como qualquer tribunal, ao princípio do
pedido.
De qualquer forma, depois
de uma intensa polémica entre o Presidente da República e a
maioria parlamentar de então, a respeito de um desses pontos
(o regime de dissolução da Assembleia Legislativa Regional),
o assunto voltaria ao Tribunal Constitucional, por
iniciativa, agora de fiscalização sucessiva, do Provedor de
Justiça e de um determinado número de Deputados [artigo
281º, nº 1, alíneas d) e f)]. Daí o acórdão nº
403/2009, de 30 de Julho.
70. A primeira norma impugnada
foi o artigo 5º, nº 4, de harmonia com o qual a bandeira da
Região seria hasteada (sem prejuízo, naturalmente, da
precedência da bandeira nacional) nas instalações
dependentes dos órgãos de soberania na Região.
O Tribunal declarou‑a
inconstitucional, porque a utilização da bandeira regional
teria sempre de ser subordinada à utilização da bandeira
nacional; porque o regime dos símbolos nacionais cabe na
reserva absoluta de competência da Assembleia da República
[artigo 164º, alínea s)]; e porque, sendo a bandeira
nacional o símbolo da soberania da República e de
independência, unidade e integridade de Portugal (artigo
11º, nº 1), não poderia o estatuto, atinente a uma parte do
seu todo, dispor sobre ela.
A conclusão impunha‑se com toda
a evidência. Apenas faltaria salientar duas notas: 1ª) que
os estatutos regionais têm um âmbito circunscrito aos
poderes e à organização das Regiões e a matérias afins, sem
a expansividade característica das Constituições; 2ª) e que
o princípio da unidade do Estado não se compadece com o
hasteamento em edifícios de órgãos de soberania, instalações
de forças de segurança e em instalações e meios militares
(terrestres, navais e aéreos) de outra bandeira que não a do
Estado (nem sequer nos Estados federais se admitiria uma
bandeira estadual, num aquartelamento ou num navio de
guerra).
71. As regiões autónomas
recebem da Constituição, a par de poderes de participação em
actos internacionais de Estado, poderes de prossecução de
interesses próprios no âmbito externo: o de estabelecer
cooperação com entidades regionais estrangeiras, o de
participar em organizações que tenham por objecto fomentar o
diálogo e a cooperação inter‑regional e o de participar no
processo de construção europeia, mediante representação nas
respectivas instituições regionais [artigo 227º, nº 1,
alíneas u) e x), 1ª parte). É uma nota
singularizadora da sua autonomia, que nem por isso faz delas
sujeitos de Direito internacional.
Quanto à representação em
instituições regionais europeias, ela refere‑se a um órgão,
o Comité das Regiões, previsto nos tratados da União
Europeia, sem poderes de decisão; e, de todo o modo, os
representantes das regiões – tal como os representantes de
municípios portugueses (que igualmente nele têm participado)
– apenas aparecem como seus titulares enquanto
representantes do Estado português.
Mas a alínea i) do
artigo 7º, nº 1 do estatuto ia bem mais longe, ao atribuir à
Região “política própria de cooperação externa” com
entidades regionais estrangeiras, nomeadamente no quadro da
União Europeia e do aprofundamento da cooperação no âmbito
da Macaronésia. O contraste com a norma constitucional era
evidente, com o consequente juízo de inconstitucionalidade.
Diferentemente – e, ao
contrário do que o Tribunal decidiu – não havia
inconstitucionalidade na alínea j) do mesmo artigo,
ao falar no direito da Região de estabelecer cooperação com
entidades regionais estrangeiras e a participar em
organizações internacionais de diálogo e cooperação
inter‑regional, porque, embora faltasse o inciso final do
artigo 227º, nº 1, alínea u) da Constituição, ela
tinha de ser interpretada à sua luz: essa cooperação e essa
participação hão‑de se desenvolver sempre de acordo com as
orientações dos órgãos de soberania com competência de
política externa.
72. Os artigos 7º, nº 1,
alínea o), 47º, nº 4, alínea a), 67º, alínea
d), 101º, nº 1, alínea n) e 130º previam a
existência de provedores sectoriais regionais. O Tribunal,
aqui em fórmulas sintéticas, demonstrou a
inconstitucionalidade dessas normas.
A repartição, com outros órgãos, das
faculdades inseridas na competência com que foi dotado
constitucionalmente o Provedor de Justiça, ainda que
respeitando as suas atribuições constitucionais e obrigando
a agir em coordenação ou de forma articulada com este,
desfiguraria o órgão tal como foi concebido pela Lei
Fundamental, na medida em que introduziria elementos
distorcedores da unidade da sua actuação para todo o
território nacional e para todos os poderes públicos.
A existência, ao lado, de um
outro órgão, criado pelo legislador ordinário, com
atribuições decalcadas ou paralelas às do Provedor de
Justiça, especializadas ou não, ainda que de âmbito
regional, não deixaria de descaracterizar o tipo
constitucionalmente construído do mesmo órgão sem agregação
a quaisquer especialidades da matéria da sua competência ou
a quaisquer entes territoriais, antes, atingindo todos os
poderes públicos e enfraquecendo, em termos de visibilidade
e intensidade práticas, os poderes e faculdades com que foi
dotado o órgão constitucional.
É este o entendimento que
sempre temos preconizado.
A Constituição cria um único
Provedor de Justiça. Não o faz por acaso. Fá‑lo em virtude
da unidade sistemática essencial da função de defesa e
realização dos direitos das pessoas e por só um Provedor,
com as características apontadas, possuir suficiente
autoridade frente aos “poderes públicos”. Há uma reserva
constitucional de competência em favor do Provedor de
Justiça quanto à apreciação não contenciosa de queixas por
acções ou omissões dos poderes públicos que afectem os
direitos do cidadão. Os provedores sectoriais regionais,
contenderiam mesmo com a unidade do Estado.
Muito mais grave do que a lei ordinária
preterir a distribuição constitucional de competências,
seria ela (e o estatuto é uma lei ordinária) erguer de todas
as peças um ou vários órgãos novos, atribuindo‑lhe funções
próprias de um órgão constitucional e, por conseguinte,
procedendo ao seu desdobramento ilegítimo. Porque, quando a
Constituição quis consagrar a existência de um órgão
específico para tutela de certos e determinados direitos
fundamentais fê‑lo logo: assim, a entidade administrativa
independente de protecção dos dados pessoais (artigo 35.º,
n.º 2) e a entidade reguladora da comunicação social; não
mais do que isso.
73. A Constituição, após a
revisão de 2004, alargou o poder de dissolução das
Assembleias Legislativas Regionais pelo Presidente da
República [artigos 133º, alínea j) e 234º, nº 1] numa
tendência de aproximação à Assembleia da República dessa
Assembleia patente também noutros campos [artigo 133º,
alíneas b) e d)].
Tal como aquando da dissolução
da Assembleia da República, a dissolução das Assembleias
Legislativas Regionais deve fazer‑se ouvidos os partidos
nelas representados e o Conselho de Estado [artigo 133º,
alíneas e) e j) e ainda artigo 234º, nº 2].
O estatuto acrescentava a
necessidade de audição igualmente da própria Assembleia
Legislativa e do Presidente do Governo Regional e, em vez de
aludir a partidos, aludia a grupos e representações
parlamentares (artigo 114º).
O Tribunal declarou a
inconstitucionalidade, em nome da reserva de Constituição
sobre os poderes do Presidente da República (e dos
respectivos limites). Nem outra coisa poderia fazer: uma
norma legislativa não pode adstringir o Presidente (ou
qualquer outro órgão constitucional) a obrigações que a
Constituição não prescreva.
Só causa espanto que, quanto a
esta norma, o Presidente não tenha logo requerido a
fiscalização preventiva e que, tendo exercido o veto
político, o Parlamento tenha votado a confirmação por
maioria de dois terços, provocando um e outro uma artificial
crise que a ninguém aproveitou.
74. O artigo 119º do estatuto
criava um procedimento de “audição qualificada” sobre actos
da Assembleia da República e do Governo sobre determinadas
matérias consideradas mais importantes, que compreendia três
fases: 1º) envio do projecto ou da proposta e “com especial
e suficiente fundamentação”, à luz dos princípios da
primazia do estatuto, do adquirido autonómico e da
subsidiariedade; 2º) emissão de parecer fundamentado; 3º) no
caso de parecer desfavorável ou de não aceitação das
alterações propostas, constituição de comissão bilateral e
paritária para formular uma proposta alternativa no prazo de
30 dias (passados os quais o órgão de soberania poderia
decidir livremente).
O Tribunal não teve dúvidas em
considerar este procedimento claramente contrário ao modo
como devem decorrer as relações entre os órgãos de soberania
e os órgãos de governo próprio das regiões.
Por um lado, o artigo 119°, nº
2, não se limitava a especificar os princípios que os órgãos
de soberania deveriam respeitar ou ponderar: obrigava‑os a
fundamentar a sua proposta de âmbito regional, perante os
órgãos regionais, à luz dos princípios de protecção da
autonomia regional, como se eles não fossem uma parte do
todo nacional, mas antes um destinatário externo nele não
integrado.
Por outro lado, se a Região
emitisse parecer desfavorável o procedimento, deixaria de
ser da audição conformada no artigo 229°, nº 2, da
Constituição e transformar-se‑ia numa negociação, através da
prevista comissão bilateral paritária. E aqui, a relação
constitucional de poderes desfigurar‑se‑ia: a Região não só
seria ouvida, como poderia negociar e, eventualmente, impor
a sua vontade, nomeadamente quando o órgão de soberania,
para decidir, tivesse a seu desfavor a pressão do tempo.
75. O artigo 140º, nº 2
limitava os poderes de revisão do Estatuto, às normas sobre
as quais incidisse a iniciativa da Assembleia Legislativa e
às matérias com ela correlacionadas.
O Tribunal decidiu, mais uma
vez, no sentido da inconstitucionalidade, embora não sem
votos de vencido.
Ao dispor sobre o alcance e os
termos em que o procedimento das alterações estatutárias
deveriam desenrolar-se, o preceito em causa acabaria por
intrometer-se na delimitação ou definição dos poderes
constitucionais da intervenção da Assembleia da República
sobre a matéria (artigo 110°, nº 2, da Constituição). Ora,
não poderia uma norma de direito ordinário estatuir o nível
de rigidez de que a mesma norma se encontrava revestida
quando esse nível de imperatividade decorresse de uma norma
de categoria superior, como a norma constitucional.
O problema tem sido há muito
discutido na doutrina, havendo quem considere ser a solução
mais consentânea com o regime compartilhado de alterações
estatutárias a de que o Parlamento não pode fazer alterações
em áreas não envolvidas na proposta de alteração da
Assembleia Legislativa Regional (assim, entre outros, Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 847). E
também os votos de vencido dos juízes Mário Torres, Joaquim
de Sousa Ribeiro, Maria Lúcia Amaral e Maria João Antunes
apelaram a um modelo de cooperação, de concertação ou de
competência partilhada nessa matéria.
Representaria um desrespeito
desse princípio, escreveu o juiz Mário Torres, que perante
um projecto de revisão estatutária que se limitasse a propor
alterações ao artigo relativo aos símbolos regionais, a
Assembleia da República aproveitasse o ensejo e introduzisse
profundas alterações noutros capítulos estatutários, de todo
estranhos ao objecto do projecto de revisão, como, por
exemplo, procedendo a uma redução drástica da enumeração das
matérias de interesse regional. Em tal hipótese, não seria
lícito sustentar que fora respeitada, em termos materiais, a
regra constitucional que atribui às Assembleias Legislativas
Regionais o exclusivo do poder de iniciativa da revisão
estatutária.
A nossa posição tem sido há
muito a de uma linha de convergência com a linha do acórdão.
Há muito vimos sustentando a faculdade da Assembleia da
República de introduzir alterações aos estatutos para além
das propostas pelas Assembleias Legislativas, por recusa da
rigidez e das restrições aos poderes do Parlamento – órgão
com primado de competência legislativa – que implicariam o
entendimento oposto. Nem se compreenderia que, na votação na
especialidade da proposta de lei orçamental, pudessem os
Deputados e os grupos parlamentares apresentar propostas de
alteração ao texto do Governo e não o pudessem fazer aos
textos das Assembleias Legislativas Regionais. A reserva de
iniciativa em ambos os casos é apenas a originária. E, de
resto, perante qualquer alteração, a Assembleia Legislativa
vai ainda emitir parecer (artigo 228º, nº 2).
Tudo isto, no entanto, nos
limites da razoabilidade. A Assembleia da República não pode
desfigurar (diz Rui Medeiros em Jorge Miranda e Rui
Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, III,
Coimbra, 2007, pág. 289) os projectos de revisão dos
estatutos, introduzindo alterações substanciais; o que não
deve é tal limite ser concretizado com base no critério
puramente formal das matérias objecto dos projectos
elaborados pelos Parlamentos regionais.
XI
Direitos dos grupos de
cidadãos representados em órgãos municipais. Uma decisão
aditiva
76. O artigo 5º, nº 3 do
chamado Estatuto da Oposição (Lei nº 24/98, de 26 de Maio)
dispõe que os partidos políticos representados nos órgãos
deliberativos das autarquias locais e que não façam parte
dos correspondentes órgãos executivos ou que neles não
assumam pelouros, poderes delegados ou outras formas de
responsabilidade directa e imediata pelo exercício de
funções executivas têm o direito de ser ouvidos sobre as
propostas de orçamentos e planos de actividade. Não confere
idêntico direito aos grupos de cidadãos representados nos
mesmos órgãos, apesar de eles poderem apresentar
candidaturas às assembleias de freguesia e, desde 1997, a
todos os órgãos de autarquias locais (artigo 239º, nº 4 da Constituição).
Invocando aquele preceito
legal, a Câmara Municipal de Vizela negou a certo grupo de
cidadãos eleitores audição aquando da elaboração do
orçamento e do plano de actividades a apresentar à
Assembleia Municipal e, porque o grupo se dirigiu aos
tribunais para defender que gozava também desse direito,
foram chamados a decidir, sucessivamente, o Tribunal
Administrativo e Fiscal de Braga, o Tribunal Administrativo
Central e, por último, o Tribunal Constitucional. E este,
pelo acórdão nº 373/2009, de 23 de Julho,
concluiu pela inconstitucionalidade do preceito, quando
interpretado no sentido de não abranger os grupos de
cidadãos.
77. Havia sido alegada
violação do princípio da igualdade, uma vez que tanto os
partidos como os grupos de cidadãos eleitores têm o direito
de participar na vida autárquica local, de se submeter a
escrutínio político e, por conseguinte, de terem os seus
representantes eleitos e com assento nos órgãos das
autarquias.
O Tribunal Constitucional não
quis, porém, trilhar esse caminho, por lhe parecerem muito
salientes as diferenças entre os partidos e os grupos de
cidadãos – os partidos com papel especial na vida política
do País, constituídos a título permanente e sujeitos a
significativas obrigações quanto à sua organização, ao seu
funcionamento e ao seu financiamento, ao passo que os grupos
de cidadãos duram apenas pelo tempo do mandato dos seus
representantes. Logo, por aí justificar‑se‑ia uma
diferenciação de tratamento.
Preferiu o Palácio Ratton
estear‑se na atribuição a esses grupos também de um direito
geral de oposição (artigo 3º, nº 3 do Estatuto). Ora, tendo
os grupos de cidadãos eleitores representados nas
Assembleias Municipais que não façam parte das Câmaras
Municipais o direito de acompanhar, fiscalizar e criticar as
orientações políticas das respectivas Câmaras, não haveria
razão para não se lhes conceder o específico direito de
serem ouvidos sobre os documentos de gestão previsional
anual, direito esse essencial para o exercício do direito de
oposição democrática. Contendo o orçamento a previsão das
receitas e despesas e o plano de actividades o programa de
investimentos e de actividades a realizar pelo município em
determinado período, a audição a seu respeito serviria de
meio adequado a que a oposição se pronunciasse sobre a
orientação dos órgãos executivos.
78. Esta conclusão não pode
deixar de ser acolhida. Já o raciocínio aduzido enferma de
alguma contradição.
O Tribunal recusou socorrer‑se
do princípio da igualdade, em virtude das diferenças entre
partidos e grupos de cidadãos eleitores, mas depois
ultrapassou as diferenças ao reconhecer que o direito de
oposição envolvia para uns e outros o direito de audição.
Fundou a sua decisão no
artigo 114º,
nº 2
da Constituição, conjugado com o artigo 239º, nº 4, mas não
podia ter tomado em conta o artigo 114º, nº 3, visto o
direito de informação acerca do andamento dos principais
assuntos de interesse público ser prévio ao direito de
audição?
Acrescente‑se que, não obstante
a fórmula utilizada, não foi simplesmente julgada
inconstitucional a norma do artigo 5º, nº 3 do Estatuto da
Oposição em certo sentido. Foi, ao mesmo tempo, afirmado
outro sentido, mais amplo, nele enxergando quer os partidos
políticos quer os grupos de cidadãos. Ou seja: fez‑se uma
verdadeira e própria decisão aditiva.
XII
Rectificações de diplomas
legais. Retroactividade. Tutela da confiança
79. Segundo o artigo 5º, nº 1
da Lei nº 74/98, de 11 de Novembro (a actual lei sobre
publicação, identificação e formulário dos diplomas), as
rectificações são admissíveis exclusivamente para a
correcção de lapsos gramaticais, ortográficos, de cálculo ou
de natureza análoga ou para correcção de erros materiais
provenientes de divergências entre o texto original e o
texto publicado no Diário da República e são feitas
mediante declaração do órgão que aprovou o texto original.
É uma clara exigência dos
princípios da competência e do respeito dos procedimentos
constitucionais e, sobretudo, dos princípios de tutela da
confiança e da boa fé, de tal sorte que, a pretexto de
rectificações, se não efectuem verdadeiras alterações. E ela
assume uma particularíssima importância quando se trate de
normas sancionatórias e, em geral, de normas que prevejam um
tratamento menos favorável dos cidadãos.
Um caso de desrespeito
destes princípios (e, não propriamente, da Lei nº 74/98, que
se confina a extrair deles um corolário, sem que possa
alçar‑se à categoria de valor reforçado) foi o caso objecto
do acórdão nº 490/2009, de 28 de Setembro,
em que se julgou inconstitucional a norma do artigo 12º, nº
3, alínea a) do Código do Trabalho, na redacção
segundo a Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 19 de
Maio, por, através desta declaração se repor em vigor uma
contra‑ordenação que havia desaparecido com a lei
rectificanda.
Como aí se lê, “vigorando em
matéria contra‑ordenacional, tal como em matéria penal, no
domínio da sucessão de leis, a regra da imposição da
aplicação da lei mais favorável (artigo 3º, n.º 2, do
Decreto‑Lei nº 433/82), em obediência a uma ideia de
desnecessidade de intervenção destes instrumentos
sancionatórios, o acto legislativo de descontra‑ordenação
compromete o Estado perante os cidadãos, no sentido de que
já não serão sancionados os respectivos comportamentos,
mesmo que praticados em data em que tal punição se
encontrava prevista na lei. – E este compromisso não pode
ser quebrado, apesar de o Estado verificar que se equivocou
ao abandonar o sancionamento como contra‑ordenação daquelas
condutas, em defesa da fiabilidade da actividade de um
Estado de direito democrático”.
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