Um século de academia

JOSÉ RENATO NALINI


Inevitável indagar: ainda caberia hoje uma casa como a do largo do Arouche nesta era da perplexidade digital? Aposta-se que sim


 

 

FUNDADA em 27/11/1909, a Academia Paulista de Letras completa seu primeiro século de existência. Inspirada no modelo observado por todas as similares que ressurgiram no final do 19 e início do 20 -a Académie Française- tem 40 cadeiras, cada qual a invocar um luminar da cultura de São Paulo. Por ela já passaram 212 nomes, incluídos os atuais integrantes. 

Seu propósito é cultivar o idioma, estimular a leitura e a escrita. Como toda instituição devotada à cultura, enfrentou vicissitudes. O Brasil não é o campeão no ranking de leitores. Fora ela um time de futebol ou celeiro de recrutamento de "starlets" ou modelos fashion e não teria maiores problemas para se sustentar. Na era descartável da imagem, devotar-se à beleza interior está longe de atrair a atenção do capital. Menos ainda fazer que por seus propósitos se interessem os milhões conectados nas infovias. 

Mesmo assim, a academia persiste, e pode ser considerado um milagre sua subsistência nesta centúria turbulenta. Nesse período, o mundo foi submetido a pelo menos dois grandes conflitos e se viu aturdido pela revolução dos costumes e pelo declínio dos valores. Não aprendeu as lições da guerra e promoveu a ressurreição da discórdia etnológica e do fundamentalismo e convive com sua face mais cruel: o apostolado/martírio terrorista. As comunicações foram aceleradas e o ciberespaço criou mais um invólucro para o planeta, hoje totalmente recoberto pelas redes virtuais. O conhecimento adquiriu uma acessibilidade de verdadeira commodity. 
Perante as absurdidades contemporâneas, inevitável indagar: ainda caberia uma casa como a do largo do Arouche nesta era da perplexidade digital? Aposta-se que sim. 

Esta é também a fase histórica em que a informação e suas tecnologias são essenciais para a sobrevivência. A única certeza com que se pode contar é a incerteza. Espaços para a elaboração de cenários possíveis, prováveis ou improváveis para a surpresa do futuro são essenciais. O academicismo, que já foi ranço ou reiteração do trivial, pode servir de incubadora às elucubrações daqueles que têm disponibilidade e vocação para pensar. Descomprometidos de metas, mas imersos na reflexão e familiarizados com a criatividade. São pensadores e estudiosos com habilidades para esboçar os panoramas e para delinear os rumos que serão determinantes no destino das gerações do porvir. 

Na volúpia da velocidade que não permite a especulação filosófica, na rotina estiolante que requisita as 24 horas de cada dia, não há muitos cuja lucidez já não tenha sido cooptada por intuitos economicamente autoexplicáveis. O acadêmico é livre para pensar. Não está jungido a competir por reconhecimento, que este já se deu quando eleito para a falácia da imortalidade. Sente-se atraído por retribuir com a produção intelectual capaz de levar a infância e a juventude a ler, a escrever e a pensar. 

A universidade seria o lócus natural da produção de novas ideias. Todavia, ela tende a ser chamada a atender a ideologias, às ambições pessoais estimuladas por obtenção de títulos e à inclemência da "lex mercatoria". 
Disso tudo está liberada uma academia, que se satisfaz com a reunião prazerosa e espontânea, sem cobranças ou obrigações, simplesmente para divagar e partilhar ideias. Uma vez "imortal", o acadêmico não perde a condição. Comparece às sessões quando e se quiser. Dele nada se exige, senão a continuidade da produção na arte de pensar. 

No mundo caótico da insegurança, os salões do Arouche abrigam a tranquilidade e a paz. Ali a ponderação consegue perscrutar as metamorfoses do sujeito e sinalizar roteiros para os assombros do amanhã. 
Metamorfoseou-se a própria Academia Paulista de Letras, em virtude do infortúnio que a acometeu em 2007. A queda do teto de seu auditório, infiltrado por longos anos de descaso e também por deterioração natural, levou-a a percorrer São Paulo em sessões itinerantes. Abriu-se à comunidade, descobriu parceiros, redescobriu-se. Entusiasmaram-se os que aderiram ao novo projeto por conferir continuidade a essa predestinação. Recuperada sua sede, o que se dará em breve, será outra a inquilina do saber. 

Está predisposta a receber infância, juventude e comunidade sequiosa de aquisição de conhecimento e atuará, com dinamismo e fervor renovado, na intensificação de seus objetivos primordiais. 
A Academia Paulista de Letras inoculou-se de ímpeto missionário para iniciar um novo século provando ao ceticismo que ela pode ser a mesma, porém fazer toda a diferença. 

JOSÉ RENATO NALINI, 64, mestre e doutor em direito constitucional pela USP, é presidente da Academia Paulista de Letras e desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.