O Tribunal Constitucional em 2009

prof. doutor jorge miranda

 

Sumário I – Volume das decisões. II – Principais decisões. III – Indemnização por morte de nascituro. Um caso de inconstitucionalidade de decisão judicial? IV. A lei de procriação medicamente assistida. V – Execução de penas. VI – Constituição e casamento de homossexuais. VII – Reabilitação urbana, venda forçada e direito de propriedade. VIII – Recusa de inscrição de um partido político. IX – Estatuto dos juízes de paz. Inelegibilidade dos juízes. X – Um segundo acórdão sobre o estatuto dos Açores. XI – Direitos dos grupos de cidadãos representados em órgãos municipais. Uma decisão aditiva. XII – Rectificações de diplomas legais e tutela da confiança.

  

I

Volume das decisões

 

1.  Em 2009, o Tribunal Constitucional proferiu os seguintes acórdãos, classificados em razão das diversas competências que a Constituição e a lei lhe atribui:

Fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade

–.. Decisões sobre reclamações a respeito da admissibilidade de recursos  ........................................................................    85

–.. Decisões sobre questões de processo  .............................. 274

–.. Decisões de mérito  ........................................................ 153

–.. Outras decisões  .............................................................      3

Fiscalização abstracta

–.. Decisões em fiscalização preventiva  ...............................      3

–.. Decisões em fiscalização sucessiva de inconstitucionalidade por acção  ......................................................................    17

–.. Decisões em fiscalização de inconstitucionalidade por omissão  .......................................................................................      0

Eleições e referendos

–.. Decisões em contencioso eleitoral  ..................................    79

–.. Decisões sobre referendos locais  ....................................      1

Partidos

–.. Decisões sobre partidos e coligações  ..............................    18

–.. Decisões sobre financiamento dos partidos e campanhas eleitorais  .......................................................................    18

–.. Decisões sobre recursos de decisões de órgãos partidários        ..................................................................................... 5

Outras competências

–.. Decisões sobre declarações de rendimentos e incompatibilidades dos titulares de cargos políticos  .........      3

 

2.  Comparando com as decisões de 2008, verifica‑se, tal como de 2007 para 2008, um aumento do número de acórdãos em fiscalização sucessiva, os quais chegaram a 17.

As matérias atinentes a direitos fundamentais continuam a dominar na fiscalização concreta, aquela área de mais intensa actividade do Tribunal Constitucional.

Fora do controlo de constitucionalidade, o significativo volume de decisões em matérias eleitorais e de partidos deveu‑se à realização, no mesmo ano, de três eleições – para o Parlamento Europeu, para a Assembleia da República e para os órgãos das autarquias locais.

 

 

II

Principais decisões

 

3.  Sobre direitos das pessoas:

–   Acórdão nº 101/2009 (procriação medicamente assistida, direito à identidade genética, dignidade da pessoa humana);

–   Acórdão nº 359/2008 (casamento de homossexuais);

–   Acórdão nº 357/2009 (protecção de nascituro, responsabilidade por acidente de viação, inconstitucionalidade de decisões judiciais).

 

4.  Sobre matérias penais e contra‑ordenacionais:

–   Acórdão nº 1/2009 (testemunhas, garantias de processo penal);

–   Acórdão nº 162/2009 (princípio do juiz natural);

–   Acórdão nº 427/2009 (Código de Execução das Penas);

–   Acórdão nº 490/2009 (não retroactividade da lei contra‑ordenacional, rectificações legislativas).

 

5.  Sobre direitos sociais:

–   Acórdão nº 161/2009 (acidentes de trabalho, revisão de pensão por acordo do trabalhador);

–   Acórdão nº 186/2009 (Caixa Geral de Aposentações, protecção da confiança);

–   Acórdão nº 188/2009 (direito à segurança social, pensões de invalidez e de velhice, protecção da confiança);

–   Acórdão nº 271/2009 (remuneração dos aposentados, igualdade salarial).

 

6.  Sobre direito de propriedade e urbanismo:

–   Acórdão nº 421/2009 (reabilitação urbana, venda forçada, direito de propriedade).

 

7.  Sobre matérias financeiras:

–   Acórdão nº 150/2009 (contra‑ordenações fiscais, responsabilidade solidária);

–   Acórdão nº 494/2009 (imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, pagamento especial por conta, princípios de proporcionalidade e de não‑retroactividade).

 

8.  Sobre eleições:

–   Acórdão nº 250/2009 (inelegibilidade dos juízes, julgados de paz);

–   Acórdão nº 467/2009 (propaganda eleitoral, salas de espectáculo, recurso de deliberação da Comissão Nacional de Eleições);

–   Acórdão nº 473/2009 (grupo de cidadãos eleitores, inelegibilidade);

–   Acórdão nº 523/2009 (votos válidos e votos nulos);

–   Acórdão nº 568/2009 (eleição de juntas de freguesia).

 

9.  Sobre partidos políticos:

–   Acórdão nº 26/2009 (financiamento dos partidos);

–   Acórdão nº 99/2009 (finanças dos partidos políticos, aplicação de sanções penais);

–   Acórdão nº 369/2009 (indeferimento de pedido de inscrição de um partido político);

–   Acórdão nº 373/2009 (direito de oposição a nível local, grupo de cidadãos);

–   Acórdão nº 557/2009 (impugnação de deliberação de partido).

 

10.  Sobre matérias judiciárias e processuais:

–   Acórdão nº 301/2009 (custas judiciais, proporcionalidade);

–   Acórdão nº 346/2009 (alteração de matéria de facto em processo civil, processo equitativo);

–   Acórdãos nºs 596 e 597/2009 (acidentes em auto‑estrada, responsabilidade das empresas concessionárias, ónus de prova).

 

11.  Sobre contencioso administrativo e tributário:

–   Acórdão nº 197/2009 (direito ao recurso, recurso excepcional de revista para o Supremo Tribunal Administrativo);

–   Acórdão nº 376/2009 (acesso à justiça, impugnações administrativas necessárias).

 

12.  Sobre regiões autónomas:

–   Acórdão nº 185/2009 (legislação regional);

–   Acórdão nº 174/2009 (audição das regiões autónomas, nacionalização de um banco);

–   Acórdão nº 403/2009 (estatuto político‑administrativo dos Açores).

 

13.  Sobre poder local:

–   Acórdão nº 449/2009 (plenários de cidadãos eleitores).

 

 

III

Indemnização por morte de nascituro. Um caso de inconstitucionalidade de decisão judicial?

 

14.  Por causa de traumatismo sofrido em acidente de viação, uma grávida perdeu o seu filho, já formado e em condições de sobreviver se tivesse sido possível uma operação cesariana. Tendo pedido em juízo a condenação em indemnização solidária dos causadores do acidente, foi a acção julgada improcedente e o mesmo viria a suceder com os recursos interpostos para o Tribunal da Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça.

Em todas as instâncias, invocou a inviolabilidade da vida humana, inclusa a intra‑uterina, com a consequência do necessário ressarcimento civil, mas o Supremo Tribunal de Justiça negou que o nascituro fosse um centro autónomo de direitos. Por último, desta decisão recorreu para o Tribunal Constitucional.

Com fundamento em a recorrente não ter definido a norma/dimensão normativa determinante da inconstitucionalidade e apenas ter sustentado haver o acórdão recorrido violado “por erro de subsunção” o disposto no artigo 24º, nº 1 da Constituição, o Tribunal Constitucional decidiu, pelo acórdão nº 357/2009, de 8 de Julho[1], não conhecer do recurso.

 

15.  Votaram vencidos os juízes João Cura Mariano e Mário Torres que, diferentemente da maioria da secção a que foi distribuído o processo, entenderam que, nas suas alegações, a recorrente tinha suscitado a questão de inconstitucionalidade do artigo 66º do Código Civil interpretado no sentido de que o nascituro não é titular de um direito à vida, cuja ofensa deva levar a indemnização.

O Código Civil, nesse preceito, estatui que a personalidade jurídica se adquire com o nascimento completo e com vida. Mas o considerar‑se que a vida intra‑uterina é uma das etapas da vida humana abrangida pela exigência da sua inviolabilidade reclamaria da ordem jurídica infra-constitucional a adopção de medidas que a protejam e tutelem. Independentemente do juízo sobre a necessidade da inter­venção dos meios típicos de protecção dos bens jurídicos disponibilizados pelo Direito Civil para protecção da vida intra-uterina, verificar-se‑ia que a intervenção desses meios não está dependente de um reconhecimento de um direito à vida do nascituro concebido.

Aliás, a melhor forma de proteger uma determinada entidade não passa necessariamente por se lhe reconhecer subjectividade jurídica, mas sim pela respectiva elevação à categoria de bem jurídico. E na verdade, na tutela de um bem jurídico como é a vida intra-uterina, o Direito Civil não só disponibilizaria a utilização de medidas preventivas, intimações de abstenção e recurso a acções inibitórias mas também facultaria o instituto da respon­sabilidade civil.

Perante a lesão de bens jurídicos não titulados, nada impediria que se atribuísse a determinados sujeitos jurídicos o direito a receberem uma indemnização pelo dano provocado por essa lesão. Seriam casos em que, perante o sentimento duma aten­dível necessidade de prosseguir, através do instituto da responsabilidade civil, finali­dades preventivas e punitivas, que prevenissem e sancionassem a lesão de um bem jurí­dico, em face da inexistência de um sujeito jurídico lesado, se atribuísse o respectivo direito de indemnização a determinadas pessoas, tendo em conta a espe­cial relação que tivessem com o bem lesado.

Não se revelando, pois, que o reconhecimento deste direito subjectivo ao nascituro concebido fosse imprescindível para que pudesse ser assegurada a protecção conferida pelos meios civilísticos de intervenção, não poderia considerar‑se que a interpretação civilista de que o nascituro concebido não era titular de um direito à vida violasse o disposto no artigo 24º, nº 1, da Constituição. Mas isso não significava que a recusa em atribuir um direito de indemnização pela morte de um nascituro já não infringisse este parâmetro constitucional por resultar num défice de protecção ao bem vida.

Se o valor social deste bem jurídico poderia não exigir que o direito penal o protegesse de todo o tipo de ameaças, já a ordem jurídica, encarada globalmente, não poderia permanecer indiferente a actos que atentassem contra a vida intra-uterina, nomeadamente os resultantes de comportamentos negligentes. Ora, atento o âmbito restrito dos domínios de intervenção do direito discipli­nar e a falta de eficácia das medidas civilísticas de pura prevenção frente à imprevisibilidade dos actos negligentes, não poderia o instituto da responsabilidade civil deixar de ser recrutado para esta missão.

Aliás, em dimensões menos exigentes deste bem jurídico, o instituto da responsabilidade civil não teria deixado de intervir, tutelando, por exem­plo, a integridade física do feto, ao reconhecer um direito de indemnização por ofensas corporais. Fora das teias da construção dogmática que fixa o início da personalidade jurídica no acto de nascimento (uma vez que, nestes casos, o feto ofendido consegue nascer) aquele instituto atribui‑lhe o direito de reclamar uma indemnização pelas ofen­sas sofridas antes do nascimento, protegendo-se, assim, a sua existência intra‑uterina.

Por força do princípio da suficiência de tutela inerente ao Estado de Direito democrático, o recurso deveria, pois, ter julgado inconstitucional a norma do artigo 66º do Código Civil, quando interpretada no sentido de que a morte de um nascituro não é dano indemnizável.

 

16.  Parece irrebatível a argumentação exposta a respeito da tutela do nascituro, independentemente de se lhe reconhecer ou não personalidade jurídica (como defendem alguns Autores) e de existir ou não tutela penal. Os direitos fundamentais ou os bens jurídicos que lhes subjazem podem ser afectados tanto por actos arbitrários quanto por falta de protecção adequada, a que corresponderá, num caso, inconstitucionalidade por omissão e, noutros casos, desde logo, inconstitucionalidade por acção.

Também se afigura oportuno e correcto falar‑se num princípio de suficiência da protecção. Ele é uma componente ou um desdobramento do princípio de proporcionalidade: pois, se este tende a ser encarado, sobretudo, da óptica das medidas restritivas ou ablativas de direitos, certo é que, a par de violações por excesso, não raro, registam‑se violações por incumprimento por parte do Estado de deveres de protecção; e pode dizer‑se então que excesso equivale a desproporcionalidade positiva e défice de protecção a desproporcionalidade negativa.

Não faltam mecanismos de efectivação da responsabilidade civil extracontratual no Direito português. O que se discutia no acórdão recorrido, era o seu funcionamento após uma ocorrência como a da morte do nascituro, nas circunstâncias descritas. Por, à face do artigo 66º do Código Civil, não encarar o nascituro como dotado de personalidade jurídica e de direito à vida, o Supremo Tribunal de Justiça excluiu a existência de dano indemnizável e, assim fazendo, atingiu a garantia constitucional da inviolabilidade da vida humana. Tudo estava, porém, em saber se a inconstitucionalidade seria do acórdão em si ou de interpretação do artigo 66º do Código Civil.

 

17.  Um preceito pode permitir mais de uma interpretação e pode, então, uma ser conforme com a Lei Fundamental e outra não o ser – tudo se passando como se, em potência (aos olhos do órgão de decisão), ele contivesse tanto uma norma não inconstitucional como uma norma inconstitucional. E o Tribunal Constitucional, em jurisprudência constante, entende que a questão de inconstitucionalidade tanto pode respeitar à norma como à interpretação ou ao sentido com que ela foi aplicada no caso concreto.

A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade, na fiscalização concreta, é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que, na primeira hipótese, é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto, na segunda hipótese, está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.

Ou, nas palavras de Carlos Lopes do Rego[2], o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstractamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica – não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro acto de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador, exclusivamente imputável à latitude própria da conformação interna da decisão judicial – por ser evidente que as competências e os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional não envolvem seguramente o controlo das operações subsuntivas realizadas pelo julgador.

No caso em apreço, hesitamos entre um ou outro termo da alternativa. Na dúvida, propenderíamos a que o Tribunal Constitucional tivesse recebido e apreciado o recurso, até porque, doutro modo, denegar‑se‑ia justiça – a justiça, outro dos princípios estruturantes do Estado de Direito democrático (artigos 2º, 9º, 202º, 266º, nº 2).

 

18.  Seja como for, o que um caso como este mostra é a conveniência de, em futura revisão constitucional, introduzir a possibilidade de recurso de decisões dos tribunais para o Tribunal Constitucional, quando arguidas de violação, pelo menos, de direitos, liberdades e garantias e depois de esgotados os recursos ordinários que caibam[3].

 

 

IV

A lei de procriação medicamente assistida

 

19.  Trinta e um Deputados requereram, no uso do poder conferido a mais de um décimo dos Deputados à Assembleia da República pelo artigo 281º da Constituição, a apreciação e a declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade com força obrigatória geral da Lei nº 32/2006, de 26 de Julho (lei de procriação medicamente assistida), com fundamento em inconstitucionalidade formal e violação de lei orgânica do referendo e ainda, quanto a algumas as suas normas, com fundamento em inconstitucionalidade material e em violação da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (Convenção de Oviedo) e respectivo protocolo.

Pelo acórdão nº 101/2009, de 3 de Março[4], votado por maioria, o Tribunal Constitucional não declarou nem a inconstitucionalidade formal, nem a material e recusou tomar conhecimento do pedido nos demais aspectos.

 

20.  A questão básica de inconstitucionalidade formal levantada dizia respeito à entrega ao Parlamento, na manhã do próprio dia de votação final global, de uma iniciativa de realização de referendo sobre as questões de procriação assistida, assinada por 78.333 eleitores (mais do que os que a lei orgânica do referendo exige para o efeito).

Segundo os Deputados requerentes, a não suspensão do procedimento legislativo até à decisão sobre aquela iniciativa frustraria um instrumento de democracia participativa com assento constitucional, em consequência de uma agenda parlamentar que os seus subscritores não dominavam. Haveria violação do artigo 115º da Constituição e dos artigos 4º e 17º a 22º da lei orgânica do referendo.

O Tribunal rejeitou essa fundamentação, mostrando a diferença entre a iniciativa de realização de referendo perante a Assembleia da República e a proposta de realização resultante de deliberação dela (ou do Governo) e sublinhando que é só à formulação desta proposta que o artigo 4º da lei orgânica do referendo atribui efeito suspensivo do procedimento legislativo que esteja em curso. O artigo 115º, nº 2 limita‑se a conferir aos cidadãos eleitores o direito de iniciativa referendária, e nada mais.

 

21.  Passando às questões de fundo, o Tribunal começou por definir os parâmetros à luz dos quais havia de decidir: as normas constitucionais do artigo 1º, consagrador da dignidade da pessoa humana como base da República e a cuja salvaguarda o legislador, por força do artigo 67º, nº 2, alínea e), está adstrito na regulamentação da procriação medicamente assistida; a do artigo 16º, nº 3, sobre interpretação de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem; e, naturalmente, também a dos artigos 24º e segs., sobre direitos pessoais.

Afastou, entretanto, a Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (Convenção de Oviedo) e o seu protocolo adicional, ou porque as suas normas correspondiam a Direito constitucionalizado sem valor paramétrico autónomo ou porque, envolvendo a sua eventual infracção mera inconstitucionalidade indirecta, reconduzível a ilegalidade, não podiam ser considerados em face do artigo 281º da Constituição.

 

22.  Relativamente ao artigo 4º da Lei nº 32/2006, arguida pelos Deputados requerentes de permitir a triagem de embriões humanos em função de características morfológicas e genéticas, o acórdão afirmou que o que estava em causa era o risco de transmissão de doença e, por conseguinte, a mera tentativa de evitar, por via da utilização de uma técnica de procriação medicamente assistida, que o nascituro ou um beneficiário do processo de procriação medicamente assistida viesse a sofrer de uma doença, que como tal pudesse ser caracterizada do ponto de vista médico e que fosse susceptível de se transmitir por via hereditária ou por contágio.

Estaria por isso excluído, mesmo no quadro de uma interpretação literal do preceito, que o nº 2 do artigo 4º implicasse qualquer possibilidade de escolha do sexo de um descendente ou de escolha de quaisquer outras características do nascituro que não tivessem a ver, à partida, com a prevenção de doença.

Por outro lado, o preceito não poderia deixar de ser interpretado no seu enquadramento sistemático e, designadamente, em conjugação com as subsequentes disposições dos artigos 7º, nºs 2 e 3, e 29º da mesma Lei, que permitiriam esclarecer com maior precisão o seu alcance ou, pelo menos, os critérios gerais à luz dos quais deveria ser integrado o conceito outras doenças, a que ele se reporta

 

23.  O artigo 6º, nº 2 da Lei estabelecia um requisito etário mínimo para se beneficiar de procriação medicamente assistida (18 anos), sem fixar um simétrico requisito máximo. Mas o Tribunal notou que este se achava implícito no regime legal instituído, pelo que não se verificaria ofensa de valores constitucionais.

As técnicas de procriação medicamente assistida seriam um método subsidiário, e não alternativo, de procriação e só poderiam ser utilizadas quando tivesse sido efectuado um prévio diagnóstico de infertilidade, o que teria pressuposta a ideia de que a mulher beneficiária se encontrava em idade em que normalmente poderia procriar se não existisse um factor inibitório de natureza clínica que tivesse afectado um dos membros do casal. E o mesmo princípio teria aplicação quando se pretendesse a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida para qualquer das finalidades previstas na segunda parte do nº 2 do artigo 4º, porquanto, ainda nesse caso, estaria suposto que a mulher se encontrasse em idade potencialmente fértil e que o recurso à procriação medicamente assistida resultasse apenas da necessidade de evitar o risco de transmissão de doença ou de providenciar o tratamento de doença grave de terceiro.

 

24.  Relativamente à norma do artigo 7º, nº 3, ela circunscrever‑se‑ia a dar concretização prática a uma das finalidades da procriação medicamente assistida, com o âmbito de aplicação legalmente reconhecido, visando definir os pressupostos em que poderia ocorrer a selecção de uma característica genética do embrião para os apontados efeitos preventivos ou terapêuticos. E essa possibilidade seria admitida a título subsidiário e excepcional.

A possível lesão da tutela reflexa da dignidade humana que o rastreio genético do embrião poderia representar, teria, por conseguinte, como contraponto a realização do direito à protecção da saúde em relação a um terceiro que se encontrasse em perigo de vida, pelo que a solução legislativa corresponderia, em última análise, ao cumprimento por parte do Estado do direito à protecção da saúde na sua vertente positiva, enquanto destinada a assegurar a adopção de medidas que visem a prevenção e o tratamento de doenças (artigo 64º, nº 1, da Constituição).

Dentro do regime jurídico definido pela lei, a alegada “instrumentalização” do embrião mostrar-se‑ia assim justificada pela prevalência de outros valores constitucionalmente tutelados – como salvar a vida ou melhorar o estado de saúde de terceiros –, também eles de natureza eminentemente pessoal, o que desde logo excluiria que o controlo genético do embrião pudesse ser considerado como lesivo do princípio da dignidade da pessoa humana.

Nem a aplicação do diagnóstico genético de pré-implantação implicaria um qualquer risco para o desenvolvimento da criança que viesse a nascer, quando o embrião fosse viável, nem haveria qualquer evidência de que as circunstâncias que rodeariam a concepção pudessem ser, de algum modo, lesivas do bem-estar psicológico da criança dadora ou que esta pudesse vir a considerar‑se diminuída na sua dignidade pelo facto de ter sido concebida na previsão de poder vir a salvar a vida de outrem

 

25.  Quanto aos artigos 9º, nºs 2 a 5, e 30º, nº 2, alíneas i) e j), relativos a investigação científica com embriões humanos, o ponto essencial estaria em eles incidirem sobre embriões não implantados no útero materno e relativamente aos quais se não colocavam questões de constitucionalidade relacionadas com o direito à vida ou os direitos de personalidade, sendo apenas de considerar a protecção do embrião na perspectiva da dignidade da pessoa humana na estrita medida em que o embrião pudesse dar origem a uma vida humana se fosse viável e viesse a ser utilizado num projecto parental.

Todavia, a norma proibia a criação de embriões com o objectivo deliberado de utilização na investigação científica (nº 1). E, por outro lado, salvo a previsão constante do artigo 9º, nº 4, alínea d), só poderiam ser aplicados na investigação os embriões, criados para fins de procriação medicamente assistida, que não tivesse sido possível enquadrar num projecto parental, ou por não terem sido utilizados pelo casal e este não ter autorizado a sua doação nos termos dos artigos 10º e 25º, nº 5, ou por se terem tornado inviáveis (em virtude de o seu estado não permitir a transferência ou a criopreservação com vista à procriação), ou ainda por serem portadores de anomalia genética grave [artigo 9º, nº 4, alíneas a) a c)]. Além disso, a investigação com recurso a embriões só seria lícita para qualquer das finalidades mencionadas no nº 2 do artigo 9º (prevenção, diagnóstico ou terapia de embriões, aperfeiçoamento das técnicas de procriação medicamente assistida, constituição de bancos de células estaminais para programas de transplantação ou com quaisquer outras finalidades terapêuticas) e, como determinava o nº 3, desde que fosse razoável esperar que daí pudesse resultar benefício para a humanidade.

Por fim, o projecto científico que envolvesse embriões deveria ser aprovado pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida de acordo com os critérios e objectivos definidos nos nºs 2 e 3 desse preceito [cfr. artigo 30º, nº 2, alínea g)].

Quanto à clonagem terapêutica não reprodutiva, o artigo 9º, nº 4, alínea d) teria de ser conjugado com o artigo 9º, nº 1. Ora, este proibiria a criação de embriões com o objectivo deliberado da sua utilização na investigação científica, e, sendo esse o critério essencial, pareceria dever concluir-se, sob pena de existência de uma contradição insanável entre as duas normas, que o legislador não considerava o produto da clonagem por transferência nuclear somática como um verdadeiro embrião, apesar de a formulação verbal do artigo 9º, nº 4, alínea d). Poderia assim tratar-se, na perspectiva do legislador, de um mero artefacto laboratorial, sem capacidade de vir a transformar-se em ser humano.

Em todo o caso, a utilização em investigação científica de embriões obtidos sem recurso à fecundação por espermatozóide, como previa o artigo 9º, nº 4, alínea d), estaria sujeita ao mesmo grau de protecção reservado para as demais situações elencadas nesse preceito. Manter-se‑ia, designadamente, a exigência de apreciação e aprovação do projecto de investigação por parte do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida; além de que a lei proibiria e sancionaria criminalmente a clonagem com fins reprodutivos (artigo 36º), proibição que decorre da necessidade de proteger direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.

 

26.  Mais complexos eram os problemas postos pela procriação heteróloga, ou seja, a utilização da técnica de procriação medicamente assistida que implicasse o recurso a gâmetas de dadores e a dádiva de embriões.

O acórdão enfrenta‑os, dizendo, em primeiro lugar, que a lei consagraria, como decorreria de diversas das suas disposições, um princípio de subsidiariedade em relação à aplicação das técnicas de procriação heteróloga. A dádiva de espermatozóides, ovócitos e embriões só seria permitida quando, em face dos conhecimentos médico-científicos objectivamente disponíveis, não pudesse obter‑se gravidez através do recurso a qualquer outra técnica que utilizasse os gâmetas dos beneficiários (artigo 10º, nº 1). E do mesmo modo, a inseminação com sémen de um terceiro dador só poderia verificar-se quando não fosse possível realizar a gravidez através de inseminação com sémen do marido ou daquele que viva em união de facto com a mulher a inseminar (artigo 19º, nº 1). O que seria também aplicável na fertilização in vitro com recurso a sémen ou ovócitos de dador e em relação a outras técnicas de procriação medicamente assistida como a injecção intracitoplasmática de espermatozóides ou a transferência de embriões, gâmetas ou zigotos (artigos 27º e 47º).

Relativamente às normas do Direito civil que permitem a adopção de filhos do outro cônjuge ou a inclusão no seio de família de filhos não concebidos na constância do matrimónio, a differentia specifica ligado à procriação heteróloga estaria em que, neste caso, a dissociação entre a paternidade/maternidade social e a paternidade/maternidade biológica resultaria do recurso intencional a uma técnica de procriação medicamente assistida. Se houvesse de colocar-se uma questão de identidade genética e de identidade pessoal, ela manteria validade para qualquer daquelas situações, tradicionalmente aceites no ordenamento jurídico português.

A garantia da identidade genética referir-se‑ia especialmente à intangibilidade do genoma e à unicidade da constituição genómica de cada um e teria essencialmente o sentido de impedir a manipulação genética do ser humano e a clonagem. Sendo assim, não seriam as técnicas de medicina reprodutiva e a simples previsão do recurso à inseminação artificial ou à fertilização in vitro com gâmetas de um terceiro dador, com os limites impostos pelo artigo 7º da Lei nº 32/2006, que poderiam pôr em causa o direito garantido pelo nº 3 do artigo 26º da Constituição.

Tão pouco se correria o risco de uma “comercialização encapotada”, visto que a própria lei proibiria a compra ou venda de óvulos, sémen ou embriões ou de qualquer material biológico decorrente de aplicação das técnicas de procriação medicamente assistida.

 

27.  Nas normas do artigo 15º, nºs 1 a 4, conjugadas com as do artigo 10º, nºs 1 e 2, estariam em tensão diferentes direitos fundamentais (artigos 26º, nºs 1 e 3, da Constituição): o direito fundamental da pessoa nascida de procriação medicamente assistida à identidade pessoal, o direito ao conhecimento da sua ascendência genética, o direito a constituir família e o direito à intimidade da vida privada e familiar.

Mas o artigo 15º da Lei nº 32/2006 não estabeleceria uma regra definitiva de anonimato dos dadores, mas apenas uma regra prima facie, com excepções expressamente previstas. Embora os intervenientes no procedimento se encontrassem sujeitos a um dever de sigilo, as pessoas nascidas na sequência da utilização de técnicas de procriação medicamente assistida com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões poderiam, junto dos competentes serviços de saúde, obter as informações de natureza genética que lhes dissessem respeito (nº 2), bem como informação sobre eventual existência de impedimento legal a um projectado casamento (nº 3), assim como poderiam obter informações sobre a identidade dos dadores de gâmetas quando se verificassem razões ponderosas, reconhecidas por sentença judicial.

Depois, a identidade pessoal seria um conceito referido à pessoa e que se constrói ao longo da vida em vista das relações que nela se estabelecem, constituindo os vínculos biológicos apenas um desses aspectos. As posições jurídicas contidas no direito à identidade pessoal, como o direito ao conhecimento das origens genéticas, não teriam necessariamente uma força jurídico-constitucional uniforme e totalmente independente dos diferentes contextos em que, efectivamente, se desenvolveria essa identidade pessoal. O reconhecimento de um direito ao conhecimento das origens genéticas não impediria que o legislador pudesse modelar o exercício de tal direito em função de outros interesses ou valores constitucionalmente tutelados que pudessem reflectir-se no conceito mais amplo de identidade pessoal.

Além disso, o direito a constituir família seria certamente um factor a ponderar na admissibilidade subsidiária da procriação heteróloga. Ao admitir‑se uma modalidade de procriação medicamente assistida que pressupõe a doação de gâmetas por um terceiro, mal se compreenderia que se estabelecesse um regime legal a ela relativo que fosse tendente a afectar a paz familiar e os laços afectivos que ligam os seus membros. Não seria de considerar constitucionalmente inadmissível que o legislador criasse as condições para que fossem salvaguardadas a paz e a intimidade da vida familiar.

Finalmente, o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida possuiria a informação sobre a identidade dos dadores e poderia prestá-la nos termos e com os limites previstos no artigo 15º, quer fornecendo dados de natureza genética, quer identificando situações de impedimento matrimonial, e sem excluir a possibilidade de identificação do dador quando fosse proferida decisão judicial que verificasse a existência de razões ponderosas que tornassem justificável essa revelação [artigo 30º, nº 2, alínea i)]. Além disso, as razões ponderosas referidas no artigo 15º, nº 4, da Lei nº 32/2006, deveriam ser consideradas à luz do direito à identidade pessoal e do direito ao desenvolvimento da personalidade, que, nesses termos, poderiam merecer prevalência na apreciação do caso concreto.

 

28.  A respeito do regime da filiação na reprodução heteróloga, os Deputados requerentes faziam especial referência ao artigo 20º, nº 5, da Lei nº 32/2006, considerando que este, ao permitir a impugnação da paternidade presumida quando não tivesse havido consentimento do marido à inseminação heteróloga da mulher, contrariaria o disposto no artigo 6º, nº 1, do mesmo diploma e violaria o direito da criança à protecção da sociedade, e, designadamente, o direito a beneficiar da estrutura familiar biparental da filiação.

Porém, para o Tribunal, aquele artigo 20º, nº 5, não afastaria nem poria em causa o princípio da biparentalidade enunciado no precedente artigo 6º, nº 1. A regra não deixaria de ser que “[s]ó as pessoas casadas que não se encontrem separadas judicialmente de pessoas e bens ou separadas de facto ou as que, sendo de sexo diferente, vivam em condições análogas às dos cônjuges há pelo menos dois anos podem recorrer a técnicas de procriação medicamente assistida”.

Por outro lado, o artigo 20º estabeleceria uma presunção de paternidade em relação ao cônjuge que tivesse consentido na inseminação heteróloga da mulher (nº 1), impedindo – como também resulta do seu nº 5 – que este viesse a exercer posteriormente o direito de impugnação da paternidade presumida. E seria contrário à boa fé que quem tivesse aceite um processo de inseminação heteróloga para solucionar o seu próprio problema de esterilidade, conformando-se com a investidura na função social de pai, apesar de não ser o progenitor biológico, viesse depois contestar o vínculo de filiação.

O consentimento do marido ou da pessoa unida de facto seria acautelado por lei com a máxima prudência. Deveria, nos termos do artigo 14º, nº 1, ser prestado de “forma expressa e por escrito, perante médico responsável” e, nos termos do nº 2 desse mesmo artigo, “devem os beneficiários ser previamente informados, por escrito, de todos os benefícios e riscos conhecidos resultantes da utilização das técnicas de procriação medicamente assistida, bem como das suas implicações éticas, sociais e jurídicas”.

Em face de todas as cláusulas de salvaguarda, a possível ocorrência de conflitos negativos de paternidade apenas poderia derivar de situações de anormalidade, de nenhum modo podendo atribuir-se ao legislador a intencionalidade de instituir um regime  de monoparentalidade.

 

29.  Os Deputados requerentes sustentavam que os artigos 24º e 25º da Lei nº 32/2006 consagravam um princípio de criação discricionária de embriões e permitiam a ocorrência de gravidezes múltiplas, por simples exercício do poder médico e científico, potenciando situações de malformação fetal, o que violaria os artigos 64º, 67º, nº 2, alínea e), e 68º da Constituição.

O Tribunal negou a existência de tal princípio. Pelo contrário, o legislador assentaria num princípio de necessidade, avaliado segundo um critério médico, e tendo em conta a situação clínica do casal. Haveria uma lógica de intervenção mínima segundo um cálculo de probabilidade e associando o processo de fecundação à finalidade de procriação.

Não sendo possível garantir, à partida, uma total correspondência entre o número de embriões criados e o número de embriões transferidos para o útero sendo de admitir a existência de embriões “que, por circunstâncias ou razões imponderáveis”, são “excluídos do seu projecto parental originário”, a ocorrência de embriões excedentários surgiria como uma inevitabilidade, que só poderia ser prevenida através da proibição em geral da fertilização in vitro. Mas isso não deixaria de constituir um injustificável retrocesso no desenvolvimento da biomedicina e seria incompatível com a referência valorativa que decorre do artigo 67º, nº 2, alínea e), da Constituição.

 

30.  Os Deputados requerentes entendiam também que o diagnóstico genético pré‑implantação previsto nos artigos 28º e 29º da lei, destinando‑se à produção de seres humanos seleccionados segundo qualidades pré-estabelecidas, constituiria uma manipulação contrária à dignidade, integridade e identidade única e irrepetível do ser humano.

O Tribunal considerou a questão, distinguindo nesse diagnóstico ora uma finalidade de selecção positiva de embriões, ora uma finalidade de selecção negativa. No tocante à primeira, tendo‑se já concluído pela admissibilidade constitucional de recurso à procriação medicamente assistida para tratamento de doença grave, não poderia deixar de se seguir idêntico entendimento relativamente à realização do diagnóstico genético pré‑implantação quando ele visasse essa mesma finalidade, visto que assume, nessa circunstância, uma mera função instrumental. No tocante à segunda, aquele diagnóstico permitiria a detecção dos embriões portadores da doença genética e preveniria o abortamento precoce e o nascimento de pessoas com problemas graves de saúde.

A razão fundamental que se poderia invocar em desfavor da utilização do diagnóstico pré‑implantação seria o ele implicar a destruição de embriões e de potenciar formas de eugenismo que pudessem considerar-se contrárias à dignidade da pessoa humana [artigos 1º e 67º, nº 2, alínea e)]. No entanto, tratar‑se‑ia sempre de embriões num estádio muito inicial de desenvolvimento, mais concretamente, entre o 3º e o 6º dias de desenvolvimento. E, dado o objectivo terapêutico imediato, valeriam, por maioria de razão, as considerações feitas a respeito da investigação com embriões.  

Manifestar‑se‑ia aqui, mais uma vez, a diferença ética de grau entre um inadmissível utilitarismo positivo e um tolerável utilitarismo negativo − o que não é admissível para aumentar a felicidade de terceiros, pode sê-lo para minorar o sofrimento de cada um. O diagnóstico genético de pré‑implantação, inadmissível para escolher características subjectivamente consideradas desejáveis pelos pais, seria legítimo para prevenir uma doença grave (e, portanto, objectivamente indesejável) do nascituro.

 

31.  Os Deputados requerentes impugnavam o artigo 36º da Lei por não cominar a punição penal da clonagem reprodutiva no âmbito da procriação medicamente assistida.

Para o Tribunal, nada permitiria concluir que o artigo 36º, nº 1, da Lei nº 32/2006 tivesse excluído a criminalização da clonagem reprodutiva. A ressalva aí feita apenas poderia ser interpretada como abrangendo os casos em que a transferência de núcleo fosse levada a cabo, como técnica secundária, subordinadamente necessária para a aplicação das técnicas de procriação medicamente assistida previstas, nomeadamente nas alíneas b), c) e d) do artigo 2º, sem pôr em causa a proibição do artigo 7º, nº 1, que objectivamente impenderia sobre as técnicas de procriação medicamente assistida, de criação de seres geneticamente idênticos.

 

32.  Sustentavam, por fim, os Deputados requerentes que o artigo 39º apenas sancionava a maternidade de substituição a título oneroso, nada estatuindo acerca dos negócios gratuitos. E, essa falta de sanção revelaria permissividade relativamente ao negócio da maternidade de substituição, representaria um risco para a dignidade e outros direitos do ser humano e constituiria fraude à lei, por ir contra o estabelecido no artigo 8º do mesmo diploma, colidindo assim com as disposições dos artigos 25º, 26º, 67º e 68º da Constituição e todas as disposições da Convenção de Oviedo.

A isso contrapõe o acórdão que o preceito proibiria claramente a celebração de negócios jurídicos de maternidade de substituição, independentemente de serem onerosos ou gratuitos, qualificando-os como nulos (nº 1). E que o nº 3 do mesmo artigo esclareceria, em conformidade com o regime da nulidade, que “a mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer”. Esse regime não revelaris permissividade do legislador e permitiria aplicar‑se a regra de estabelecimento da filiação constante do artigo 1796º, nº 1, do Código Civil, segundo a qual, relativamente à mãe, a filiação resulta do facto do nascimento.

O legislador teria sido coerente com o regime proibitivo, prevendo expressamente os efeitos da violação de proibição de realização de negócios de maternidade de substituição. Simplesmente, teria optado por diferenciar esses efeitos, consoante o negócio fosse gratuito ou oneroso: em ambos os casos, um efeito civil (a nulidade do negócio) e, no segundo caso, também uma sanção criminal.

Esta matéria situar‑se‑ia ainda dentro da margem de livre deliberação legislativa. O legislador poderia legitimamente optar por não criminalizar condutas que, embora tivessem resultados socialmente indesejáveis, se situassem em contextos pessoais e emocionais de tal forma complexos que se tornaria difícil formular um juízo global de censura, nos termos em que tal juízo vai pressuposto em toda a sanção penal.

 

33.  Votaram vencidos, em parte, os juízes Maria Lúcia Amaral e Benjamim Rodrigues.

Segundo aquela juíza, o Tribunal teria deixado na penumbra a questão de saber de que modo pode a dignidade da pessoa humana ser “utilizada” na concretização e na delimitação do conteúdo de direitos fundamentais. A regulação legislativa das técnicas de procriação medicamente assistida atingiria direitos que precisariam de ser entre si sopesados e ponderados. Admitindo que o sentido da ordem de regulação contida no artigo 67º da Constituição se esgotava nisso mesmo – em conferir ao princípio [da [dignidade] o alcance de instrumento interpretativo auxiliar da ponderação a fazer entre outros direitos ou princípios – ainda assim o princípio só se tornaria operativo se se soubesse de que modo poderia ele contribuir para a “concretização” e “delimitação” do conteúdo de outras normas jusfundamentais.

Mas, para além de não ter ficado esclarecido que contornos objectivos deteria o princípio, teria ficado ainda por esclarecer qual o exacto âmbito da sua aplicação subjectiva.

Apesar de reconhecer que o embrião, ainda que não implantado, é susceptível de potenciar a existência de uma vida humana, o Tribunal tinha entendido que em relação a ele se não podia aplicar a garantia da protecção da vida humana, enquanto bem juridicamente protegido, precisamente por se tratar de uma “existência” ainda não implantada. Isto significaria que o Tribunal tinha definido o conceito constitucional de vida da seguinte forma restritiva: a fronteira que separa a vida e a não-vida (e, consequentemente, a fronteira que separa o “território” em que deve existir alguma protecção dada pelo Estado e pelo Direito do “território” da desprotecção) seria a diferente localização, intra ou extra-uterina, do embrião.

Sem deixar de admitir que entre “vida potencial” e “vida actual” existe uma inquestionável gradação valorativa, tal não justificaria que a vida potencial extra-uterina fosse tida, para efeitos da determinação do correspondente conceito constitucional e do âmbito objectivo de protecção da norma contida no artigo 24º da Constituição, como algo que se situaria aquém da protecção, constitucionalmente fundada e por isso mesmo devida, do Estado e do Direito. Antes do mais, porque uma tal concepção restringiria sem qualquer fundamento as possibilidades conformadoras do Bio-Direito, ou Direito da Bio-ética, como também é chamado.

Para quem entenda que todos os embriões (incluindo os não implantados) são objecto da protecção conferida pelo nº 1 do artigo 24º da Constituição, por não poderem situar-se fora do conceito constitucional de vida, o dito do nº 1 do artigo 9º da Lei não corresponderia (não poderia corresponder) a uma escolha livre do legislador. E assim seria não apenas por se encontrar o Estado português vinculado a uma obrigação internacional, assumida convencionalmente; seria assim, antes do mais, por imperativo constitucional, que obrigaria o Estado, desde logo através do legislador, a proteger o bem “vida” de uma instrumentalização que o degradasse à condição de objecto, de mero meio para a obtenção de um fim ou de medida substituível. Que o “fim” fosse a liberdade de investigação científica (artigo 42º da Constituição), ou a realização do direito à saúde (artigo 64º) não justificaria, por si só, a utilização de quaisquer meios. A “dignidade” a que se refere o artigo 67º, nº 2, alínea e) da Constituição ostentaria aqui o seu verdadeiro âmbito subjectivo de aplicação: as técnicas de procriação medicamente assistida não devem ser usadas para a criação de embriões com o intuito deliberado de os submeter a projectos de investigação científica, porque tal implicaria uma “instrumentalização” contrária ao disposto nos artigos 24º, nº 1; 67º, nº 2, alínea e) e 1º da Constituição.

Mas seria isso que, justamente, decorreria de um sistema legislativo que repousaria sobre duas cláusulas gerais: (i) criarem-se tantos embriões quanto os necessários para o êxito do processo; (ii) serem admissíveis os projectos de experimentação sobre embriões, desde que fosse razoável esperar que deles resultasse benefício para a humanidade.

 

34.  Merece todo o apoio a posição tomada pelo Tribunal acerca da questão de inconstitucionalidade formal e acerca das normas de Direito internacional convencional.

Embora o regime do referendo nacional constante do artigo 115º da Constituição e da Lei nº 15‑A/98, de 3 de Abril (com as alterações da Lei Orgânica nº 4/2005, de 8 de Outubro) seja, decerto, bastante restritivo, compreende‑se, perfeitamente, que a apresentação de uma iniciativa de referendo por grupos de cidadãos‑eleitores (no mínimo 75.000) não possa paralisar o procedimento legislativo parlamentar, sobretudo depois de já ter havido uma votação favorável (na generalidade ou na especialidade). O Parlamento poderá interrompê‑lo (como aconteceu em 1998 com a lei da interrupção voluntária da gravidez), não é obrigado a fazê‑lo.

Coisa diferente será, na hipótese de ter sido apresentada uma proposta de referendo, o Parlamento não votar a proposta ou o projecto de lei antes de deliberar sobre se a acolhe ou não. Neste caso, mesmo sem norma expressa, o respeito pelo princípio de participação política dos cidadãos recomendará instantemente esse cuidado.

Também poderá, porventura, entender‑se estranho que o Tribunal Constitucional possa conhecer, em fiscalização abstracta, da conformidade de qualquer lei com uma lei de valor reforçado [artigo 281º, nº 1, alíneas a), b) e c)] e que não possa conhecer da conformidade com normas de Direito internacional, objecto de recepção automática na ordem interna (artigo 8º) e que têm força superior à das próprias leis reforçadas. Porém, é esse, por enquanto, o sistema. Ao Tribunal apenas chegam questões de contradição de normas internas com normas internacionais no âmbito de fiscalização concreta [artigo 70º, nº 1, alínea i) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, após a Lei nº 85/89, de 7 de Setembro].

 

35.  Ao equacionar as questões de inconstitucionalidade material, o acórdão revela um esforço consciencioso de informação científica e um não menos exaustivo trabalho de interpretação sistemática de diploma legal e de ponderação de interesses constitucionais em presença na delicadíssima matéria da procriação medicamente assistida.

A argumentação que, a partir daí, é desenvolvida mostra‑se quase sempre consistente, embora tudo venha a depender, em última análise, do modo como os operadores médicos e jurídicos venham a apreendê‑la e a tomá‑lo como linha norteadora das suas práticas (e seria importante, neste momento, passados já mais de três anos sobre a entrada em vigor da lei, efectuar uma avaliação do que tem sido a sua execução).

Há, porém, três questões em que o Tribunal não convence, por desconsiderar ou considerar menos adequadamente o princípio do respeito pela vida humana individual. São as que decorrem do artigo 7º, nº 3, sobre rastreio genético dos embriões, dos artigos 9º, nºs 2 a 5, e 30º, nº 2, alíneas i) e j), sobre investigação científica em embriões (se bem que embriões ainda não implantados) e dos artigos 9º, nº 4, alínea d), sobre clonagem terapêutica não reprodutiva. Aqui, pelo menos, são legítimos as maiores dúvidas sobre se (para empregar uma expressão da juíza Maria Lúcia Amaral) não se verificará uma instrumentalização do bem vida em favor de outros bens, de menor valor constitucional.

 

 

V

Execução de penas. Colocação de recluso em regime aberto ao exterior. Função administrativa e função jurisdicional

 

36.  O Presidente da República requereu a fiscalização preventiva da norma do artigo 14º, nº 6, alínea b) do Decreto do Parlamento de aprovação de um novo Código de Execução das Penas, enquanto conjugada com as normas do artigo 14º, nº 1, alíneas a) e b), por atribuir a um órgão de administração penitenciária o poder de decidir sobre a colocação dos reclusos em regime aberto ao exterior e isso implicar uma intrusão no exercício da função jurisdicional, privativa dos tribunais.

O Tribunal Constitucional, pelo acórdão nº 427/2009, de 28 de Agosto[5], não considerou, porém, que essa norma fosse desconforme com a Constituição.

 

37.  Segundo o Presidente da República, a decisão de forma e de fundo sobre a concessão do regime aberto ao exterior reclamaria um juízo imparcial de tutela e composição de conflitos entre os direitos e interesses dos detidos e o interesse público representado pela Administração; e, pelo menos, os juízos de fundo que têm por objecto a protecção da vítima e a defesa da ordem e paz social incorporariam, necessariamente, o âmbito material da reserva do juízo.

Tal decisão não poderia ser cometida ao Director‑Geral dos Serviços Prisionais, o qual, como órgão administrativo dependente do Governo, não assumiria uma posição distinta dos direitos e interesses em conflito, já que se encontraria vinculado à prossecução do interesse público da Administração, que pode não coincidir com o do condenado ou com o da vítima.

Ao formular um juízo decisório de direito sobre a adequação do regime de abertura ao exterior à protecção da vítima e à garantia de paz social, com substituição de prisão efectiva por um regime de acesso a um meio livre sem vigilância directa (cujo conteúdo o diploma parlamentar se abstinha de definir), verificar‑se‑ia que essa decisão administrativa acabaria por modificar os pressupostos, os termos e o sentido da sentença condenatória.

 

38.  Em linha bem diferente, o acórdão sustentou que da comparação entre o modelo até então vigente e o “novo modelo” não decorreria que o regime aberto ao exterior tivesse deixado de ser “um instrumento de flexibilização da execução de penas, intrínseco à gestão da vida interna da prisão e, como tal, pertencendo ao domínio da administração prisional”.

Não obstante, a colocação de reclusos nesse regime teria como pressuposto o gozo prévio de uma licença de saída jurisdicional com êxito e os critérios gerais de concessão desta licença coincidiria, em larga medida, com os da colocação em regime aberto ao exterior [artigos 14º, nº 1, 78º, nºs 1 e 2, e 79º, nº 2, alínea c) do Código aprovado pelo diploma da Assembleia]. A isso acrescendo ser a decisão comunicada ao Ministério Público junto do Tribunal de Execução das Penas para verificação da legalidade e com possibilidade de impugnação perante esse Tribunal (artigos 14º, nº 8, 197º, 198º, 199º e 200º).

Mas, de todo o modo, a colocação do recluso em regime aberto no exterior não seria comparável às decisões que naquelas normas estão reservadas ao juiz. Nomeadamente, não seria comparável à concessão da liberdade condicional e à concessão de saídas precárias prolongadas [artigos 91º, nº 2, alínea a), e 92º, alínea d), da Lei nº 3/99 e 124º, nº 2, alínea a), e 125º, alínea d), da Lei nº 52/2008].

Diversamente do que acontece quando é concedida a liberdade condicional ou se admitem saídas precárias (prolongadas), quando o Director‑Geral dos Serviços Prisionais coloca o recluso em regime aberto no exterior não haveria qualquer alteração do conteúdo da sentença condenatória. Esta decisão continuaria a ser de privação da liberdade, havendo, tão-só, uma alteração do conteúdo da execução da pena de prisão, político-criminalmente justificada por referência aos princípios jurídico-constitucionais da socialidade e da necessidade da intervenção penal. Não extravasaria a natureza de medida de flexibilização da execução da pena de prisão.

A execução da pena de prisão orientar-se‑ia pelo princípio da individualização do tratamento prisional, inevitavelmente programado e faseado, favorecendo a aproximação progressiva à vida livre, através das necessárias alterações do regime de execução (artigos 5º, nºs 1 e 3, 12º, nº 1, 22º, nº 3, e 76º, nºs 2 e 3, do Código aprovado pelo Decreto nº 366/X e artigos 3º, nº 2, e 58º, nº 1, do Decreto-Lei nº 265/79).

A colocação do recluso em regime aberto no exterior – uma das modalidades dos regimes de execução da pena de prisão – não integraria a actividade de repressão da violação da legalidade democrática que o artigo 202º, nºs 1 e 2, da Constituição reserva aos tribunais. E não integraria na decisão de colocação em regime aberto no exterior não ressurgiria o conflito jurídico‑penal emergente da prática do crime, entretanto já resolvido na sentença condenatória.

 

39.  Houve duas declarações de voto contrárias, dos juízes João Cura Mariano e Rui Moura Ramos.

Na primeira, disse‑se que se “a sentença condenatória definiu o tipo e a medida da pena aplicada, a decisão sobre a colocação do recluso em regime aberto no exterior, define o concreto regime daquela pena, pelo que desempenharia um papel tanto ou mais importante que a primeira no modo de repressão penal da violação da legalidade democrática.

 “Nessa decisão terão que ser ponderados o comportamento prisional ante­rior do recluso, o perigo de este aproveitar o tempo de liberdade para se subtrair à execução da pena ou delinquir, a protecção da vítima e a defesa da ordem e da paz social (artigo 14º, nº 1, a) e b), do C.E.P.M.P.L., aprovado pelo Decreto nº 366/X).

“É mais uma vez a resolução do conflito entre os valores da liberdade e dos direitos individuais e a defesa da sociedade vigente que está em jogo nesta decisão.

“Ora, se na divisão dos poderes estaduais não há dúvidas sobre a natureza necessariamente judicial da sentença que aplica penas criminais, a qual é especifica­mente imposta no nosso texto constitucional no nº 2, do seu artigo 27º, também a decisão de colocação dos reclusos em regime aberto no exterior, por se traduzir numa determinação do conteúdo essencial duma pena de prisão anteriormente imposta, deve comungar da mesma natureza”.

Na segunda, salientou‑se que a colocação em regime aberto no exterior prevista no artigo 14º do Código aprovado pelo artigo 1º do Decreto nº 366/X constituiria uma modelação da execução de pena de prisão que, pela importância de que se revesteria para a ressocialização do condenado, constituiria algo mais que um mero instrumento de flexibilização da pena de prisão intrínseco à gestão da vida interna da prisão.

 

40.  O argumentatório do acórdão, bastante bem informado, afigura‑se mais convincente.

Se dúvidas puderem subsistir, elas ficarão ultrapassadas, por, como ali se refere, ter de haver comunicação ao Ministério Público e ter este a faculdade de arguir a decisão da Administração prisional perante o Tribunal de Execução das Penas – pelo que a última palavra, no caso, vir a ser ainda a de um Juiz. Será situação semelhante à das contra‑ordenações, em que as coimas são aplicadas pela autoridade administrativa, mas em que há sempre recurso para tribunal.

 

 

VI

Constituição e casamento de homossexuais

 

41.  Duas pessoas do sexo feminino pretenderam celebrar casamento numa conservatória de registo civil, mas o conservador indeferiu o pedido por não o permitirem os artigos 1577º e 1628º, alínea e), do Código Civil e por não ter competência para apreciar a eventual inconstitucionalidade desses preceitos.

Tendo recorrido para o tribunal civil da comarca de Lisboa e deste para a Relação, estes tribunais não lhes deram razão. Por isso, interpuseram recurso da decisão da Relação para o Tribunal Constitucional, com fundamento nas normas dos artigos 13º e 26º, nº 1 (proibição de discriminação com base na orientação sexual), 36º (direito de constituir família e celebrar casamento), 67º (protecção da família), 283º (fiscalização de inconstitucionalidade por omissão).

O Tribunal, em secção, negou provimento ao recurso pelo acórdão nº 359/2009, de 9 de Julho[6].

 

42.  As recorrentes, conforme se lê na parte inicial do acórdão, alegaram, designadamente:

–   O acesso de um casal de duas pessoas do mesmo sexo apenas à união de facto, ao contrário dos casais heterossexuais que optam livremente entre a união de facto e o casamento, envolve uma discriminação;

–   O casamento é um instrumento de exercício dos direitos à afirmação da identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade no respeito da reserva da intimidade da vida privada, direitos salvaguardados num Estado de Direito democrático, assente no primado da dignidade humana;

–   O casamento entre pessoas do mesmo sexo não é uma nova “forma de celebração” ou um “novo tipo de casamento”, mas sim o casamento referido como objecto de protecção no artigo 36º, nº 1 da Constituição;

–   A associação simbólica atribuída pelo Estado ao casamento é um bem jurídico posto ao alcance de todos que pretendam a sua inclusão formal nas suas representações e expectativas sociais típicas;

–   É no tratamento de situações que se inserem em categorias socialmente minoritárias ou sociologicamente desfavorecidos que o princípio constitucional da igualdade coloca a sua principal força, tutelando um direito “à diferença” ou “de diferença”;

–   Neste sentido, o princípio de igualdade não comanda que se trate de forma diferente o que “é diferente”, mas sim que se trate de forma igual o que “é diferente”;

–   O casamento não tem uma “função procritativa”, pois não existe na lei civil limite máximo à idade para casar, nada obsta ao casamento de pessoas inférteis, a infertilidade não é fundamento de divórcio, o casamento pode ser celebrado com urgência em face do perigo de morte dos cônjuges, o acordo dos nubentes no sentido de não terem filhos não vale como pactum simulationis;

–   Ao Estado não cabe interferir na esfera de autonomia de cada pessoa, emitindo comandos penalizadores baseados em determinações morais;

–   A proibição do casamento homossexual é um análogo perfeito da proibição de casamento entre pessoas de “raças” diferentes, quer nas suas circunstâncias sociais e históricas, quer nos argumentos usados, quer nos efeitos jurídicos e de facto.

 

43.  Por seu turno, o Ministério Público alegou, designadamente, o seguinte:

–   O princípio da igualdade comporta uma vertente de controlo negativo, destinando‑se a sua aplicação, não a permitir ao juiz (mesmo ao constitucional) substituir‑se ao legislador, democraticamente eleito, na realização das ponderações constitutivas para que está legitimado, mas tão somente a banir do ordenamento jurídico soluções arbitrárias, discricionárias, absolutamente carecidas de qualquer suporte material razoável e adequado;

–   Podendo, de acordo com os entendimentos e sensibilidades pessoais, e da comunidade jurídica, em cada momento histórico, questionar‑se a opção legislativa, plasmada no nosso Código Civil, não pode qualificar‑se o regime jurídico em vigor como absolutamente carecido de qualquer suporte material – e, portanto, traduzindo a imposição de uma solução legislativa puramente “arbitrária”;

–   Nada obriga o legislador infraconstitucional a acolher, em termos plenos e absolutamente igualitários, os vários conceitos sociológicos de “família”, de modo a que – por directa imposição constitucional – a todos os tipos de família tenha de outorgar exactamente o mesmo grau de reconhecimento e de tutela legal;

–   A argumentação das recorrentes implicaria – a proceder o recurso, por se considerar, porventura, que a “discriminação” imputada pelas recorrentes à lei civil, traduziria violação do princípio da igualdade – que devesse este Tribunal Constitucional proferir “decisão aditiva”, ampliando jurisprudencialmente o próprio instituto legal do casamento, tal como decorre, na sua fisionomia essencial, das previsões normativas da lei civil;

–   Tal tipo de decisão, sendo a forma tida por adequada para repor o princípio constitucional da igualdade, quando violado por determinado regime restritivo, limitativo ou “discriminatório”, carece de ser utilizado com particulares cautelas, podendo o seu uso, excessivo ou imoderado, ser dificilmente compatível com a proibição constitucional de exercício de funções materialmente legislativas pelo órgão jurisdicional, subjacente ao princípio estruturante da separação de poderes;

–   Um limite às decisões “modificativas” ou “aditivas” verifica‑se nos casos em que a exacta definição do regime jurídico que irá decorrer da ampliação do sentido possível comportado pela norma em causa não decorre automaticamente de uma norma ou princípio constitucional, dependendo inelutavelmente do exercício de uma margem de “discricionariedade legislativa” – podendo o respeito pela lei Fundamental ser plenamente assegurado através do estabelecimento de diferenciados regimes normativos;

–   Nada impede que – entre as figuras do “casamento”, tal como está actualmente regulado no Código Civil, e da mera “união de facto”, sujeita a uma tutela jurídica meramente “parcelar” ou “residual” – a opção legislativa, eventualmente ditada pelo princípio da igualdade, se possa legitimamente traduzir‑se na criação de uma inovatória figura intermédia, detentora de um reconhecimento ou tutela jurídica, eventualmente acrescida relativamente às meras “uniões de facto”, mas diferenciada, relativamente ao conjunto de efeitos jurídicos associados pelo Código Civil à celebração do casamento [...].»

 

44.  A isso responderam assim as recorrentes:

–   Ainda que o legislador tivesse a referida liberdade de criar um “meio alternativo” ao casamento – numa linha, diga‑se, separate but equal ... – a “decisão aditiva” que consiste em declarar a inconstitucionalidade das actuais regras do Código Civil que vedam o casamento a casais do mesmo sexo continuaria a ser a única via correcta para o Tribunal Constitucional;

–   Isto porque, de facto e actualmente, não existe esse regime alternativo;

 –  Tal como as leis estão hoje formuladas, o casamento é o único dispositivo legal capaz de dar aos casais do mesmo sexo que a desejem a protecção que o Ministério Público – e bem! – reconhece ser constitucionalmente imposta.

–   Quando só há um regime jurídico que confere uma protecção constitucionalmente relevante e, aliás, exigida, não pode o legislador restringi‑lo a uma categoria de pessoas em violação da igualdade.

 

45.  O Tribunal não julgou inconstitucional o artigo 1577º do Código Civil.

Com “clara percepção” do modo como o problema tem sido encarado por tribunais homólogos, “com resultados nem sempre coincidentes” (nº 7) e pelas legislações de vários países europeus, considerou “especialmente relevante” para o caso em presença (nº 10) os nºs 1 e 2 do artigo 36º da Constituição (com redacção inalterada desde 1976) e aduziu três argumentos nesse sentido (nºs 10 a 14).

Em primeiro lugar, se o legislador constitucional tivesse querido introduzir uma alteração da configuração legal do casamento, impondo ao legislador ordinário a obrigação de legislar no sentido de passar a ser permitido a sua celebração por pessoas do mesmo sexo, decerto que o teria afirmado explicitamente, sem se limitar a legitimar o conceito configurado pela lei civil; e não lhe faltaram ocasiões para esse efeito, ao longo das revisões constitucionais subsequentes.

E ficaria totalmente por explicar a razão pela qual o legislador constitucional não completou a suposta imposição do casamento homossexual, aditando ao artigo 36.º da Constituição uma determinação nesse sentido, pois não seria legítimo pensar – precisamente por força da alteração ao n.º 2 do artigo 13.º feita em 2004 – que tivesse admitido ser desnecessária uma referência normativa expressa com esse objectivo.

Em segundo lugar, se os efeitos jurídicos do casamento não pressupõem a possibilidade ou sequer a vontade de procriar, não deixaria de haver uma conexão entre casamento e procriação, sendo ele a instituição através da qual se envolve uma geração na formação da que se lhe segue. Em face da definição de casamento em vigor é ainda possível encarar este último como uma união completa entre um homem e uma mulher orientada para a educação conjunta dos filhos que possam ter; a definição do casamento pretendida pelas recorrentes encara‑a como uma relação privada entre duas pessoas adultas que visa essencialmente satisfazer as necessidades próprias. Ora, não parece que a opção entre uma das duas concepções do casamento seja matéria da competência deste Tribunal, ao qual cumpre apenas averiguar em que medida o legislador, ao efectuar essa opção, cumpre o disposto na Constituição.

Finalmente (e seguindo o Ministério Público) o Tribunal considerou que a decisão que julgasse inconstitucional as normas impugnadas teria um carácter aditivo, de duvidosa legitimidade em face do princípio da separação de poderes. É certo que o Tribunal tem utilizado, por vezes, quer no âmbito da fiscalização abstracta, quer no da fiscalização concreta da constitucionalidade, este tipo de decisões para defender o princípio da igualdade contra discriminações de certas categorias de pessoas. Todavia, tal utilização restringe‑se, por via de regra, aos casos em que está em causa a expansão de um regime geral, em virtude da eliminação de normas especiais ou excepcionais contrárias à Constituição, ou ainda a extensão de um regime mais favorável que seja de configurar como uma solução constitucionalmente obrigatória. Nenhuma destas hipóteses se verificaria no caso em apreço.

 

46.  Noutro ponto do seu texto, o Tribunal, no entanto, recusou o entendimento segundo o qual a Constituição se teria limitado a receber, definitivamente, o conceito de casamento vigente em determinado momento; recusou “uma petrificação do casamento tal como este é hoje definido na lei civil, excluindo o reconhecimento jurídico de outras comunhões de vida entre pessoas” (nº 10).

Esta frase pode ser interpretada como apontando para institutos alternativos ao preconizado casamento entre homossexuais. Mas também pode ser interpretada, tendo em conta as referências aduzidas a propósito das sentenças aditivas, alguma abertura à própria extensão do instituto do casamento àquelas pessoas.

 

47.  Votaram o acórdão três dos juízes da secção. Votaram contra dois outros, Maria João Antunes e Gil Galvão (este “não sem hesitações”), com base no artigo 36º, nº 1 da Constituição, conjugado com o artigo 13º, nº 2, após a sexta revisão constitucional.

“De acordo com o artigo 36.º, n.º 1, segunda parte, da CRP, todos têm o direito de contrair casamento em condições de plena igualdade. Isto é, todos têm o direito de, sem qualquer diferenciação, aceder ao que significa do ponto de vista jurídico (e simbólico) a celebração de um contrato entre duas pessoas que pretendam constituir família mediante uma plena comunhão de vida”.

 

48.  O primeiro argumento constante do acórdão é de natureza histórico‑sistemática, o segundo de natureza teleológica e o terceiro de ordem processual. Para serem plenamente convincentes careceriam de ser mais aprofundados.

Contra o primeiro argumento poderia notar‑se, como notaram os dois juízes vencidos, que, só por si, a proscrição da discriminação em virtude de orientação sexual haveria de ter implicações no conceito constitucional de família.

Seria necessário ir mais além, para ultrapassar esta dificuldade, salientando: a) o carácter meramente enunciativo dos factores de discriminação apontados no artigo 13º, nº 2, pelo que o aditamento de 2004 (por influência do artigo 21º, nº 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) não representa nenhuma mudança significativa, já antes de 2004 era vedado discriminar em razão dessa orientação; b) que, tanto como em relação a qualquer dos outros factores (ascendência, sexo, etc.) o alcance essencial da norma consiste em impedir que a qualquer pessoa, individualmente considerada, seja negado qualquer direito atribuído às demais; c) que, portanto, uma coisa é um homossexual ter o direito de constituir família e o direito de contrair casamento, outra coisa vem a ser o direito de casar com outro homossexual[7].

Contra o segundo argumento poderia, porventura, observar‑se que ele radica numa visão mais política do que jurídica. Teria de ser integrada por uma análise do artigo 36º, a que o Tribunal não procedeu. Faltou indagar se o direito de constituir família compreende, forçosamente, o direito de contrair casamento; ou se, ao invés, se trata de dois direitos com conteúdos particulares e irredutíveis.

O terceiro argumento está exposto de modo correcto. Contudo, deveria ser completado por um mais atento olhar às relações entre princípio da igualdade e decisões aditivas dos órgãos de fiscalização da constitucionalidade.

Como escrevemos no nosso Manual[8], uma lei, ao atribuir um direito ou uma vantagem (v.g., uma pensão) ou ao adstringir a um dever ou ónus (v.g., uma incompatibilidade), contempla certa categoria de pessoas e não prevê todas as que se encontrem na mesma situação, ou acolhe diferenciações infundadas. Que fazer: eliminar os preceitos que, qualitativa ou quantitativamente, violem o princípio da igualdade? Ou, pelo contrário, invocando os valores e interesses constitucionais que se projectam nessa situação, restabelecer a igualdade? Decisões aditivas são, em especial, as que adoptam o segundo termo da alternativa.

Nas decisões redutivas ou de inconstitucionalidade parcial, há um segmento da norma que cai para ela ser salva. Nas decisões aditivas há um segmento de uma norma que se acrescenta com idêntico fim.

Para não recorrer à decisão aditiva, o Tribunal Constitucional deveria ter denunciado que não havia na ocorrência violação do princípio da igualdade.

 

49.  Tem sido, aliás, abundante e elucidativa a jurisprudência sobre o princípio. Recordem‑se só algumas das formulações surgidas em alguns acórdãos sobre problemas a ele atinentes:

–   “A igualdade não deve ser entendida apenas no sentido de tornar ilícitas as discriminações infundadas ou arbitrárias (interpretação esta que não pode adoptar‑se sem mais); a regra do art. 13.º tem de ser qualificada e «lida» através de (e à luz de) outras disposições constitucionais que seguramente estabelecem preferências em caso de conflitos de interesses ou que hierarquizam de certa maneira direitos e interesses”[9].

–   “O princípio da igualdade não só autoriza como pode exigir desigualdades de tratamento, sempre que, por motivo de situações diversas, um tratamento igual conduzisse a resultados desiguais”[10].

–   “Os factores materiais determinantes de um tratamento normativo desigual devem comportar, designadamente, uma justificação que busque suporte na consonância entre os critérios adaptados pelo legislador e os objectivos da lei, por um lado, e entre estes e os fins cuja prossecução o texto constitucional comete ao Estado, por outro. A desigualdade de tratamento será consentida quando, depois de adquirido que os critérios de distinção exigidos pelo legislador se compatibilizam com os objectivos da lei, se concluir no sentido de a Constituição, à luz dos princípios que adopta e dos fins que comete ao Estado, autorizar o tratamento diferenciado das situações delimitadas na lei ordinária”[11].

–   “A ausência de um critério de medida impõe ao intérprete um processo de reconstrução do conceito de igualdade inserido nos valores do ordenamento constitucional no seu conjunto. Processo esse que assenta na natureza relacional do próprio conceito, quer por força da perspectiva da sua evolução histórica, quer em virtude da diversidade das suas manifestações concretas”[12].

–   “Enquanto conceito relacional, a medida do que é igual e deva ser tratado como igual depende da matéria a tratar e do ponto de vista de quem estabelece a comparação, em termos de determinar quais são os elementos essenciais e os não essenciais num juízo acerca da admissibilidade ou inadmissibilidade de soluções jurídicas dissemelhantes e eventualmente mesmo discriminatórias. Ou seja, quando é que duas situações reais da vida são equiparáveis, quando as similitudes entre elas sobrelevam das diferenças e, por isso, o juízo de valor sobre a materialidade que lhes serve de suporte conduz à necessidade de um igual tratamento jurídico.

–   “A essência da aplicação do princípio da igualdade encontra o seu ponto de apoio na determinação dos fundamentos fácticos e valorativos da diferenciação jurídica consagrada no ordenamento. O que significa que a prevalência da igualdade como valor supremo do ordenamento tem de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica. Pelo que se pode afirmar que dentro do princípio da igualdade cabem diferenças de tratamento (…)”[13].

–   “O princípio da igualdade reconduz -se […] a uma proibição de arbítrio sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais.

–   “A proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controle”[14].

 

50.  Foi pena que o Tribunal Constitucional agora não tivesse querido ou podido prosseguir nesta linha. Somente assim se verificaria se cabia ou não emitir uma sentença aditiva.

Mais grave foi, porém, o Tribunal, indo ultra petitum, ter, pelo menos implicitamente, aceite que o legislador ordinário poderia alargar o instituto do casamento às uniões de homossexuais.

E, porque o Tribunal o admitiu, é legítimo expender uma maneira de ver diferente: que o princípio constitucional de igualdade não apenas não postula tal extensão como a exclui.

 

51.  As recorrentes sustentaram, como se referiu, que o princípio da igualdade não comanda que se trate de forma diferente o que “é diferente”, mas sim que se trate de forma igual o que “é igual”. Eis uma proclamação que vai ao arrepio de toda a longa experiência de construção e de concretização do princípio da igualdade.

Igualdade, igualdade perante a lei, igualdade perante a Constituição significa, bem pelo contrário, tratamento igual de realidades iguais e desigual, em termos de proporcionalidade, de realidades desiguais – substancial e objectivamente desiguais e não criadas ou mantidas artificialmente pelo poder político. Por isso, diferenciar não equivale a discriminar. Não diferenciar entre o que se apresenta desigual é que equivale ou pode equivaler a discriminar.

Mais: quando as situações de facto em que se encontram as pessoas são desiguais, por causas económico‑sociais, diferenciar torna‑se um imperativo da própria igualdade – da igualdade real entre os Portugueses de que cuida a Constituição [artigo 9º, alínea d), 1ª parte). E diferenciar traduz‑se então em discriminações positivas, entre as quais, por exemplo, as relativas às crianças órfãs, abandonadas ou privadas de ambiente familiar normal, às pessoas portadoras de deficiências, aos idosos [artigos 69º, nº 2, 71º, nº 2 e 74º, nº 2, alínea j), 72º].

 

52.  De qualquer forma, tudo está em saber o que é igual e o que é desigual.

O casamento não pode, por certo, ser encarado simplesmente da perspectiva da procriação. Contudo, por mais que tenha que ver com a felicidade e o apoio mútuo dos cônjuges e por mais casamentos que haja sem filhos, ele não pode ser desligado da filiação. E não se trata tanto do fenómeno biológico da procriação (porque só da união entre mulher e homem nascem filhos) quanto do fenómeno sociocultural e afectivo da filiação, com as referências a pai e mãe, indispensáveis para a plena felicidade das crianças[15].

Daqui transparece a função político‑social caracterizadora do instituto do casamento (e, bem assim, da união de facto entre heterossexuais), distintiva da união entre homossexuais: a função de assegurar a subsistência no tempo da comunidade humana, a sucessão e a solidariedade de gerações e, de modo especial hoje, a sustentabilidade dos direitos sociais. Não por acaso a Constituição qualifica a maternidade e a paternidade como “valores sociais eminentes” (artigo 68º, nº 2).

Não admitir o casamento de homossexuais não infringe o princípio da igualdade. O que o infringiria seria consagrá‑lo na lei.

 

53.  Onde há diferenciação violadora do princípio da igualdade é em os homossexuais apenas poderem constituir uniões de facto (Lei nº 7/2001, de 11 de Maio), ao passo que os heterossexuais podem constituir uniões de direito, o casamento. Para restabelecer a igualdade, o legislador deve então – à semelhança do que acontece já em numerosos países – avançar para um instituto adequado, também dotado de carga simbólica, que satisfaça os anseios de realização pessoal e social dos homossexuais.

Já se afigura, de todo em todo, despropositada e exorbitante a comparação que as recorrentes fizeram com os casamentos interraciais. Nenhum paralelo existe entre casamentos de pessoas do mesmo sexo e casamentos de pessoas de raças diferentes.

 

54.  A Constituição distingue o direito de constituir família, e o direito de casar (artigo 36º, nº 1) e o mesmo faz, ainda mais nitidamente, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 9º). A pluralidade de formações familiares ressalta, de resto, à vista desarmada: a família conjugal, assente no casamento, é uma dessas formações, a família homossexual outra.

Ao mesmo tempo, resulta da Constituição o enlace incindível entre filiação e casamento e entre casamento e filiação. “Os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e à manutenção e educação dos filhos” (artigo 36º, nº 3). “Os filhos nascidos fora do casamento não podem ser objecto de qualquer discriminação” (artigo 36º, nº 4). “Os pais têm o direito e o dever de educação dos filhos” [artigo 36º, nº 5, completado pelo artigo 67º, nº 2, alínea c)]. “Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial” (artigo 36º).

Finalmente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem – critério de interpretação e integração dos preceitos constitucionais e legais respeitantes aos direitos fundamentais (artigo 16º, nº 2) – prescreve: “A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça ou religião” (artigo 16º, nº 1).

 

 

VII

Reabilitação urbana, venda forçada e direito de propriedade

 

55.  A Assembleia da República aprovou uma proposta de lei de autorização legislativa para o Governo definir um novo regime de reabilitação urbana.

Do decreto constavam, entre outras medidas, a venda forçada nos casos em que os proprietários não procedessem à reabilitação dos seus edifícios ou das suas fracções. Neste caso, o edifício ou a fracção seria avaliado nos termos do Código das Expropriações e vendido em hasta pública a quem oferecesse melhor preço e se dispusesse a cumprir o dever de reabilitação no prazo inicialmente previsto para o efeito contado da data de arrematação. O proprietário beneficiaria de todas as garantias contidas naquele Código e de justa indemnização [artigo 2º, nº 1, alínea j)].

Seria também o Governo autorizado a legislar no sentido de não haver indemnização ou realojamento pela denúncia do contrato de arrendamento quando a demolição fosse necessária por força de degradação do prédio, incompatível tecnicamente com a sua reabilitação e geradora de risco para os respectivos ocupantes ou decorresse de plano municipal de ordenamento do território [artigo 2º, nº 2, alínea c)].

Como o Presidente da República tivesse requerido a fiscalização preventiva destas normas, o Tribunal Constitucional, pelo acórdão nº 421/2009, de 13 de Agosto[16] (relatado pela juíza Maria Lúcia Amaral e votado por unanimidade, o que não é frequente), não se pronunciaria pela inconstitucionalidade.

 

56.  Quanto à primeira norma, o Presidente invocou:

a)  A criação de uma nova forma de privação de propriedade privada fundada em utilidade pública urbanística não autorizada pela Constituição e que restringiria um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias fora dos casos expressamente previstos na Lei Fundamental, violando a norma constante do artigo 65º, nº 4, conjugada com o artigo 18º, nº 2, da Constituição;

b)  Em alternativa ao pedido anterior, eventual violação da norma constante do artigo 165º, nº 2, da Constituição e, ainda, da norma do artigo 65º, nº 4, conjugada com o artigo 13º, na medida em que a norma sindicada definiria, de forma insuficiente, o sentido e extensão da autorização legislativa, pois não acautelaria que o novo instituto de venda forçada por razões urbanísticas garantisse a prossecução do fim de utilidade pública e do carácter justo do processo indemnizatório em termos idênticos à expropriação por utilidade pública.

Quanto à segunda, invocou:

a)  Violação da norma do artigo 18º, nº 3, dado que suprimiria, sem justificação material plausível, o núcleo ou conteúdo essencial do próprio direito à indemnização alargado aos arrendatários expropriados por força da conjugação do artigo 62º, nº 2, com os artigos 13º e 2º da Constituição;

b)  Violação do princípio da proporcionalidade;

c)  Violação do princípio da igualdade por discriminar negativamente os arrendatários em relação aos proprietários, no que respeita ao direito de ambos serem indemnizados nos termos do artigo 62º, nº 2;

d)  Violação do princípio da protecção da confiança, ao permitir que as situações e posições jurídicas dos actuais arrendatários pudessem ser afectadas por uma medida imprevisível com efeitos retrospectivos de conteúdo altamente desfavorável, frustrando as legítimas expectativas desses titulares em serem compensados pelos efeitos da expropriação.

 

57.  O acórdão começa por enunciar a questão prévia de saber se e em que medida poderia o Tribunal conhecer da constitucionalidade das autorizações legislativas, pronunciando‑se favoravelmente.

As autorizações não contêm, em princípio, disciplina que possa incidir directa e imediatamente na vida das pessoas. Como habilitam o legislador governamental a emitir normas em matérias que, não fora a habilitação, permaneceriam na reserva de competência do Parlamento, fica o cumprimento da disciplina que nelas se contém – e, logo, a sua plena eficácia externa, ou a sua capacidade para conformar definitivamente domínios materiais de regulação – dependente da emissão de decreto-lei autorizado, emissão essa que pode não ocorrer.

Tal não impede, porém, que se reconheça que as normas sobre a produção de normas, ainda no sentido estrito de normas de competência (como são desde logo aquelas que, emanadas pelo Parlamento, autorizam o Governo a legislar sobre as matérias enunciadas no artigo 165º), se incluem no conceito de “norma” que, nos termos da Constituição, é objecto do controlo de constitucionalidade, seja ele preventivo ou sucessivo.

As normas contidas nas autorizações legislativas não são, de resto, apenas normas de competência. Não se limitam a habilitar o Governo a legislar sobre domínios da vida social que, sem a autorização, permaneceriam na esfera reservada à normação parlamentar. Para além do recorte externo do âmbito da competência concedida pela autorização ao Governo – ou seja, para além da definição do seu objecto, extensão e duração – elas devem ainda fixar o sentido a seguir pela legislação eventualmente subsequente do Governo; e isso significa pré-determiná‑la ou condicioná‑la, através da identificação de princípios, orientações ou directivas que não poderão deixar de ser cumpridos.

Assim, será possível a obtenção de um juízo de inconstitucionalidade, autónoma e exclusivamente reportado às normas materiais de indirizzo contidas na autorização, em qualquer uma das seguintes situações: em caso de insuficiência ou défice do sentido autorizativo que foi, ou não, fixado; e em caso de determinação indevida do sentido autorizativo que foi fixado, quando as normas materiais reguladoras da futura acção do Governo tenham uma densidade tal que se torne evidente, antes mesmo ainda da sua futura concretização em decreto autorizado, que elas pré-determinam a actuação governamental de um modo necessariamente inconstitucional.

Será ainda inconstitucional uma norma contida numa lei de autorização que contenha princípios, directivas ou orientações materiais que se mostrem já, e por si mesmos – ou seja, independentemente da concretização futura e eventual que deles se vier a fazer –, directamente lesivos de regras ou princípios constitucionais autónomos, e autónomos face às condições procedimentais que determinam a validade do acto de habilitação.

Isto sem prejuízo de a apreciação da inconstitucionalidade do decreto autorizado poderia não apenas incidir sobre vícios próprios mas também ter por objecto vícios que radiquem, desde logo, na norma habilitante.

 

58.  Entrando no fundo, o Tribunal salientou, desde logo, que o diploma de autorização deixa ao legislador governamental espaços livres de conformação futura. Não se sabe, por exemplo, em que tipos ou categorias de intervenção urbanística poderá vir a ser adoptado o instituto da venda forçada; se a sua previsão terá ou não natureza subsidiária; se o processo de venda em hasta pública será, ou não, objecto de regulação especial; quais os incentivos e apoios financeiros que serão, concretamente, postos à disposição dos proprietários que devam proceder a obras de reabilitação.

E, analisando o argumento do Presidente da República sobre o artigo 65º, nº 4, da Constituição, o Tribunal considerou não parecer que a disposição contida no nº 4 do artigo 65º da Constituição visasse instituir um numerus clausus ou um princípio de tipicidade, quanto à adopção das medidas necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística, só admitindo, por isso e quanto a essas medidas, o recurso pelo legislador ordinário ao instituto da expropriação.

O preceito constitucional não poderia ser lido fora do contexto em que se insere. E próprio desse contexto seria todo o domínio relativo à habitação e ao urbanismo, domínio esse onde se articulam, enquanto expressão do cumprimento de tarefas fundamentais do Estado (artigo 9º), políticas públicas tendentes a assegurar o planeamento e a ordenação do território; a defesa do ambiente e da qualidade de vida; a preservação do património urbano, enquanto parte do património cultural português. Sobretudo, ao associar a política da habitação às políticas públicas de governo do território, o artigo 65º deixaria bem claro que estas últimas fazem parte das prestações comunitárias que são devidas para que se possa garantir, a cada um, o “direito a uma habitação adequada”. Intenção inicial do seu nº 4 é chamar às responsabilidades deste governo tanto o Estado, quanto as regiões autónomas e as autarquias locais: todos estes entes agirão, designadamente, através dos meios aí previstos. Longe, portanto, de um qualquer princípio de tipicidade ou de numerus clausus estará, assim, a estrutura de uma norma constitucional como esta, que, ao invés de “fechar”, ou de prever de forma exauriente e esgotante meios de actuação dos poderes públicos, visa pelo contrário enquadrar políticas prestativas complexas, e, por definição, abertas.

Não decorreria assim do texto do nº 4 do artigo 65º que o instituto da expropriação fosse o único instrumento que, para fins de satisfação de utilidade pública urbanística, a Constituição autorizava. Tal como não decorreria do artigo 62º, e do direito nele “garantido”, que a venda forçada, por não estar expressamente prevista na Constituição, fosse, só por isso, um meio de política urbanística que o legislador ordinário estivesse, em todo o caso, proibido de utilizar.

A jurisprudência do Tribunal teria, a este respeito, chegado a alguns pontos firmes: 1º) não identificação entre o conceito civilístico de propriedade e o correspondente conceito constitucional (a garantia constitucional da propriedade protege os direitos patrimoniais privados e não apenas os direitos reais tutelados pela lei civil, ou o direito real máximo); 2º) dupla natureza da garantia reconhecida no artigo 62º, com uma dimensão institucional-objectiva e uma dimensão de direito subjectivo; 3º) radical subjectivo, como direito “clássico” de defesa, o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade senão por intermédio de um procedimento adequado e mediante justa compensação, procedimento esse especialmente assegurado no nº 2 do artigo 62º.

O legislador estaria proibido de aniquilar ou afectar o núcleo essencial do instituto infraconstitucional da “propriedade”. Por outro lado, e positivamente, estaria obrigado a conformar o instituto, não de um modo qualquer, mas tendo em conta a necessidade de o harmonizar com os princípios decorrentes do sistema constitucional no seu conjunto. Seria justamente isso que fluiria da parte final do nº 1 do artigo 62º, em que se diz que “a todos é garantido o direito à propriedade privada (...) nos termos da Constituição”.

Embora a Constituição lhe não fizesse uma referência textual, existiria portanto, e também entre nós, uma cláusula legal da conformação social da propriedade, a que aliás teria aludido desde sempre a jurisprudência constitucional, ao dizer que “[e]stá tal direito de propriedade, reconhecido e protegido pela Constituição, na verdade, bem afastado da concepção clássica do direito de propriedade, enquanto jus utendi, fruendi et abutendi – ou na fomulação impressiva do Código Civil francês (…) enquanto direito de usar e dispor das coisas de la manière la plus absolue (...). Assim, o direito de propriedade deve, antes do mais, ser compatibilizado com outras exigências constitucionais”.

As obrigações legalmente impostas aos proprietários de edifícios ou fracções, de realização de obras de reabilitação urbanística não seriam mais do que o resultado da necessária compatibilização – a efectuar pelo legislador ordinário – entre o direito de propriedade e outras exigências ou valores constitucionais. Assim sendo, e ao conceder ao Governo a habilitação necessária para que sejam determinados “os direitos e obrigações de proprietário e de titulares de outros direitos, ónus ou encargos relativamente aos edifícios a reabilitar e consagrando o dever de reabilitação como um dever de todos os proprietários de edifícios ou fracções”, o artigo 2º, nº 1 do Decreto da Assembleia estaria ainda a cumprir as funções próprias da conformação social da propriedade, que cabem, especialmente, ao legislador.

Questão diversa seria a de saber se o instituto da venda forçada compartilharia ainda desta natureza meramente conformadora do conteúdo da propriedade, ou se seria, em relação a ela, algo de diferente, operando (mais do que uma conformação), uma verdadeira restrição de posições jusfundamentais dos proprietários. Ora, quanto a este ponto, seria difícil sustentar não se estar aqui perante verdadeiras restrições.

Relevaria, no entanto, de uma concepção excessivamente estreita entender que, por a Constituição se não referir, textualmente, ao instituto da venda forçada, o limite enunciado em primeiro lugar no nº 2 do artigo 18º – a necessidade de autorização constitucional expressa para restringir – teria sido, no caso, e desde logo, incumprido, assim se condenando, e sem ulterior indagação, a escolha do legislador ordinário. Para além da questão de saber qual o sentido que, em geral, a conferir à primeira frase do nº 2 do artigo 18º – pareceria certo, antes do mais, que autorização constitucional para restringir se não identificava com necessidade de referência textual explícita a um certo e determinado instituto a adoptar pelo legislador ordinário, referência essa que teria que constar do articulado da Constituição. Nenhuma Constituição é apenas um texto.

No caso, a Constituição autorizaria que o direito de cada um à não privação da propriedade seja restringido, desde que a restrição se justifique por razões de interesse público, se efectue por intermédio do procedimento devido em Direito e inclua, para o afectado, a devida compensação. O que conferiria inteligibilidade e sentido a esta autorização, assim recortada, não seria apenas o facto de a ela se referir textualmente a Constituição, no nº 2 do artigo 62º. Conferir-lhe‑iam também inteligibilidade e sentido as próprias razões materiais que, na ordem constitucional, sustentariam a sua existência.

Ora, sendo essas ainda as razões da restrição prevista no nº i) da alínea j) do nº 1 do artigo 2º do Decreto 343/X – e não decorrendo do regime nela contido que se habilitasse o Governo a instituir um “meio” ablatório da propriedade à margem do interesse público; que se não realizasse no quadro de um procedimento devido em Direito; e que não fosse acompanhada da devida compensação – não poderia entender‑se que a escolha do legislador ordinário merecesse censura constitucional, apenas pelo facto de a menção à venda forçada não constar, textualmente, do articulado da Constituição.

 

59.  Considerando os argumentos do Presidente, o Tribunal reconheceu que eram desiguais entre si o instituto da expropriação e o instituto da venda forçada. No entanto, tal desigualdade só se tornaria em algo constitucionalmente censurável se se provasse que os proprietários sujeitos a venda forçada viriam a ser – seguramente apenas quando fosse, e se fosse, aprovado o decreto-lei autorizado – destinatários de um regime jurídico injustificadamente diverso daquele que é aplicável aos expropriados.

Para o requerente, a prova de que assim era já estava feita, por dois motivos: o que se prendia com a tese da “tipicidade” ou do numerus clausus que, relativamente aos instrumentos de política urbanística, estaria inserta no nº 4 do artigo 65º; e o da insuficiência do sentido da lei de autorização.

Pelo contrário, para o Tribunal, uma vez demonstrada a possibilidade constitucional da previsão, no contexto da norma sob juízo, do instituto, nada permitir concluir que se estivesse, in casu, perante uma autorização deficitária quanto à determinabilidade do seu sentido. Eram suficientemente claras as decisões básicas da habilitante, quanto à definição do conteúdo essencial a seguir pela futura, e eventual, legislação governamental. Estava claro qual o espaço de liberdade de conformação do legislador autorizado. Finalmente, e na perspectiva dos particulares, era suficientemente claro o programa normativo, contido na autorização legislativa, que, a ser cumprido pelo decreto‑autorizado, iria produzir consequências directas e imediatas na modelação dos direitos e deveres das pessoas. Sobretudo numa ordem constitucional como a nossa, que pressupõe um certo modelo de partilha de responsabilidades legislativas entre Parlamento e Governo, nada permitiria concluir que a norma autorizativa não tivesse atingido o grau exigível de determinação de sentido.

Questão diferente seria a de saber se, como afinal, sustentava, no essencial, o requerente, o instituto da venda forçada – tal como delineado na autorização legislativa – não seria inconstitucional por, quanto ao interesse público, não garantir que fossem satisfeitos os fins próprios das políticas urbanísticas; e, quanto aos interesses privados, não garantir que à afectação dos bens correspondesse uma justa indemnização, conforme o disposto no artigo 62º, nº 2 da Constituição. Mas ao Tribunal não caberia apreciar a “adequação” ou o mérito das políticas públicas adoptadas pelo legislador: caber-lhe‑ia apenas emitir juízos sobre aquelas que, nos termos da Constituição, fossem censuráveis. E nada, também, quanto a este ponto, permitiria estabelecer um juízo de censura constitucional, pois que nada provava que a “venda forçada” fosse inepta, ou inadequada, à realização dos fins especiais da reabilitação urbana.

Do mesmo modo, do regime contido no artigo 2º do Decreto se não poderia depreender que, nos casos em que o preço do imóvel obtido através da venda em hasta pública se revelasse inferior ao montante em que o mesmo tivesse sido avaliado, nos termos do Código das Expropriações, não viesse a ser conferida ao particular, através de indemnização, a compensação devida quanto à parte restante.

 

60.  Igualmente a respeito da norma constante da alínea c) do nº 2 do artigo 2º do Decreto da Assembleia, o Tribunal concluiu pela não inconstitucionalidade.

Seriam contadas as circunstâncias em que o artigo 2º do Decreto previa que o senhorio pudesse não vir a ser obrigado a indemnizar ou realojar o inquilino. Tal ocorreria quando o mesmo senhorio denunciasse o contrato de arrendamento por necessidade e urgência de demolição do prédio. Pareceria ser, de facto, de necessidade e de urgência [de demolição] que se tratava, quando se identificava o grau de deterioração do edifício que reentrava na fattispecie da norma da alínea c) do nº 2 do artigo 2º: grau tal que tornaria impossível a reabilitação do prédio e que tornava arriscada, para as pessoas, a sua ocupação. Para além destas situações, o senhorio denunciaria o contrato de arrendamento – sem assegurar, ele próprio, a indemnização ou realojamento do inquilino – quando a necessidade da demolição decorresse de plano municipal de ordenamento do território.

Esta situação específica, tornando inelutável a cessação do contrato de arrendamento por força de circunstâncias objectivas, justificaria que se não impusesse aqui ao senhorio um dever de indemnização do inquilino: para todos os efeitos, a acção de denúncia do contrato, a interpor pelo primeiro, radicaria em fundamentos outros que não a sua livre vontade de pôr termo à relação arrendatícia. Como não ocorreria, no caso, nenhuma “expropriação do direito ao arrendamento” em que fosse excepcionada a compensação devida pelo senhorio, não se veria por que razão violaria a norma sob juízo “o núcleo essencial” do direito consagrado no nº 2 do artigo 62º da CRP, lesando‑se, por isso, e do mesmo passo, o limite às restrições dos direitos, liberdades e garantias inscrito na parte final do nº 3 do artigo 18º. Improcedendo este fundamento de inconstitucionalidade, improcedia também a invocação da violação do princípio da igualdade, com ele estreitamente interligado. Nem a medida se mostraria inadequada, desnecessária ou “excessiva”, em sentido estrito. E atendendo à natureza da norma, nada impediria que o legislador habilitado viesse a cumprir, através da introdução de regimes transitórios que eventualmente se viessem a mostrar necessários, as exigências próprias do princípio da protecção da confiança decorrente do artigo 2º da Constituição.

 

61.  Em face da doutrina quase unânime e da jurisprudência citada no acórdão, talvez não valesse muito a pena ter sido suscitada a questão prévia da cognoscibilidade da autorização legislativa.

Sempre temos defendido desde 1982 (quando foi incluída a referência a sentido no artigo 168º, hoje 165º da Constituição) que nenhuma lei de autorização legislativa se reconduz a lei meramente formal. Não se trata só de uma vicissitude de competência; trata‑se também de acto que se manifesta na dinâmica global do ordenamento. E, embora não atinja só por si os cidadãos, nem regule as situações da vida, os seus efeitos não são apenas instrumentais; são, desde logo, efeitos substantivos, até porque a função do sentido não se esgota com a emanação do decreto‑lei autorizado, perdura como parâmetro da validade deste.

Por outro lado, há um ponto em que divergimos do que se escreve no acórdão. Não concordamos que seja inconstitucional uma lei de autorização legislativa com densidade tal que pouco fique ao dispor do decreto‑lei autorizado [ou de decreto legislativo regional, previsto no artigo 227º, nºs 1, alínea b), 2, 3 e 4]. Se a Assembleia da República pode legislar directamente sobre a matéria, ela tem toda a liberdade para ir onde entender, tudo dependendo da importância do assunto e do grau de confiança política no Governo.

Em contrapartida, há outra hipótese de inconstitucionalidade de lei de autorização: a que consiste em ela versar sobre matéria de reserva absoluta da Assembleia da República [além das do artigo 164º, as dos artigos 161º, alíneas b), f), g), h), l) e m), 163º, alíneas f) e j), 167º, nº 1, 227º, nº 1, alínea i), 2ª parte, 255º, 256º e 293º].

 

62.  Já quando à questão de fundo analisada, concordamos no essencial com o acórdão.

Em primeiro lugar, afigura‑se muito bem formulado e convincente o passo respeitante às restrições aos direitos, liberdades e garantias. Com efeito, a par das restrições, imediatas ou mediatas, constantes dos preceitos expressos, há restrições que se encontram a partir da interpretação sistemática ou de princípios constitucionais. O critério básico em que se alicerçam é o da salvaguarda de “outros direitos ou interesses constitucionalmente relevantes”, como diz o artigo 18º, nº 2.

Somente numa quimérica Constituição liberal radical se pretenderia que a propriedade não pudesse ser restringida senão nos casos nela directa e expressamente contemplados e se entenderiam proibidas quaisquer normas legais restritivas que lhes não correspondessem. Pelo contrário, qualquer Constituição positiva, ainda que imbuída de respeito pela propriedade, tem de admitir que a lei declare outras restrições – até por não poder prevê‑las ou inseri‑las todas no texto constitucional. O que a lei, também aqui, tem de respeitar é o feixe de princípios do artigo 18º.

Mais ainda: o artigo 62º contempla a propriedade, “nos termos da Constituição”. Isto implica não tanto que ela só seja garantida dentro dos limites e dos termos previstos e definidos noutros lugares da Constituição quanto que ela não é reconhecida aprioristicamente, como princípio independente e auto‑suficiente; ela é reconhecida e salvaguardada no âmbito da Constituição e em sintonia com os princípios, valores e critérios que a enformam.

De resto, além do artigo 65º, nº 4, poderia ter sido convocado o artigo 66, nº 2, alínea e), que incumbe o Estado de promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e de protecção de zonas históricas. E, porventura ainda, poderia ter sido tomado como lugar paralelo o artigo 88º, nº 2, ao permitir que os meios de produção em abandono injustificado possam ser objecto de arrendamento ou de concessão de exploração compulsivas, em condições a fixar por lei.

 

 

VIII

Recusa de inscrição de um partido político

 

63.  A Constituição declara o pluralismo de expressão e de organização política democráticas um dos fundamentos do Estado de Direito democrático (artigo 2º), impõe aos partidos o respeito do princípio da democracia política (artigo 10º, nº 2) e fala em oposição democrática [artigos 114º, nº 2 e 288º, alínea i), 2ª parte). Ora, poderia isto inculcar, à primeira vista, uma ideia de limitação ou de uma democracia defensiva ou militante.

Pois democrático pode ser entendido tanto no sentido de favorável à democracia (sendo antidemocrático o que propugna um sistema político não democrático) como no sentido de conforme com a democracia (sendo antidemocrático o que utiliza meios não democráticos de acção política para realizar o seu programa, democrático ou não). Ali, para se avaliar da democraticidade, haveria que confrontar a doutrina e as finalidades dos grupos políticos com a concepção democrática que a Constituição consagra; aqui, haveria que confrontar a prática com as regras fundamentais da vida política democrática, para verificar se estas são ou não observadas.

Mas o primeiro entendimento reduziria a margem de liberdade e de segurança dos cidadãos; daria à maioria de momento a possibilidade de eliminar as minorias sob pretexto de contrariarem a democracia; desembocaria num beco sem saída, porque, afora a democracia pluralista e representativa de tipo ocidental, outras visões de democracia se conhecem, cada qual pretendendo-se de maior validade, de tal sorte que, onde essas concepções estivessem difundidas (como é o caso de Portugal e da maior parte dos países da Europa meridional), se tornaria impossível banir da vida pública os grupos e partidos correspondentes sem repressão ou sem marginalização de vasto número de cidadãos.

É preferível, sem hesitar, o segundo entendimento. O carácter democrático da expressão e da organização políticas não pode ser visto em intenções, palavras, programas ou ideologias, só pode ser visto pelo modo como os partidos se organizam e pelos actos respeitadores ou desrespeitadores da lei penal geral que pratica, porque juridicamente só actos podem ser apreciados, não ideologias. O exercício da liberdade política não pode ser restringido por razões ou opções de natureza política.

A menção da democracia no art. 2.° incorpora uma regra prescritiva, não uma regra negativa ou proibitiva. Obriga a que na expressão e na organização políticas se observem as regras inerentes a uma ordem constitucional democrática – esse o sentido do art. 10.º, n.° 2; obriga a que os partidos se rejam pelos princípios da transparência, da organização e da gestão democrática e de participação de todos os seus membros (artigo 51º, nº 5) – o método democrático e não qualquer outro assente na subversão e na violência.

Excepção ao princípio do pluralismo, a única que a Constituição contém, é a proibição de organizações – e, portanto, de partidos – que perfilhem a ideologia fascista (artigo 46º, nº 4). Não já a proibição de organizações – e, portanto, de partidos racistas (mesmo artigo 46º, nº 4) – porque o racismo agride a dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição).

Os princípios constitucionais são explicitados e densificados pela Lei Orgânica nº 2/2003, de 22 de Agosto (com as alterações da Lei Orgânica nº 2/2008, de 14 de Março), a lei dos partidos políticos. Compete ao Tribunal Constitucional apreciar a legalidade dos partidos e suas coligações, bem como a das denominações, siglas e símbolos e ordenar a sua extinção [artigo 223º, nº 2, alínea e) da Constituição]. No Tribunal existe um registo dos partidos (artigo 14º da Lei Orgânica nº 2/2003).

 

64.  Recentemente, pelo acórdão nº 369/2009, de 13 de Julho[17], o Tribunal indeferiu o pedido de inscrição de um partido, chamado “Partido da Liberdade”.

Indeferiu‑o, por os estatutos não assegurarem uma plena democraticidade de funcionamento interno e serem limitadas as garantias dos direitos dos membros: assim, quanto ao conselho de jurisdição, aos poderes disciplinares, às estruturas locais, à estrutura juvenil, ao dever de sigilo sobre as actividades do partido, à mesa do congresso, à elasticidade da composição dos órgãos dirigentes.

A respeito da disciplina partidária, reiterou o Tribunal que ela não pode oferecer garantias substancialmente menores do que aquelas que constitucionalmente se exigem ao Direito disciplinar público – desde logo, porque envolve ou pode envolver direitos, liberdades e garantias de participação política (neste ponto do acórdão – 10.2. – qualificam‑se os partidos como associações de Direito constitucional, mas, algo contraditoriamente, diz‑se que a disciplina partidária não pode considerar‑se Direito sancionatório público).

Por seu turno, afirma‑se (10.5.) que o “sigilo sobre todas as actividades partidárias” significaria, se lido em toda a sua extensão, fazer equivaler o partido a uma sociedade de índole secreta. Mas, ainda que não fosse essa a ideia subjacente a tal declaração, a ausência de qualquer critério delimitador das actividades objecto do dever de reserva (v.g., a sua restrição às questões da “vida interna” do partido com “carácter reservado”, à semelhança do que estabelecem os estatutos de outros partidos políticos) não permite outra leitura – o que contendia com o princípio da transparência.

 

65.  A Lei nº 2/2003 estabelece que os estrangeiros e os apátridas legalmente residentes em Portugal e que se filiem em partidos políticos gozam dos direitos de participação compatíveis com o estatuto de direitos políticos que lhes esteja reconhecido (art. 20º, nº 4).

Esta norma carece de interpretação conforme com a Constituição, pois a participação partidária só pode ser admitida:

a)  Em âmbito nacional, a cidadãos de países de língua portuguesa com estatuto de igualdade (art. 15º, nº 3) ou, quando se trate de eleições para o Parlamento Europeu, de cidadãos de Estados membros da União Europeia (art. 15º, nº 5);

b)  E em âmbito local, mas circunscrito a ele, a apátridas e a cidadãos de países que concedam também a cidadãos portugueses residentes nos seus territórios capacidade eleitoral relativa a eleições locais (art. 15º, nº 4).

Por isso e porque a nacionalidade não está na lei incluída entre os factores de exclusão proibidos (artigo 19º, nº 2), fez bem o acórdão ao entender que a norma estatutária circunscrevendo a qualidade de militantes a cidadãos portugueses se encontrava ainda dentro dos limites da licitude.

O problema, no entanto, aí era outro. Era o que devia colocar a noção muito restrita de cidadãos portugueses adoptada – cidadãos portugueses só os que tivessem nascido em território português, filhos de pais portugueses – e das anunciadas propostas de rejeição da aquisição de nacionalidade pelo casamento ou por união de facto ou por simples permanência, bem como das propostas relativas à situação dos estrangeiros em Portugal e de “adopção, interiorização e divulgação do conceito de etnia, por conveniente no vínculo com a Pátria”.

O Ministério Público tinha solicitado particular prudência na apreciação do problema de saber se não se trataria de um “partido (potencialmente) racista”. O Tribunal (nº 8) preferiu discorrer sobre as diferenças entre raça e etnia.

 

 

IX

Estatutos dos juízes de paz. Inelegibilidade dos juízes

 

66.  Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, não foi admitida certa candidatura, por um dos candidatos ser juiz de paz e, portanto, à face da respectiva lei eleitoral, ele ser inelegível.

Inconformado com a decisão, o partido proponente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, alegando que a norma em causa [a do artigo 5º, alínea f) da Lei nº 14/87, de 29 de Abril] não poderia abranger os juízes de paz, porquanto os julgados de paz não partilhavam a função jurisdicional com os tribunais, antes sendo instâncias não jurisdicionais ou parajurisdicionais de solução alternativa de conflitos.

O Tribunal Constitucional, pelo acórdão nº 250/2009, de 18 de Maio[18], não deu provimento ao recurso, por considerar, ao contrário do sustentado pelo recorrente, que os julgados de paz eram verdadeiros e próprios tribunais.

 

67.  O acórdão ancorou‑se, essencialmente, no artigo 209º da Constituição, que inscreve os julgados de paz dentro das categorias dos tribunais; e, depois, no artigo 61º da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho (a lei que os regula), de harmonia com o qual as decisões proferidas pelos juízes de paz têm o valor das sentenças proferidas pelos tribunais judiciais de 1ª instância.

O facto de a sua efectiva existência ser facultativa, a circunstância de a Constituição remeter para o legislador constitucionalmente competente [cf. artigos 164º, alínea m), e 165º, nº 1, alínea p)], a decisão concreta sobre a criação, de resto facultativa, dos tribunais que correspondam à categoria constitucionalmente prevista, em nada belisca a sua previsão constitucional como integrante de uma das diversas categorias de tribunais, pelos quais a função jurisdicional se encontra organizacionalmente repartida

Nem por se indicar como “princípios gerais” de tal categoria de tribunais que a sua actuação “é vocacionada para permitir a participação cívica dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes” e dizer que “os procedimentos nos julgados de paz estão concebidos e são orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual”, teria outro sentido que não fosse o de concretizar o que o legislador ordinário entende como correspondendo ao quid specificum que relevou na organização, competência e funcionamento desta categoria de tribunais, que, tal como os demais, administram justiça em nome do povo e “asseguram a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”.

Aliás, a economia processual, a simplificação do processo e a aspiração da obtenção de acordo sobre o objecto da causa constituíam valores também prosseguidos pelo processo civil e nos tribunais judiciais, onde para além da existência de regimes processuais “mais elásticos”, como são os da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias (Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro) e do processo civil simplificado (Decreto-Lei nº 211/91, de 14 de Junho), a lei de processo civil determina, por diversas vezes, que se proceda a tentativa de conciliação (cf., por exemplo, o artigo 509º do Código de Processo Civil).

E precisamente porque exercem a função jurisdicional é que o legislador ordinário teria rodeado esse exercício dos meios que garantissem a completa independência e imparcialidade dos juízes, aplicando aos juízes de paz o regime dos impedimentos e suspeições estabelecido na lei do processo civil para os juízes (artigo 21º da Lei nº 78/2001).

A circunstância de os juízes em exercício ou efectividade de funções estarem enquadrados por diferentes estatutos não obsta a que possam estar sujeitos a idênticas restrições ao direito de eleição para cargos políticos, desde que, em qualquer das situações, se verifiquem as razões que constitucionalmente justificam a restrição e que se colhem, como se disse, no artigo 50º, nº 3, da CRP, com o qual “o legislador constituinte pretendeu estabelecer, precisamente, um critério delimitador de futuras novas causas de inelegibilidade que o legislador pretenda vir a criar”, acautelando outros valores constitucionalmente tutelados como a liberdade de escolha dos eleitores e a garantia de isenção e independência no exercício dos respectivos cargos (cf. acórdãos nº 364/91 e 532/89).

 

68.  O acórdão mereceu inteira concordância e o raciocínio nele explanado bem poderia servir para explicar restrições análogas ao direito de filiação e de actividade em associações e partidos políticos e a outros direitos cujo exercício poderia colidir com a independência e a isenção de quem assume a função jurisdicional, esteio do Estado de Direito.

O artigo 18º, nº 2 da Constituição, mais uma vez, tem de ser interpretado, não ancorado à sua letra, mas à luz dos interesses, valores e princípios de ordem constitucional no seu conjunto.

 

 

X

Um segundo acórdão sobre o Estatuto dos Açores

 

69.  Já em 2008, logo após a aprovação do novo estatuto dos Açores, o Tribunal Constitucional havia sido chamado a ocupar‑se de questões de inconstitucionalidade por ele suscitados. Pronunciou‑se sobre algumas (através do acórdão nº 402/2008, de 29 de Julho), mas não sobre todas as que mereciam apreciação, porque o Presidente da República não lhas submeteu[19] e ele está sujeito, como qualquer tribunal, ao princípio do pedido.

De qualquer forma, depois de uma intensa polémica entre o Presidente da República e a maioria parlamentar de então, a respeito de um desses pontos (o regime de dissolução da Assembleia Legislativa Regional), o assunto voltaria ao Tribunal Constitucional, por iniciativa, agora de fiscalização sucessiva, do Provedor de Justiça e de um determinado número de Deputados [artigo 281º, nº 1, alíneas d) e f)]. Daí o acórdão nº 403/2009, de 30 de Julho[20].

 

70.  A primeira norma impugnada foi o artigo 5º, nº 4, de harmonia com o qual a bandeira da Região seria hasteada (sem prejuízo, naturalmente, da precedência da bandeira nacional) nas instalações dependentes dos órgãos de soberania na Região.

O Tribunal declarou‑a inconstitucional, porque a utilização da bandeira regional teria sempre de ser subordinada à utilização da bandeira nacional; porque o regime dos símbolos nacionais cabe na reserva absoluta de competência da Assembleia da República [artigo 164º, alínea s)]; e porque, sendo a bandeira nacional o símbolo da soberania da República e de independência, unidade e integridade de Portugal (artigo 11º, nº 1), não poderia o estatuto, atinente a uma parte do seu todo, dispor sobre ela.

A conclusão impunha‑se com toda a evidência. Apenas faltaria salientar duas notas: 1ª) que os estatutos regionais têm um âmbito circunscrito aos poderes e à organização das Regiões e a matérias afins, sem a expansividade característica das Constituições; 2ª) e que o princípio da unidade do Estado não se compadece com o hasteamento em edifícios de órgãos de soberania, instalações de forças de segurança e em instalações e meios militares (terrestres, navais e aéreos) de outra bandeira que não a do Estado (nem sequer nos Estados federais se admitiria uma bandeira estadual, num aquartelamento ou num navio de guerra).

 

71. As regiões autónomas recebem da Constituição, a par de poderes de participação em actos internacionais de Estado, poderes de prossecução de interesses próprios no âmbito externo: o de estabelecer cooperação com entidades regionais estrangeiras, o de participar em organizações que tenham por objecto fomentar o diálogo e a cooperação inter‑regional e o de participar no processo de construção europeia, mediante representação nas respectivas instituições regionais [artigo 227º, nº 1, alíneas u) e x), 1ª parte). É uma nota singularizadora da sua autonomia, que nem por isso faz delas sujeitos de Direito internacional.

Quanto à representação em instituições regionais europeias, ela refere‑se a um órgão, o Comité das Regiões, previsto nos tratados da União Europeia, sem poderes de decisão; e, de todo o modo, os representantes das regiões – tal como os representantes de municípios portugueses (que igualmente nele têm participado) – apenas aparecem como seus titulares enquanto representantes do Estado português.

Mas a alínea i) do artigo 7º, nº 1 do estatuto ia bem mais longe, ao atribuir à Região “política própria de cooperação externa” com entidades regionais estrangeiras, nomeadamente no quadro da União Europeia e do aprofundamento da cooperação no âmbito da Macaronésia. O contraste com a norma constitucional era evidente, com o consequente juízo de inconstitucionalidade.

Diferentemente – e, ao contrário do que o Tribunal decidiu – não havia inconstitucionalidade na alínea j) do mesmo artigo, ao falar no direito da Região de estabelecer cooperação com entidades regionais estrangeiras e a participar em organizações internacionais de diálogo e cooperação inter‑regional, porque, embora faltasse o inciso final do artigo 227º, nº 1, alínea u) da Constituição, ela tinha de ser interpretada à sua luz: essa cooperação e essa participação hão‑de se desenvolver sempre de acordo com as orientações dos órgãos de soberania com competência de política externa.

 

72.  Os artigos 7º, nº 1, alínea o), 47º, nº 4, alínea a), 67º, alínea d), 101º, nº 1, alínea n) e 130º previam a existência de provedores sectoriais regionais. O Tribunal, aqui em fórmulas sintéticas, demonstrou a inconstitucionalidade dessas normas.

A repartição, com outros órgãos, das faculdades inseridas na competência com que foi dotado constitucionalmente o Provedor de Justiça, ainda que respeitando as suas atribuições constitucionais e obrigando a agir em coordenação ou de forma articulada com este, desfiguraria o órgão tal como foi concebido pela Lei Fundamental, na medida em que introduziria elementos distorcedores da unidade da sua actuação para todo o território nacional e para todos os poderes públicos.

A existência, ao lado, de um outro órgão, criado pelo legislador ordinário, com atribuições decalcadas ou paralelas às do Provedor de Justiça, especializadas ou não, ainda que de âmbito regional, não deixaria de descaracterizar o tipo constitucionalmente construído do mesmo órgão sem agregação a quaisquer especialidades da matéria da sua competência ou a quaisquer entes territoriais, antes, atingindo todos os poderes públicos e enfraquecendo, em termos de visibilidade e intensidade práticas, os poderes e faculdades com que foi dotado o órgão constitucional.

É este o entendimento que sempre temos preconizado.

A Constituição cria um único Provedor de Justiça. Não o faz por acaso. Fá‑lo em virtude da unidade sistemática essencial da função de defesa e realização dos direitos das pessoas e por só um Provedor, com as características apontadas, possuir suficiente autoridade frente aos “poderes públicos”. Há uma reserva constitucional de competência em favor do Provedor de Justiça quanto à apreciação não contenciosa de queixas por acções ou omissões dos poderes públicos que afectem os direitos do cidadão. Os provedores sectoriais regionais, contenderiam mesmo com a unidade do Estado.

Muito mais grave do que a lei ordinária preterir a distribuição constitucional de competências, seria ela (e o estatuto é uma lei ordinária) erguer de todas as peças um ou vários órgãos novos, atribuindo‑lhe funções próprias de um órgão constitucional e, por conseguinte, procedendo ao seu desdobramento ilegítimo. Porque, quando a Constituição quis consagrar a existência de um órgão específico para tutela de certos e determinados direitos fundamentais fê‑lo logo: assim, a entidade administrativa independente de protecção dos dados pessoais (artigo 35.º, n.º 2) e a entidade reguladora da comunicação social; não mais do que isso.

 

73.  A Constituição, após a revisão de 2004, alargou o poder de dissolução das Assembleias Legislativas Regionais pelo Presidente da República [artigos 133º, alínea j) e 234º, nº 1] numa tendência de aproximação à Assembleia da República dessa Assembleia patente também noutros campos [artigo 133º, alíneas b) e d)].

Tal como aquando da dissolução da Assembleia da República, a dissolução das Assembleias Legislativas Regionais deve fazer‑se ouvidos os partidos nelas representados e o Conselho de Estado [artigo 133º, alíneas e) e j) e ainda artigo 234º, nº 2].

O estatuto acrescentava a necessidade de audição igualmente da própria Assembleia Legislativa e do Presidente do Governo Regional e, em vez de aludir a partidos, aludia a grupos e representações parlamentares (artigo 114º).

O Tribunal declarou a inconstitucionalidade, em nome da reserva de Constituição sobre os poderes do Presidente da República (e dos respectivos limites). Nem outra coisa poderia fazer: uma norma legislativa não pode adstringir o Presidente (ou qualquer outro órgão constitucional) a obrigações que a Constituição não prescreva.

Só causa espanto que, quanto a esta norma, o Presidente não tenha logo requerido a fiscalização preventiva e que, tendo exercido o veto político, o Parlamento tenha votado a confirmação por maioria de dois terços, provocando um e outro uma artificial crise que a ninguém aproveitou.

 

74.  O artigo 119º do estatuto criava um procedimento de “audição qualificada” sobre actos da Assembleia da República e do Governo sobre determinadas matérias consideradas mais importantes, que compreendia três fases: 1º) envio do projecto ou da proposta e “com especial e suficiente fundamentação”, à luz dos princípios da primazia do estatuto, do adquirido autonómico e da subsidiariedade; 2º) emissão de parecer fundamentado; 3º) no caso de parecer desfavorável ou de não aceitação das alterações propostas, constituição de comissão bilateral e paritária para formular uma proposta alternativa no prazo de 30 dias (passados os quais o órgão de soberania poderia decidir livremente).

O Tribunal não teve dúvidas em considerar este procedimento claramente contrário ao modo como devem decorrer as relações entre os órgãos de soberania e os órgãos de governo próprio das regiões.

Por um lado, o artigo 119°, nº 2, não se limitava a especificar os princípios que os órgãos de soberania deveriam respeitar ou ponderar: obrigava‑os a fundamentar a sua proposta de âmbito regional, perante os órgãos regionais, à luz dos princípios de protecção da autonomia regional, como se eles não fossem uma parte do todo nacional, mas antes um destinatário externo nele não integrado.

Por outro lado, se a Região emitisse parecer desfavorável o procedimento, deixaria de ser da audição conformada no artigo 229°, nº 2, da Constituição e transformar-se‑ia numa negociação, através da prevista comissão bilateral paritária. E aqui, a relação constitucional de poderes desfigurar‑se‑ia: a Região não só seria ouvida, como poderia negociar e, eventualmente, impor a sua vontade, nomeadamente quando o órgão de soberania, para decidir, tivesse a seu desfavor a pressão do tempo.

 

75.  O artigo 140º, nº 2 limitava os poderes de revisão do Estatuto, às normas sobre as quais incidisse a iniciativa da Assembleia Legislativa e às matérias com ela correlacionadas.

O Tribunal decidiu, mais uma vez, no sentido da inconstitucionalidade, embora não sem votos de vencido.

Ao dispor sobre o alcance e os termos em que o procedimento das alterações estatutárias deveriam desenrolar-se, o preceito em causa acabaria por intrometer-se na delimitação ou definição dos poderes constitucionais da intervenção da Assembleia da República sobre a matéria (artigo 110°, nº 2, da Constituição). Ora, não poderia uma norma de direito ordinário estatuir o nível de rigidez de que a mesma norma se encontrava revestida quando esse nível de imperatividade decorresse de uma norma de categoria superior, como a norma constitucional.

O problema tem sido há muito discutido na doutrina, havendo quem considere ser a solução mais consentânea com o regime compartilhado de alterações estatutárias a de que o Parlamento não pode fazer alterações em áreas não envolvidas na proposta de alteração da Assembleia Legislativa Regional (assim, entre outros, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 847). E também os votos de vencido dos juízes Mário Torres, Joaquim de Sousa Ribeiro, Maria Lúcia Amaral e Maria João Antunes apelaram a um modelo de cooperação, de concertação ou de competência partilhada nessa matéria.

Representaria um desrespeito desse princípio, escreveu o juiz Mário Torres, que perante um projecto de revisão estatutária que se limitasse a propor alterações ao artigo relativo aos símbolos regionais, a Assembleia da República aproveitasse o ensejo e introduzisse profundas alterações noutros capítulos estatutários, de todo estranhos ao objecto do projecto de revisão, como, por exemplo, procedendo a uma redução drástica da enumeração das matérias de interesse regional. Em tal hipótese, não seria lícito sustentar que fora respeitada, em termos materiais, a regra constitucional que atribui às Assembleias Legislativas Regionais o exclusivo do poder de iniciativa da revisão estatutária.

A nossa posição tem sido há muito a de uma linha de convergência com a linha do acórdão. Há muito vimos sustentando a faculdade da Assembleia da República de introduzir alterações aos estatutos para além das propostas pelas Assembleias Legislativas, por recusa da rigidez e das restrições aos poderes do Parlamento – órgão com primado de competência legislativa – que implicariam o entendimento oposto. Nem se compreenderia que, na votação na especialidade da proposta de lei orçamental, pudessem os Deputados e os grupos parlamentares apresentar propostas de alteração ao texto do Governo e não o pudessem fazer aos textos das Assembleias Legislativas Regionais. A reserva de iniciativa em ambos os casos é apenas a originária. E, de resto, perante qualquer alteração, a Assembleia Legislativa vai ainda emitir parecer (artigo 228º, nº 2).

Tudo isto, no entanto, nos limites da razoabilidade. A Assembleia da República não pode desfigurar (diz Rui Medeiros em Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, III, Coimbra, 2007, pág. 289) os projectos de revisão dos estatutos, introduzindo alterações substanciais; o que não deve é tal limite ser concretizado com base no critério puramente formal das matérias objecto dos projectos elaborados pelos Parlamentos regionais.

 

 

XI

Direitos dos grupos de cidadãos representados em órgãos municipais. Uma decisão aditiva

 

76.  O artigo 5º, nº 3 do chamado Estatuto da Oposição (Lei nº 24/98, de 26 de Maio) dispõe que os partidos políticos representados nos órgãos deliberativos das autarquias locais e que não façam parte dos correspondentes órgãos executivos ou que neles não assumam pelouros, poderes delegados ou outras formas de responsabilidade directa e imediata pelo exercício de funções executivas têm o direito de ser ouvidos sobre as propostas de orçamentos e planos de actividade. Não confere idêntico direito aos grupos de cidadãos representados nos mesmos órgãos, apesar de eles poderem apresentar candidaturas às assembleias de freguesia e, desde 1997, a todos os órgãos de autarquias locais (artigo 239º, nº 4 da Constituição).

Invocando aquele preceito legal, a Câmara Municipal de Vizela negou a certo grupo de cidadãos eleitores audição aquando da elaboração do orçamento e do plano de actividades a apresentar à Assembleia Municipal e, porque o grupo se dirigiu aos tribunais para defender que gozava também desse direito, foram chamados a decidir, sucessivamente, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, o Tribunal Administrativo Central e, por último, o Tribunal Constitucional. E este, pelo acórdão nº 373/2009, de 23 de Julho[21], concluiu pela inconstitucionalidade do preceito, quando interpretado no sentido de não abranger os grupos de cidadãos.

 

77.  Havia sido alegada violação do princípio da igualdade, uma vez que tanto os partidos como os grupos de cidadãos eleitores têm o direito de participar na vida autárquica local, de se submeter a escrutínio político e, por conseguinte, de terem os seus representantes eleitos e com assento nos órgãos das autarquias.

O Tribunal Constitucional não quis, porém, trilhar esse caminho, por lhe parecerem muito salientes as diferenças entre os partidos e os grupos de cidadãos – os partidos com papel especial na vida política do País, constituídos a título permanente e sujeitos a significativas obrigações quanto à sua organização, ao seu funcionamento e ao seu financiamento, ao passo que os grupos de cidadãos duram apenas pelo tempo do mandato dos seus representantes. Logo, por aí justificar‑se‑ia uma diferenciação de tratamento.

Preferiu o Palácio Ratton estear‑se na atribuição a esses grupos também de um direito geral de oposição (artigo 3º, nº 3 do Estatuto). Ora, tendo os grupos de cidadãos eleitores representados nas Assembleias Municipais que não façam parte das Câmaras Municipais o direito de acompanhar, fiscalizar e criticar as orientações políticas das respectivas Câmaras, não haveria razão para não se lhes conceder o específico direito de serem ouvidos sobre os documentos de gestão previsional anual, direito esse essencial para o exercício do direito de oposição democrática. Contendo o orçamento a previsão das receitas e despesas e o plano de actividades o programa de investimentos e de actividades a realizar pelo município em determinado período, a audição a seu respeito serviria de meio adequado a que a oposição se pronunciasse sobre a orientação dos órgãos executivos.

 

78.  Esta conclusão não pode deixar de ser acolhida. Já o raciocínio aduzido enferma de alguma contradição.

O Tribunal recusou socorrer‑se do princípio da igualdade, em virtude das diferenças entre partidos e grupos de cidadãos eleitores, mas depois ultrapassou as diferenças ao reconhecer que o direito de oposição envolvia para uns e outros o direito de audição. Fundou a sua decisão no artigo 114º, nº 2 da Constituição, conjugado com o artigo 239º, nº 4, mas não podia ter tomado em conta o artigo 114º, nº 3, visto o direito de informação acerca do andamento dos principais assuntos de interesse público ser prévio ao direito de audição?

Acrescente‑se que, não obstante a fórmula utilizada, não foi simplesmente julgada inconstitucional a norma do artigo 5º, nº 3 do Estatuto da Oposição em certo sentido. Foi, ao mesmo tempo, afirmado outro sentido, mais amplo, nele enxergando quer os partidos políticos quer os grupos de cidadãos. Ou seja: fez‑se uma verdadeira e própria decisão aditiva.

 

 

XII

Rectificações de diplomas legais. Retroactividade. Tutela da confiança

 

79.  Segundo o artigo 5º, nº 1 da Lei nº 74/98, de 11 de Novembro (a actual lei sobre publicação, identificação e formulário dos diplomas), as rectificações são admissíveis exclusivamente para a correcção de lapsos gramaticais, ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga ou para correcção de erros materiais provenientes de divergências entre o texto original e o texto publicado no Diário da República e são feitas mediante declaração do órgão que aprovou o texto original.

É uma clara exigência dos princípios da competência e do respeito dos procedimentos constitucionais e, sobretudo, dos princípios de tutela da confiança e da boa fé, de tal sorte que, a pretexto de rectificações, se não efectuem verdadeiras alterações. E ela assume uma particularíssima importância quando se trate de normas sancionatórias e, em geral, de normas que prevejam um tratamento menos favorável dos cidadãos.

Um caso de desrespeito destes princípios (e, não propriamente, da Lei nº 74/98, que se confina a extrair deles um corolário, sem que possa alçar‑se à categoria de valor reforçado) foi o caso objecto do acórdão nº 490/2009, de 28 de Setembro[22], em que se julgou inconstitucional a norma do artigo 12º, nº 3, alínea a) do Código do Trabalho, na redacção segundo a Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 19 de Maio, por, através desta declaração se repor em vigor uma contra‑ordenação que havia desaparecido com a lei rectificanda.

Como aí se lê, “vigorando em matéria contra‑ordenacional, tal como em matéria penal, no domínio da sucessão de leis, a regra da imposição da aplicação da lei mais favorável (artigo 3º, n.º 2, do Decreto‑Lei nº 433/82), em obediência a uma ideia de desnecessidade de intervenção destes instrumentos sancionatórios, o acto legislativo de descontra‑ordenação compromete o Estado perante os cidadãos, no sentido de que já não serão sancionados os respectivos comportamentos, mesmo que praticados em data em que tal punição se encontrava prevista na lei. – E este compromisso não pode ser quebrado, apesar de o Estado verificar que se equivocou ao abandonar o sancionamento como contra‑ordenação daquelas condutas, em defesa da fiabilidade da actividade de um Estado de direito democrático”.


 

[1]Diário da República, 2ª série, de 17 de Agosto de 2009.

[2]O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade – as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional, in Jurisprudência Constitucional, nº 3, Julho‑Setembro de 2004, págs. 4 e segs.

[3]Foi o aditamento que sugerimos, em 1996, para o artigo 280º (cf. Ideias para uma revisão constitucional em 1996, Lisboa, 1996, pág. 29). Nem esta proposta é nova; já mais de uma vez foi preconizada uma “acção constitucional de defesa” ou um “recurso de amparo”.

[4]Diário da República, 2ª série, de 1 de Abril de 2009.

[5]Diário da República, 2ª série, de 17 de Setembro de 2009.

[6]Diário da República, 2ª série, de 4 de Novembro de 2009.

[7]Todos, diz o artigo 36º, nº 1, têm o direito de casar em condições de plena igualdade. Mas não todos com todos: se fosse assim, pessoas casadas poderiam casar com outras pessoas também casadas ou aceitar‑se‑iam a poligamia e a poliandria

[8]Vol. VI, 3ª ed., Coimbra, 2008, pág. 89.

[9]Acórdão n.º 14/84, de 8 de Fevereiro, in Diário da República, 2.ª série, de 10 de Maio de 1984, pág. 4189.

[10]Acórdão n.º 126/84, de 12 de Dezembro, ibidem, 2.ª série, de 11 de Março de 1985, pág. 2304.

[11]Acórdão n.º 76/85, de 6 de Maio, ibidem, 2.ª série, de 8 de Junho de 1985, pág. 5365.

[12]Acórdão n.º 400/91, de 30 de Outubro, ibidem, 1.ª série‑A, de 15 de Novembro de 1991.

[13]Acórdão n.º 231/94, de 9 de Março, ibidem, 1.ª série‑A, de 28 de Abril de 1994, págs. 2056 e 2057.

[14]Acórdão nº 750/95, cit. pelo Acórdão nº 270/2009, de 27 de Maio, ibidem, 2ª série, de 7 de Julho de 2009.

[15]Terá sido, por isso, que no recentíssimo diploma aprovado no Parlamento se afastou a adopção pelos casais de homossexuais, prova de que não se trata de verdadeiro casamento.

[16]Diário da República, 2ª série, de 2 de Setembro de 2009.

[17]Diário da República, 2ª série, de 13 de Agosto de 2009.

[18]Diário da República, 2ª série, de 10 de Novembro de 2009.

[19]A iniciativa de fiscalização preventiva assenta em razões jurídicas, mas o Presidente da República não está juridicamente obrigado a exercê‑la. Pode optar ou pela promulgação de decreto do Parlamento ou pelo veto político. E a experiência mostra que, apesar da referência ao cumprimento da Constituição (artigos 120º e 127º, nº 3), o exercício ou não da iniciativa, não raro, obedece a cálculos políticos e, por vezes, a estratégias em relação às forças políticas dominantes no Parlamento e no Governo.

[20]Diário da República, 1ª série, de 16 de Setembro.

[21]Diário da República, 2ª série, de 21 de Setembro de 2009.

[22]Diário da República, 2ª série, de 5 de Novembro de 2009.